Ah... palavras. A vida inteira nossa é costurada (e deslumbrada) por elas. Principalmente na infância. Nunca me esqueço que, nas noites que faltavam energia na nossa cidade, eu e minha irmã inventávamos música com as palavras mais banais que encontrássemos pela frente. Numa noite, o que achamos foi um talco cashmere bouquet em cima da mesa. Começamos logo a cantar, num coro legítimo:
Talco Casmere [assim mesmo]
Bouquete [assim mesmo], perfume em pó
Floral, peso líquido
setecentas gramas, gramas...
Essa melodia acompanha os nossos ouvidos até hoje. E, quando resolvemos entoá-la novamente, rimos muito.
Minha irmã teve, certa feita (acho que aos oito, nove anos), um chamego especial por "Ouça!" Assim, nas férias, não saía do alto-falante da praça, mandando música para Deus e o mundo: "Ouça, fulano, essa música é só sua..." Foi nesse ritmo que, numa manhã nublada, ela mandou para pai: "Ouça, pai, essa música é só sua". A música era "Cale-se"... só porque Chico Buarque começava assim: "Pai, afasta de mim esse cale-se (ou cálice)"...
Ah, palavras. Eu adorava catar palavras desconhecidas nos dicionários para poder colocar nos meus pobres versos. Todo mundo lia e perguntava o significado. Claro que eu tinha de decorar para responder no ato da pergunta, senão ficava desmoralizada. Já disse aqui que "constância" foi uma delas. E eu empregava também "constantemente": palavra cantante, doce, macia, repleta de saliva. As pessoas me achavam culta: uma menina de apenas doze anos e sabendo tantas palavras difíceis!
Um nome que minha irmã adorava, aliás, um nome com sobrenome: "Branca Alves de Lima". Era a autora do livro "Caminho Suave", que líamos na escola. Minha irmã chegou a dizer, na época, que se tivesse uma filha colocaria o nome BRANCA ALVES DE LIMA. Até hoje busca o CAMINHO SUAVE nos sebos. Lembro muito bem desse livro: era de alfabetização, e contava a história de uma família feliz: com mãe, pai, avó, avô, cachorro e amiguinhos, numa casa linda e fofa... Tudo muito arrumadinho, perfeito, como a vida, de fato, jamais seria. O cachorro se chamava Totó e tinha também uma casinha linda, verde...
Nesse tempo admirávamos até os cacoetes. Pai tinha o "né" no final de cada frase. Nas noites em que ficava na sala conversando com um compadre seu, resolvíamos contar os "né" ditos por ele. Do quarto, querendo dormir e não podendo com o falatório dos dois, começávamos a contar os "né". Quando chegávamos a uns duzentos, dávamos gargalhadas. Aí o compadre se tocava e dizia que estava tarde, ia embora, pois "as meninas querem dormir".
"Aí" também sempre foi nosso mais querido cacoete. Quando uma fala a outra conta, e vice-versa.
Ah palavras, cheias de graça, continuem perto de nós. Amém.
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3 comentários:
Nauta,
Sempre que leio seus textos me emociono com a infância que não tive.
Beijos,
Renata
Amém.
Mulher de asas, tou com saudades de você.
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