terça-feira, 29 de abril de 2008

Verdade


Sonhava que ias comigo ao Pati. Logo ali em frente. Com as mãos dadas, subíamos e descíamos ladeiras. Chegando no vale uma cena inteira nos esperava: a casa de seu Eduardo, com aquele imenso morro ao lado. Levávamos na mochila, rapadura. E poucas coisas, algumas blusas bem velhas, duas mudas de roupa, uma fartura de quase nada. Diante da primeira pedra, para atravessar o rio, tu me ajudavas: tuas mãos estão molhadas, sinto cada partícula d'água na alma, bem fundo, na alma. No cheiro de mato e vento, alguma coisa nos aguardava. Meu eco respondia, quando tu perguntavas.
Naquela imensidão de fragas tu me abraçavas, eu era tua, como sempre fui, em todas as idades. E a paz absoluta que reinava me dizia que aquele sonho era a única verdade.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Sísifo que sou

Comecei a escrever poesia, aos doze anos, a fim de conquistar um amor. O menino tinha quinze anos e o nome esquisito, e eu me apaixonei por ele. Fiz um montão de poemas. E nenhum conseguiu lhe conquistar. Mesmo assim continuei escrevendo. Continuei amando. Mas nenhum poema meu jamais conseguiu me dar o amor que eu queria. O destino me deu outros amores, mas não pelos caminhos da poesia. Porém, continuei escrevendo, continuei amando... insistente que eu sou, Sísifo que sou, subindo e subindo com esse peso lírico nos ombros.
Descobri hoje, depois de todos esses anos, que a poesia nunca vai ser minha aliada nos caminhos desertos do amor. Eu poderei escrever um montão assim de poemas. Como o menino de quinze anos que amei, ao ler o meu poema, o Amor apenas sorrirá, cheio de si... e seguirá seu caminho sem mim.

domingo, 20 de abril de 2008

PaLaVrAs

Ah... palavras. A vida inteira nossa é costurada (e deslumbrada) por elas. Principalmente na infância. Nunca me esqueço que, nas noites que faltavam energia na nossa cidade, eu e minha irmã inventávamos música com as palavras mais banais que encontrássemos pela frente. Numa noite, o que achamos foi um talco cashmere bouquet em cima da mesa. Começamos logo a cantar, num coro legítimo:

Talco Casmere [assim mesmo]
Bouquete [assim mesmo], perfume em pó
Floral, peso líquido
setecentas gramas, gramas...


Essa melodia acompanha os nossos ouvidos até hoje. E, quando resolvemos entoá-la novamente, rimos muito.

Minha irmã teve, certa feita (acho que aos oito, nove anos), um chamego especial por "Ouça!" Assim, nas férias, não saía do alto-falante da praça, mandando música para Deus e o mundo: "Ouça, fulano, essa música é só sua..." Foi nesse ritmo que, numa manhã nublada, ela mandou para pai: "Ouça, pai, essa música é só sua". A música era "Cale-se"... só porque Chico Buarque começava assim: "Pai, afasta de mim esse cale-se (ou cálice)"...

Ah, palavras. Eu adorava catar palavras desconhecidas nos dicionários para poder colocar nos meus pobres versos. Todo mundo lia e perguntava o significado. Claro que eu tinha de decorar para responder no ato da pergunta, senão ficava desmoralizada. Já disse aqui que "constância" foi uma delas. E eu empregava também "constantemente": palavra cantante, doce, macia, repleta de saliva. As pessoas me achavam culta: uma menina de apenas doze anos e sabendo tantas palavras difíceis!

Um nome que minha irmã adorava, aliás, um nome com sobrenome: "Branca Alves de Lima". Era a autora do livro "Caminho Suave", que líamos na escola. Minha irmã chegou a dizer, na época, que se tivesse uma filha colocaria o nome BRANCA ALVES DE LIMA. Até hoje busca o CAMINHO SUAVE nos sebos. Lembro muito bem desse livro: era de alfabetização, e contava a história de uma família feliz: com mãe, pai, avó, avô, cachorro e amiguinhos, numa casa linda e fofa... Tudo muito arrumadinho, perfeito, como a vida, de fato, jamais seria. O cachorro se chamava Totó e tinha também uma casinha linda, verde...

