quarta-feira, 30 de maio de 2012

minha particular canção do exílio

Não sei quem me deixou aqui
onde não há água,
nem comida,
nem afeto.

Muitos falam de carma,
roda de reencarnações.
Portanto pergunto ao mundo:
meu coração sabia de tudo
antes de entrar no navio?

Meu coração foi auscultado
e visto por um grande telescópio?
Caso tenha sido, quem o conteve
de sair fugindo?

Quem o amarrou à proa,
como se faziam aos escravos?

Alguém à noite ouviu seu canto
desesperado,
seu banzo, sua febre, sua doença
santificada?

Meu coração sempre quis outras plagas,
não essas, de água contaminada
e pessoas usando branco pálido.

Meu coração quer a procissão dos anjos
e braços levando nos ombros os santos
com seus ares indiferentes, de festa.

Mas no exílio não há estética,
há ramerrão, e esse mundo, tenho certeza,
é velho e estúpido, sem esperança.

Nunca dá, por exemplo,
para sustentar uma prosa em verso
com os transeuntes que param
diante do sinal aberto.

Todos não estão preocupados
com as máquinas que os esperam:
será que elas degringolam
e enforcam suas crianças?

Sou muito mais o nonsense
para o meu coração enganado
levado num navio, às cegas,
aprisionado.

Aqui não tem nada:
comida,
afeto,
respeito.

Me deixem sair.


segunda-feira, 28 de maio de 2012

A estrada



Ontem à tarde assisti ao filme A estrada, de Fellini. Desde então, o filme continua passando aqui por dentro. Já é outra tarde, mas com relação às coisas de dentro não há cronologia. A tela imensa que minha alma acolhe, de novo me faz chorar por Gelsomina, a terna e triste Macabéa italiana. Eu sou, sempre fui e serei essa criatura. Zampanò é o mundo acorrentado. Eu toco, aqui dentro, a mesma música. E morro antes de acabar o filme.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

conversa à meia noite


Nascer deve ser tão difícil como morrer. Não sabemos nada sobre uma coisa nem sobre outra. Contam que, como todas as crianças, ao nascer choramos (ou não). Contarão que morremos assim ou daquele modo. Mas nos dois quesitos só o mistério das coisas acontecidas persiste, pela voz ficcional do outro. Será que um dia, em outra dimensão, teremos ciência absoluta, com riqueza de detalhes, desses dois acontecimentos tão nossos, tão íntimos? Caso positivo poderemos alcançar, enfim, algo que teria que ser puramente individual, intransferível: a memória de nossa própria existência. Enquanto isso não acontece, peregrinamos pelo mundo como estrangeiros, esquecidos de nossa própria história - aquela inicial e a que virá, figurando tão somente como personagens da memória alheia.

Na memória de mãe e de todos os que presenciaram o meu nascimento, eu nasci dando um trabalho danado: ao invés de vir com a cabeça, como todo mundo, vim com as pernas: primeiro uma perna, depois outra. Vim com sacrifício, vim com solidão, vim a pulso. Isso talvez explique essa minha idiossincrasia pelo avesso. Se minha memória do meu nascimento fosse íntegra, total, eu poderia estar certa ao realizar a analogia dessa com o acordar. Acordo todos os dias com muito sacrifício, encolho as pernas recusando-me a sair do sono; mas a vida me puxa uma perna, depois me puxa outra, e me tira do ventre, de novo, a pulso. Acordo todos os dias como se morresse. Se eu soubesse como é morrer, a analogia poderia ser mais perfeita. Intuo que deve ser tão difícil como acordar e como nascer. 

Talvez se possuíssemos integralmente em nossa psique esses dois grandes acontecimentos de nossa biografia, conseguiríamos o caos ou a libertação.Lembrar da vida intrauterina no momento de sua saída, no movimento de partida e chegada a esse mundo, poderia ocasionar um grande trauma; mas poderia também nos trazer a libertação: abrir nem que seja uma janela do mistério serviria, quem sabe, para nos dar um certo alívio, o êxtase que só os santos conhecem. Quanto à nossa morte, nossa psique bem que deveria tê-la como esboço em algum escaninho. Gradualmente iríamos conhecê-la em estado intrínseco, íntimo. Isso também poderia nos levar ao caos ou à libertação. Caos porque ao desvendar o grande mistério isso talvez nos levasse ao tédio destrutivo, que é aquele que destrói a curiosidade. Libertação porque ao sabermos a "grande verdade" antes dessa acontecer, enfim descobriríamos que toda encenação é verdadeira e ao mesmo tempo não é. Teríamos, assim, a constatação irrefutável - e isso serviria para os seres objetivos, pragmáticos e empedernidos - que a arte sempre teve, tem e terá razão.


