sábado, 27 de novembro de 2010

sem fim


Acostumei-me com o que é finito. Por isso é que não consegui ter uma boa vivência com um presente que ganhei de minha irmã, no meu aniversário: um MP-4. Eu me habituei, a vida inteira, a ouvir a música acabar; a levantar e virar o disco; a levantar e mudar o cd; a levantar e desligar a vitrola. Aí, de repente, me deparo com o infinito: o infinito musical. Senti logo que eu iria endoidar se continuasse ouvindo aquilo a viagem inteira. Fiquei encurralada na música que mais amo, diante de uma curva. Ou ela ou eu. Drástica assim mesmo, que tenho os miolos fracos. Sono? Como ter sono ouvindo músicas que nunca nunca acabam? E o tin tin tin tinindo os tímpanos. É preciso dar valor ao presente de uma irmã, não posso, não posso deixar de usufruí-lo; tenho, como ela mesma vive dizendo, que sair do século dezoito, jogar o espartilho e o chapéu fora; e, claro, também o gramofone. Aprisionado dentro de meu ouvido, Roberto Carlos às dúzias, ou melhor, numa dízima. E a diversidade? Como nunca imaginei aos onze anos, deitada naquele sofá de plástico vermelho lá de casa, ao escutar nossa velha radiola. Já duas horas de viagem e a cantoria em pé de guerra. Até que retirei o fone do ouvido, peguei tudo ligeiro e coloquei dentro da bolsa, com uma força que nunca tive. Será que farei algo semelhante ao descobrir-me um dia diante da eternidade?


Imagem: "caminho sem fim". In: www.google.com.br

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

mais um ato


Assumo agora: minha história é melodramática. Nela tem muita intriga, muito choro em surdina, e tomadas terrivelmente piegas, representações medíocres, teatro de quinta, encardido; circo velho, é isso: minha história não vale uma lona de circo velho. Pronto, que frase de efeito! Essa é a minha vida: uma coleção de frases assim, tudo para provar que tenho história. Sempre me achei personagem: me fiz melancólica, patinho feio, a fim de conseguir os holofotes. Sempre quis urdir uma bela trama, por isso vivo a escrever minha vida com enredos simultâneos, jogos de câmera, trilha sonora. Ok, tudo invenção. Não sei se vou parar com isso não; não sei se a verdade surgirá.


Imagem: "ser ou não ser". In: www.google.com.br

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

sobre a tal felicidade


Nunca fiz o mal deliberadamente, e como toda herdeira judaico-cristã trago em mim a grande culpa; porém devo confessar que quero minha felicidade. E querer minha felicidade demanda, não tem jeito, a infelicidade de alguém. Porém, não penso nisso, não penso na infelicidade de alguém que, com a minha felicidade, estará completamente infeliz. Verdade que penso sim, e chego a ficar alegrinha em imaginar a tal infelicidade daquela uma. Portanto, sou um ser humano. Mas o que ganho com a felicidade, que sei, não virá? Sei mesmo, de há muito, que essa coisa não existe não, meu filho, não existe, concordo. E não vou nem começar aqui com aquela história besta e clichê dos momentos felizes. Você sabe que nunca consegui ter um momento completamente feliz? Em todo momento alegre meu, uma formiga me morde. Também aquela tal serenidade não acredito, pois que estou sempre, por puro hábito, em total desespero. Ah, sintonizar pensamentos positivos? Ah, ah, ah. Como? Sou uma antena do infalível medo, ou seja, do que chamam, fatalmente, de negativo. Já viu, né? Não há acerto por aqui, não há. Mas, estúpida, continuo querendo a abestalhada felicidade. Durmo e acordo para isso, me alimento e tomo banho para isso, vivo para isso. Mesmo sabendo ser tudo falácia, engano, simulação, arremedo, fantasia vestida de meus antepassados que, mesmo mortos, continuam na ativa. Só pode ser, de verdade, essa vivência repetida, condicionamento de ideias no plano astral e no cotidiano. Ah, a felicidade é esse sonho apenas, essa vontade de dormir, dormir sem sustos. Talvez por isso é que morremos.