Nesse tempo admirávamos até os cacoetes. Pai tinha o "né" no final de cada frase. Nas noites em que ficava na sala conversando com um compadre seu, resolvíamos contar os "né" ditos por ele. Do quarto, querendo dormir e não podendo com o falatório dos dois, começávamos a contar os "né". Quando chegávamos a uns duzentos, dávamos gargalhadas. o compadre se tocava e dizia que estava tarde, ia embora, pois "as meninas querem dormir".
"Aí" também sempre foi nosso mais querido cacoete. Quando uma fala a outra conta, e vice-versa.

Ah palavras, cheias de graça, continuem perto de nós. Amém.

"Peregrina paloma imaginaria"

Jorge Luis Borges nos fala da suficiência do verso por sua própria existência, não como plenitude de sentidos. Diz que alguns versos "não são destinados a ter nenhum sentido", e subsistem apenas por ser "belos".*
Nós temos uma mania de procurar sentido nas coisas, principalmente na arte; rastrear significações, pontuações, tudo. Enquanto que o ideal é que ficássemos calados, sentindo apenas. Como nos sugere Borges com esses despretensiosos versos de Ricardo Jaimes Freire, poeta boliviano:

Peregrina paloma imaginaria
Que enardeces los últimos amores
Alma de luz, de música y de flores
Peregrina paloma imaginaria.


O que significam? Faço eco a Borges:
"Não significam nada".
São maravilhosos.

*BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

sábado, 19 de abril de 2008

É quase maio

Vai estar sempre mesmo faltando algo. Viajo, vou para além das montanhas, mas sinto falta. De alguma coisa desgarrada de mim, que nem sei o que é. Vou conviver com esse espaço em branco até a eternidade. Lá, na ausência de tempo, talvez eu não sinta mais tal lacuna, e sobrevoa os campos, cidades e pessoas sem precisar sustentar esse vácuo. Pois imagino uma eternidade repleta de leveza, nem eu vou me sentir... vou ser pluma, sem precisar pensar em qual direção seguir... O dia não será mais peso, tudo será eternidade: relógios não mais existirão... Mas até eu chegar lá, é preciso todos os dias conviver com esse negócio que falta e dói, e que nem eu mesma sei o que é.
Será Deus?
O que será Deus?
Tanto desenhamos Deus como homem que não conseguimos enxergá-lo fora dessa limitada imagem humana.
Deus será um sopro bem leve no nosso ouvido?
Um cheiro de café, num finalzinho de tarde?
Ou será algo macio, mas tão macio como um estado de alma?
Ou algo tão gostoso como um tablete de chocolate meio amargo?
Ou nada disso, nada disso, nada disso?
Apenas será um buraco dentro da noite? Onde eu sempre caio?
Ah, Deus, diga-me logo, é quase maio, e o Mundo pode acabar em fogo.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Balas de mel

Tem dias assim que não são para viver. São para escrever, para lembrar, para ler, para olhar a tarde morrer. Nunca me esqueci do gosto da primeira bala de mel que chupei: o mel do finzinho da bala era o prêmio: desceu grosso pela minha garganta que pouco conhecia muitos sabores. Lembro que era uma bala partida ao meio: um pedaço para mim, outro para minha irmã. Nem foi por questões de economia, foi por questões de bizarrices de mãe mesmo. Desde cedo, pois, tento aprender a viver pela metade, o que não é coisa que preste para ninguém. Sempre dividi com minha irmã muitas coisas: quarto, atenção, amigos, sorrisos, carinhos. Nesse meio a meio a sabida de minha irmã saiu ganhando, claro. Na hora de dividir nunca consigo tirar um taco maior, nem que seja por displicência. (Leva-se em conta aqui a questão de que jamais há a possibilidade de se dividir algo de igual para igual. Então, quem for sabido que vá lá e tire nem que seja uma lasquinha de vantagem.) Sempre fui lerda para isso; às vezes tirava o taco menor, por pura vontade de não ser vista. E assim pela vida vou andando: dividindo, dividindo e diminuindo...
Numa coisa mãe foi sábia: nunca deixou dividirmos os mesmos livros da escola. Ela dizia que livros de escola não se dividia: cada uma com o seu. Ah, que delícia poder ter meus livros! Acho que nasceu daí o gosto pela exclusividade... que levei vida afora misturado ao gosto contrariado pela divisão.
Para os politicamente corretos volto a dizer: não quero mais dividir, principalmente bala de mel. Quero uma só para mim. E que o gosto grosso do mel desça inteiro pela minha garganta, e que eu saboreie infinitamente o prêmio da exclusividade. O mesmo que fez com que eu nascesse.
A CADA SUSTO