quarta-feira, 23 de maio de 2012

amor enorme


Tenho muito amor dentro de mim. Esse amor que tenho me comove. É uma ternura dolorosa, pois que, paradoxalmente, nega qualquer encontro pleno. As relações sempre parecem amputadas, o amor nunca é permitido. E olhe que estou dizendo do amor mais puro, o amor fraternal. Há sempre desconfiança no amor, como se quem ama estivesse a ponto de passar a perna e roubar. Amo tanto as pessoas, até aquelas que não amo. Tenho dó de todo ser humano, por que nunca conseguirá dar e receber o amor em plenitude. Aliás, nada teremos em plenitude, claro, devido a um aleijão de alma que nos persegue. Somos predestinados a ser eternamente mancos, "coxos", como diria Machado.

terça-feira, 22 de maio de 2012

os "reunistas"


Gostaria que um dia alguém, que não fosse romancista, contista ou poeta, escrevesse um trabalho sobre as reuniões. Para mim as reuniões são o grande problema da humanidade; elas são meu entrave na vida, a minha insônia que as antecede, a minha angústia dentro delas, o meu calo. As reuniões "provam" que você pertence a uma sociedade, e esta sociedade tem instituições, e estas instituições têm poder. Bem simples. Bem complexo.
Quem for um dia fazer esse trabalho sobre reuniões terá que, como em todos os outros estudos, se apegar  às outras ciências, além da sociologia. A psicanálise será de grande auxílio. Vocês já repararam como as pessoas mudam de postura quando sentadas em estado de reunião? A voz é outra, a expressão facial também; e o que dizem sempre parece pomposo. Só os mais tímidos demonstram, sem querer, o grande fastio, ou um certo medo. Mas a maioria - sempre a maioria - se sente bastante confortável, no manejo fácil das terminologias próprias a esses encontros. E quem não está nem aí para as siglas se perde completamente dentro de um grande universo cifrado. Porque são nas reuniões que as siglas mostram a que vieram ao mundo. Elas se personificam, ganham status humano, são seres viventes (e bem viventes). Quantas vezes não me confundi ao ouvir falarem de um órgão institucional através da sigla e pensei se tratar de uma mulher, ou de um homem? Na verdade são mesmo homem e mulher, pois que atrás de uma sigla sempre tem um homem grandão de paletó ou uma mulher de salto alto.
E quanto ao ser que preside uma reunião?
Para esse o estudo, a tal tese, ofereceria um capítulo inteiro.
Há vários tipos desses que presidem uma reunião: há aquele bastante sério e cioso de sua responsabilidade; há o brincalhão, que tenta ser simpático a todo custo; há também aquele de ar blasé, com cara de cult, mas bastante adestrado com as terminologias, os prazos, as siglas, as ordens. Há ainda o bonzinho, tão simples, tão humano, mas que vira fera ao ser desafiado: mostra que não é à toa que está naquele posto.
Na platéia, os tipos são interessantíssimos. Desde aquele que tem ar avoado como eu, até o mais pescoçudo: esse opina a todo instante para mostrar seu interesse em todos os assuntos; para mostrar que está com a espada em punho a fim de lutar em prol do desenvolvimento da instituição; não diz verbalmente, porém diz, com seu corpo inflamante e em êxtase, que daria seu sangue por aquela Casa.