domingo, 21 de novembro de 2010

conversa fiada


Nesses tempos de blogs em silêncio, de muita correria e pouco descanso, num domingo apático e parado no centro da cidade, venho aqui para conversar um pouco. Palrar (eta palavrinha enrolada). Mas que seja, bater um papo. Domingo deve ser o dia de festejo no purgatório: porque é o dia maldito. O que fazem as almas do purgatório no domingo? Sofrem. Sofrem mais do que nos outros dias, porque lá domingo é dia de festejo. Imagine festejo em purgatório! Deve ter insinuações das mais sádicas e masoquistas. As almas penadas penam ainda mais, coitadas. Mas deixemos essa prosa de alma para lá. Mãe rezava para as almas sempre no quintal, dentro de casa não. Dizia que era a reza mais forte que existia, e que mais trazia resultado. Mas nunca se deve rezar dentro de casa, nunca. Ora, imagina-se por que, nem é preciso indagar. As almas têm uma potência do além, já que se libertaram dessa matéria densa e fedorenta. Devem cheirar a jasmim, ou a perfume alfazema, esse que anunciava, em toda casa do interior, a chegada de mais um vivente ao mundo. Hoje os bebês, mesmo do interior, não cheiram mais a alfazema, disso eu me comovo. Que pena dos bebês de hoje, cheirando a perfume da natura ou do boticário. São bebês nascidos em shooping center. Lembro-me bem do enxoval que a mãe do interior fazia no quarto: um monte de vidrinhos forrados de crochê, tudo de uma cor só. O quarto era envolto num enorme segredo, um segredo com cheiro de alfazema e com cores de vidrinhos forrados com ponto de crochê: tão família, tão íntimo. Olhe só, estávamos palrando sobre alma do outro mundo e chegamos em bebês de antigamente. Conversa fiada é assim mesmo.

Imagem: "Bate-papo"(www.google.com.br)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

hoje

GLÁUCIA LEMOS
e GUILHERME RADEL


COMENTÁRIOS: ÂNGELA VILMA E JOACI GÓES
Dia 18 de novembro, às 17 horas
na Academia de Letras da Bahia

domingo, 14 de novembro de 2010

quando sonho com ele


Quando sonho com ele, sua presença invade meu dia. O perfume dele inunda a casa, aí tomamos café juntos, e conversamos animadamente ou ficamos em silêncio, ambos com a xícara no ar, alegres ou reticentes. No almoço ele passa os pratos para mim, nessa mesa que diariamente não tem pratos, nem bocas. Quando sonho com ele, portanto, almoçamos juntos, e dividimos talheres; uma vez meu garfo caiu no chão e ele me deu o dele: esta foi a maior intimidade que um sonho me concedeu. Depois vamos à sesta, nessa cama tão larga, abraçados - como duas crianças. Ai, ai, quando sonho com ele, acordo depois do almoço com muita, muita fome, e vamos juntos à cozinha preparar brigadeiro, e nos lambuzamos com os dedos, doces, mas tão doces que até festejamos essa bondade que é a vida. Essa bondade em forma de presença materializada, que é a presença que ele deixa em mim, na minha alma, quando sonho com ele.


Imagem: www.google.com.br

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

a câmara clara


Esta foto foi tirada em 10 de novembro de 1999, à beira do rio Capibaribe, Recife. Recife bom de Bandeira; Capiberibe de Cabral. Lembro-me exatamente de todos os detalhes desse dia: acordei cedo e resolvi fazer as pazes com a cidade. Estava padecendo demais por lá, desde que cheguei - em março de 1999, estrangeira em todas as instâncias, principalmente as interiores. Naquele dia 10 - dia que para mim sempre tem uma aura diferente, resolvi dar uma trégua, acolher as pontes, o sol, ir no Teatro do Parque, passear pela Recife antiga; enfim, abraçar a cidade; e isso significava além: mudar o olhar; aquela coisa parecida com subir na mesa para ter novos ângulos, como sugeriu o professor no filme sociedade dos poetas mortos.
Sorrio na fotografia; o vento leva meus cabelos para uma outra direção; não sei o que penso, o que espero, tudo é névoa. Sei apenas o que me dá medo. Minha geração é regida pelo signo da infantilidade: sei que queria que mãe estivesse ali, com seus presentes todos embrulhados em papel reaproveitado, com fitinhas retorcidas, também reaproveitadas. Ela com seus múltiplos presentes: relógio de pulso, relógio despertador, calcinha, sutiã, camisola, brinco, tudo enrolado no mesmo papel. Ah, naquele dia azul, tão distante, eu era a mesma, a mesmíssima, menina chorando por dentro, à espera da mãe.
Hoje esse rosto não é mais o mesmo; estou aqui digitando esse texto no meu quarto, em frente à rua do salete. Mãe na sala assiste televisão, depois de ter me dado um monte de presente embrulhado em papel reaproveitado de outros presentes. A infantilidade assombrosa que sempre houve em mim dá mostras de desaparecimento. Ela, mãe, sabe que a filha agora tem sua idade. Nossas rugas conversam, dialogam, e não sabemos mais quem nasceu de quem.