A menina tinha um vestido curto
E um amigo morto: o ausente absoluto.
Nas manhãs ela acordava, e lá estava ele
Atrás do muro; e, ao anoitecer, solto no quarto.

Solto no quarto, a irromper outros mortos
Da sacola de talismãs, gritando alto
Coisas que só os adultos poderiam ouvir.
Mas a menina suspeitava; e se aliviava a cada susto.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O lado fatal

"O lado fatal": este é o livro de poesia que Lya Luft escreveu para Hélio Pellegrino, seu grande amor, logo após sua morte, depois de viverem apenas três anos juntos. Ler um livro desses como a narrativa do amor e da perda, faz a gente, do lado de cá, sentir a mesma coisa...
Dar adeus sempre dói... perdemos fatalmente um lado de nós.

"O meu amado era velho e moço
ríspido e cândido
apaixonado e solitário
e compreendeu minha atormentada alma como ninguém.

Achava graça em mim algumas vezes.
Mas quando eu lhe dizia sentir medo sem razão
no meio da noite
(com certeza antecipando a separação que sobrevinha)
ele me abraçava calado e sombrio, dizendo:
"É para se ter medo mesmo."

Não pronunciávamos então a palavra temida
que talvez nos espreitasse nos cantos do quarto.
Só nessas ocasiões ele não me explicava nada."


(IN: LUFT, Lya. O lado fatal. Rio de Janeiro: Rocco: 1989, p. 67.)

sábado, 12 de abril de 2008

Aos doze anos

Aos doze anos comecei a entrar no "universo da poesia". Ops!, primeiro entrei no "universo das quadrinhas". Vivia a procurar rimas. Na hora de dormir, perguntava insistentemente à minha irmã qual a rima que ela conhecia para tal e tal palavra. Resultado: no outro dia, quadrinha... para "meu time O Bahia", para os colegas, para os professores, para minha rua, para minha cidade, etc, etc, etc... Lembro muito bem quando descobri a maravilha que era escrever a palavra "constância". Vivia a colocá-la nos versos, sem nenhum pudor da repetição. Era num caderno grosso, meu Deus (imitando aqui Clarice), que eu escrevia tanta bobagem. Na primeira página: "Minhas primeiras poesias". Do lado esquerdo a imagem enorme de uma baiana vendendo acarajé. Até hoje me pergunto por que tal imagem; eu que sempre estive tão longe do acarajé e tão mais perto do godó. Sei lá, vá entender a cabeça de uma menina de doze anos. Sei que o caderno durou muito, já que era tão grosso e pretensioso. E famoso (que me perdoem a rima inoportuna), pois todo mundo na cidade falava dele. Além de muitas pessoas me encomendarem poemas, queriam lê-lo. Pai ficava cheio de orgulho e alarmava para todos a maravilhosa vocação da filha. Só que eu não lhe mostrava os poemas de amor: só deixava ele ler as quadrinhas inocentes.
Foi num domingo à noite. Não tive escapatória. Depois de ele insistir uns três meses para ler o caderno inteiro, à sós, como sempre gostava de ler: antes de dormir, não encontrei mais desculpas. E assim como lia todos os cadernos do jornal, nesse domingo ele leu, até altas horas da madrugada, meu caderno de poesia inteirinho... Do quarto eu ouvia, com o coração batendo forte, o som de seus dedos passando as folhas...

terça-feira, 8 de abril de 2008

Parabéns, amiga!