Pergunto a mim mesma, e a quem me lê, se não haverá outro caminho para se tratar de assuntos tão árduos?
É, porque pelo jeito as siglas não irão acabar de uma hora para outra; a burocracia maldita também não. Mas será que não há algum outro jeito de tornar esses encontros menos terríveis? São horas e horas perdidas de nossos dias, quando poderíamos ganhá-las numa conversa inteligente sobre a vida, sobre os livros, sobre os filmes. Alguém poderá retrucar agora: mas e a vida prática? Como resolvê-la? Respondo: os livros e os filmes dão dicas valiosíssimas; pena que a maioria das pessoas não sabe disso e não está interessada em saber; e continuam falando sobre regimentos, homologações e o escambau, enquanto a carne de cada um morre um pouco; principalmente a carne daquele que mais vibra, o mais empolgado "reunista".




domingo, 20 de maio de 2012

exéquias


Queria ser do tempo em que se chamava carro de automóvel.
E sentar-me, de lado, na carona de uma lambreta
em turismo sentimental por Roma.
Queria chamar filme de fita
e cinema de cine;
Queria ouvir só mais uma vez
o trio elétrico de minha terra
fazendo carnaval com homens sentados
em cima de um caminhão
tocando violão e cavaquinho.
Queria ver de novo
todos os meus parentes mortos
e suas roupas em preto e branco
vestidas para tirar retrato.
E nossa casa da infância
com plantas fincadas
em latas de querosene
emergir do desaparecimento
suspensa, etérea,
inteira.
Queria dizer vir a óbito
por obséquio
exéquias
réquiem.


Imagem: filme "Candelabro Italiano" (1962)


sexta-feira, 18 de maio de 2012

carta de amor


Tenho muitas caixinhas de guardados. Dentro delas encontram-se cartões; canetas que acabaram a tinta; bombons ausentes há muito; bilhetinhos de alunos; números de telefones sem seus donos; pedras riscadas com data e local, gargantilha com a letra "a" que nunca foi de prata e por isso hoje é escura ganhada do primeiro namorado, e todos os papéis que me trazem, de súbito, a Recife, quando lá me exilei.  Essa caixa, azul, traz principalmente mãe e suas cartas, sempre saudosas e poéticas, escritas no seu português mais íntimo, na sua letra desenhada e amorosa, numa sintaxe das mais sinceras, sem a pontuação que dispersa os sentimentos. Queria muito escanear uma dessas cartas aqui; mas não dá: é muita ternura para ser compartilhada. Deixo para vocês apenas a cópia de uma, com meu coração transbordando de amor pela pureza enorme da alma de quem a escreveu - a pessoa que mais amo nesse mundo.

"Neném

O fim destas é só para darte as minhas notícias e também quero saber as suas e aí como está está tudo bem? Melhorou o nervoso? Voçê não sabe como eu fiquei naquele dia que voçê ligou chorando só pensei que estáva com fome ou que estava sentindo alguma coisa agora vou falar sobre mim eu só não estou melhor porque em 2 mezes eu já perdi 2 unhas, e já tem outra doente estou escrevendo para voçê sentindo dores na unha já não estou mas suportando mas. Olhe fifi esta noite eu sonhei que eu e voçê fomos para andaraí com Zé irmão de Lurdinha quando chegou lá minha unha tinha ficado no carro de Zé. Acho que é porque estava doendo poriço eu estava sonhando.
Olhe fifi Vinícius a vida é pegar o telefone e ligar para voçê. Sim fifi você o filme que nos assistiu aquele dia de Fernanda Monte negro eu assisti. (...) Olhe fifi voçê da um abraço em Celia e dê lembranças para suas outras colegas daí do apartamento de onde voçê esta. Maísa e Vinícius está mandando lembranças estamos com saudades de voçê aseite o meu abraço com muitas saudades de voçê. Nada mas para o momento

Terezinha"




terça-feira, 15 de maio de 2012

conversa de professora universitária (II)