domingo, 7 de novembro de 2010

o sinal de Caim


Abel era pastor de ovelhas e Caim, lavrador. Um dia Caim trouxe "do fruto da terra" "uma oferta ao Senhor". Abel também trouxe-Lhe "das primícias de seu rebanho e da gordura deste". Só que o Senhor gostou mais da oferta de Abel. Por quê?
Essa é uma das grandes perguntas que me faço diante da primeira contenda simbólica de nossa história cristã.
Claro que Caim tinha que ficar com o semblante triste: fora rechaçado.
Não sei, não sabemos, se foi em razão desse trauma inicial, a rejeição, que levou Caim a praticar fratricídio. Mas me parece possível. A dor de ser rejeitado pode levar a psique humana às mais desvairadas instâncias.
Só que Caim, ao matar o irmão, soluça sua triste sina diante do Senhor, e assim este o protege com o sinal: o sinal de Caim - quem o matar "será vingado sete vezes". O sinal é a sua proteção eterna.
Hermann Hesse, em seu livro "Demian", traz essa questão bíblica, que não é nada simples: o sinal de Caim. Ora, não esqueçamos: Caim mata o irmão e é protegido por Deus.
Ao término de "Demian", todos nós leitores achamos que somos depositários do sinal. O personagem Demian diz que o sinal de Caim é o sinal dos corajosos: aqueles que se debruçam sobre o bem e o mal na busca incessante por si mesmo. Abel tem uma passagem apagada na Bíblia, enquanto Caim se tornou herdeiro universal do mal - remetendo-nos a inquietações, perguntas. Se nos inquirirmos por que o Senhor o protegeu, uma resposta plausível é que Deus é o grande detentor e conhecedor das forças enigmáticas e relativas que existem entre o bem e o mal. O deus Abraxas, portanto, trazido à baila por Hesse; deus antigo que foge do pobre maniqueísmo que corrompe a humanidade.
Aí eu me pergunto: o Senhor a quem a Bíblia nomeia pode ser o deus Abraxas?
Lendo com lupa a ambiguidade própria das escrituras sagradas, sim.
Aqui eu termino abruptamente com um verso de Paulo Ricardo B. Silva, meu aluno: "Eu sou o pecado de Deus".


Imagem:"deusdecaim". www.google.com.br

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Mã, Parabéns!

Acho que a minha maior frustração, caso fosse filha única, seria essa: não ter uma irmã. Mas tenho, graças a Deus. Uma irmã forte, com dentes pretos. Uma irmã forte, com cabelos curtos. Uma irmã forte, cujos dedos dos pés são fotocópias dos dedos de pai. Os dedos das mãos longos, as mãos grandes, os olhos expressivos. Toda ela irradia vida e segurança. Tem a timidez própria dos fortes: não se deixa levar na primeira conversa. Arredia, uma típica mulher do signo de escorpião: assume seu veneno com humor. Ficou danada quando fez vinte anos: nosso vizinho achou de morrer no dia 04 de novembro, seu aniversário - não perdoou o morto. Ela é assim: ama-se em demasia. Cuida de si mesma como algo precioso, sem nenhum remorso. E isso é próprio das pessoas fortes. Lembro de sua força, vestida de anjo na festa de Nossa Senhora da Glória: deu uma surra em outro anjo, seu desafeto, asas esvoaçando perto da ponte: violência lírica perdoada por Nossa Senhora. Acho que sempre quis ser ela, na minha inaptidão para enfrentar o mundo, para desbravá-lo, para sair de suas profundezas. O que ela faz com as profundezas? Desliza nelas, delas faz superfícies, escorregadeiras, brincadeiras de menina. Vai deslizando, deslizando, e rindo, rindo. Não sei se ela curou velhas feridas: como aquela, aos três anos, quando o bicho noturno comeu sua galinha. Ou se ficou marcas do primeiro mal concedido ao mundo: apertou um pintinho na mão e matou-o, sem a menor compaixão. Ela é o retrato mais inteiro que tenho do humano, nas suas fissuras comoventes de força, transgressão e afeto.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dia de Sylvia e Ofélia


TULIPAS

Sylvia Plath

(...)

Não queria flores, só me deitar
De mãos para cima e completamente vazia.
Quanta liberdade, você não faz ideia -
A paz é tão imensa que entorpece,
E não pergunta nada, um crachá, coisinhas de nada.
É do que se aproximam os mortos, enfim: e os imagino
Fechando sua boca sobre ela, como hóstia de comunhão.

(...)


PLATH, Sylvia. Ariel. Trad. de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo. Campinas, SP: Verus Editora, 2007, p55.

Imagem: "Ofelia muerta".
(www.google.com.br)