Em homenagem à aniversariante do dia 09 de abril:
Esse lindo e comovente poema de Mônica Menezes...
(Desculpe, amiga, mas essa máquina terrestre desarrumou os teus versos... e eu não consegui colocá-los na ordem original...)

Quando dos teus sessenta anos

Hoje, quando completaria sessenta anos, meu pai,
eu te dou as minhas mãos
e tocarei por ti o vermelho solo que amava
Dou-lhe também os meus olhos
e espiarei por ti as águas turvas do rio que tantas vezes inundou a nossa estrada

Meu pai, serão tuas hoje as minhas pernas e pés
e caminharei por ti pelos longos caminhos da nossa terra para sempre perdida
e subirei no alto da Pedreira
e de lá avistarei a nossa casa amarela com suas seis crianças brincando nos
galhos da mangueira

Hoje, serás tua a minha boca, meu pai,
e beberei por ti todo o vinho
e devorarei toda a fruta

e sorrirei despudorada aquele teu sorriso largo
e me embriagarei de vida e de morte e de vida e de morte
e de vida

Hoje, no dia em que completaria sessenta anos, meu pai,
eu repetirei teu nome
e me consagrarei tua herdeira
carne da tua carne
sangue do teu sangue
Humana e louca serei
como sempre fostes, meu pai,
Para sempre tua filha


Mônica Menezes

24.02.2008

sábado, 5 de abril de 2008

Voltando a voar

"Venho do ar, da multiplicação de sombras,
cheiros se cruzando".


Ah se eu tivesse escrito versos assim... Tais versos são de meu "aero-amigo" Murilo Mendes, ser que freqüento hoje, para que eu possa ganhar um pedaço de nuvem do céu. E ele diz, bem baixinho no meu ouvido...

"(...) Há qualquer
coisa esperando no ar, pressentimento de outras
distâncias, realidades paralelas a esta,
espíritos puros nascendo, o amor
aproximando as formas."


... Só a poesia dá sopro à minha aeronave. E Murilo Mendes brinca com ela na janela do meu quarto me chamando para voar. E rindo seu riso transcendente recita para mim, mais uma vez, o início de seu tão conhecido "Mapa", para que eu também ria, quem sabe...

"Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação."


Corta todo o poema... e quase recita o final...

"(...) Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar, (...)"


... Vejo-o dentro da aeronave. Ele me dá a mão e eu entro. Ele vai dirigir. Quando subimos, ouço-o declamar, em tom confessional, dentro de uma nuvem...

"Me casei com a minha mulher
e com todo o passado dela.
Sou pai dos meus filhos,
do filho que ela teve com o amante antigo
e dos filhos que eu já vejo andando no ar."


... Trocamos versos confessionais, rimos, enquanto um vento fresquinho nos põe dentro de outra nuvem... Ah, Murilo, você é uma excelente companhia para voar...

terça-feira, 1 de abril de 2008

Deus e o Diabo na Terra do Sol

Fiquei dois dias assistindo ao filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Nesses dois dias vivi no preto e branco das roupas do sertão esturricado de Monte Santo. Queria, assim como aquele povo, que o sertão virasse mar. Delirei em círculos com o beijo de Rosa e Corisco ao som da Bachiana número 5 de Villa-Lobos. Cantei o cordel, ora lento, ora triste, ora movimentado, ora trágico, na voz do cantador-narrador. Segui a estória até o fim, e depois voltei ao início. Várias vezes. De novo Rosa, de novo Manuel, de novo Deus, de novo o Diabo. Os monólogos teatrais de Othon Bastos, na pele de Corisco, são um espetáculo para ser ver sozinho, no escuro. Para que o coração sinta, com mais força. Ah, e a ambigüidade de Antônio das Mortes, o matador de cangaceiro! O remorso no homem que não tinha "santo padroeiro" é para se ver várias vezes através do olhar misterioso de Maurício do Valle. Além da lucidez, serenidade e força das personagens Rosa e Dadá... Filme espetáculo, rosiano, doce, terrível...
E no final encontramos o mar... Encontrando também, nas entrelinhas da genialidade glauberiana, a unidade na complexidade daquilo que chamamos Deus e Diabo. Que chamamos Homem.