Uma grande e vertical solidão é a do professor falando quase que sozinho dentro de uma sala de aula repleta e completamente ausente, sem compartilhar seus abismos e suas perguntas ao mundo. Do lado de lá dessa ponte intransponível, surgem um e outro aluno com o olhar perdido, nadando com você nesse mar fundo. Um ou dois ou três. Se não fossem eles você talvez desistisse e decidisse pelo afogamento. Mas há dentro de nós, professores, sempre uma vontade de não se afogar, e de tentar ensinar como não fazer isso; ou até ensinar a fazer isso, de maneira mais ou menos literária e libertadora.
Sempre pensei no grande professor como aquele que não precisa exercer a malfadada autoridade. Porém, na maioria das vezes os alunos não sabem lidar com a liberdade, preferindo e exigindo, inconsciente e conscientemente, que o professor seja autoritário. Isso se dá por que para a maioria das pessoas é mais fácil mandar e obedecer de que tentar estabelecer uma relação de confiança com o outro; de confiança e de afeto; e de compreensão.
Mas se não houver um arrebatamento pelo conhecimento, a aula jamais acontecerá.
Hoje há arrebatamento para muitas coisas: internet, facebook, pagode, etc, mas há pouquíssimo para a curiosidade em saber sobre as coisas da vida; e nessas coisas - curiosas - da vida, encontram-se querer conhecer, querer entender - ou apenas contemplar - todos os mistérios.
Talvez a esperança esteja na desconstrução do ambiente escolar.
Tal ambiente tem quase a mesma representação de uma penitenciária, em que todas as liberdades são cerceadas. E se um dos carcereiros dá ao preso a possibilidade de sair, esse não aceita; e provavelmente denunciará tal desobediente carcereiro.
Parece que é mais fácil estar preso.
Para o condicionamento, qual o remédio?
Como professora, ando me fazendo muitas perguntas ultimamente, em meio à grande solidão que eu não imaginava poder existir numa sala de aula.
Como conseguir chegar ao outro sem armas nas mãos?
Como conseguir chegar ao aluno sem a ameaça da prova e a contingência da nota?
Como libertá-lo do condicionamento de sua prisão sem tormentos, sem anseios visíveis de alma, sem inquietações humanas?
Como ensinar-lhe a confiar no meu afeto, aceitando meus presumíveis erros?
Não sei nenhuma resposta para essas perguntas; não sei.
Nesse momento, para me fortalecer, apenas posso entoar o mantra mais profundo da solidão de que tenho notícia, aquela famosa descoberta do personagem de Ibsen já no finalzinho de Um inimigo do povo:
"O homem mais poderoso que há nesse mundo é o que está mais só".



segunda-feira, 14 de maio de 2012

canção para dormir


Voltar aos vinte anos:
o que eu sempre quis.
Juntei, pois, os meus vinis
todos com dedicatórias,
para poder forçar a volta.
Lembrei por detalhe sua roupa,
e o seu amor por mim
que não existia, enfim,
como tudo que há no mundo.
E você foi surgindo
com aquele seu carro
bastante esquisito:
o opala azul escuro
com uma cauda de serpente.
E tinha os mesmos vinte anos;
incrível, os mesmo vinte.



sábado, 5 de maio de 2012

todos os débitos

Devo tanta coisa ao mundo:
respostas às cartas recebidas
há dez anos atrás;
emails atrasados
recibos estrangulados
nas gavetas
contas de luz, água,
faturas de compras
envelhecidas;
tudo, tudo me chama
num clamor absurdo
e desmedido.

Devo tanta coisa ao mundo:
aquele texto nunca enviado
para uma revista literária;
a organização dos livros
a organização dos filmes
a organização da casa.
O favor que anunciei
com bondade exagerada;
O esquecimento sem assombro...

Devo tudo.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

nota de desaparecimento

Não entendo como as coisas e as casas desaparecem.
A casa de meus avós maternos, por exemplo, desapareceu
não de uma vez, mas aos poucos, frente ao mesmo céu
azul de dia claro
de quando íamos visitá-los
em domingos quase eternos.
Desapareceu a imensa sala, o pote ao fundo;
a cama de minha avó, com o retrato de Raimundo
ainda criança, na penteadeira tão velha
com a poeira inteira caindo.
Desapareceu o quarto medonho
com as camas grandes, assombrando
qualquer um de nós, pequenos e grandes.
A cozinha imensa, com a louça brilhando
de tão limpa, e os copos de alumínio
com os nomes de seus donos.
Desapareceu tudo, até o fogão de lenha
E perto dele, minha avó agachada
pitando seu cachimbo.


terça-feira, 1 de maio de 2012

heranças

Quem fabrica as culpas
e suas roupas profundas,
suntuosas, muitas
com brilhos estelares?

Artesão de extrema
convicção de suas linhas,
pega a agulha e tece pontos
em forma de cruz, numa senha

que muitos mortos não decifraram,
levando-os dia a dia a nos rondarem
suntuosos e feridos
com seus sonhos de cadáveres.