quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Ela


A literatura. Por isso não me matei aos 15. Havia um enigma naquilo tudo, nas entrelinhas das letras, entre os livros. Talvez o formato de uma forca, uma guilhotina, onde eu pudesse cometer, de fato, todos os crimes propícios. Matar minha professora de educação física, que ensinou meu corpo a se humilhar nos espetáculos públicos.
Foi ela: a deusa malvada com flores na mão, morando numa estante abandonada... Ensinou-me a justiça, a condolência, o ódio supremo, a mais perturbadora ternura. Se não fosse isso, o que seria dessa vontade imensa de um abraço completo, sem qualquer reserva ou medo? Essa força que vem de meu desamparo mais profundo? Essa vida insistente, crédula, à espera de Deus?



Imagem: "Creo esperar..", por Nomejdigaas.
(www.flickr.com
)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

uma manhã no inferno


Você quer passar uma manhã no inferno?
Acorde cedo, arrume sua pasta de documentos para autenticar e dê uma de sabido: chegue não oito e meia ao cartório, mas oito; assim você será o primeiro a ser contemplado no atendimento. Portanto, bote o despertador pra tocar, se arrume e vá para a politécnica, pertinho de casa. Chegando lá, apronte seu psicológico pra ter uma baita surpresa: a fila que lhe espera dá dois metros, fazendo círculos. Você não acreditará, e irromperá para a porta fechada. Os outros, que provavelmente foram mais sabidos ao chegarem pelas seis da manhã, lhe darão um grito para você ir ficar no seu devido lugar, ou seja, no lugar de quem chegou por último. Leve seu relógio, você vai precisar dele para toda hora olhar o tempo; pelo menos nas próximas duas horas, vendo a fila crescer mais e mais, e a porta não abrir. Pronto: você está no seu limite, a porta não se abre, e alguns desistem. Você, na sua sabedoria de sempre, pensa que as pessoas desistindo é melhor, pois assim será atendido logo. Persiste. A fila diminui, já vai dar dez da manhã e a porta do cartório continua fechada. Você tem um anjo da guarda e ele grita no seu ouvido o óbvio: procure outro cartório, esse aí resolveu queimar a sexta-feira. Você sai da fila, sempre olhando pra trás, quem sabe a porta não se abre? Você resolve buscar outro lugar, e toma rumo na avenida joana angélica, direto para o fórum da cidade - não é possível que num fórum não autentiquem documentos. O sol das quase dez queima seu cocoruto, o suor já desce pela barriga, mas você finalmente chega ao fórum. A moça que o atende, com a cara sem nenhum suor e nenhum fio de cabelo em desalinho, diz que ali não autenticam documentos; que você vá para o shopping da baixa dos sapateiros. Você, forte, desce a ladeira que dá para o tal lugar. Chega e pede informações. Fica no segundo piso. Uma moça gorda lhe aguarda com um papel branco, do seu tamanho, mal escrito em letras azuis: "sem sistema". Mesmo assim sua esperança lhe empurra para o diálogo miserável: onde eu posso autenticar esses documentos? Ela repetirá: sem sistema. E você: o que faço? Ela: nada, está tudo parado. Uma tagarelinha atrás de você vai gritar: moça, no comércio está funcionando, vim de lá agora. Você: como eu faço pra ir ao comércio daqui mesmo? Desça a baixa dos sapateiros toda e quando chegar nos bombeiros suba a ladeirona: você vai dar de cara com o elevador; aí é só descer.
Com uma vontade heróica de desafiar o destino, você segue em frente. Agora já é questão de capricho. Depois de andar muito, você se depara com uma ladeira em pé. Você bota uma força a mais nas pernas - já com ódio - e sobe. Chega no elevador lacerda. Fila. Enorme. Espera. Tenta ser otimista e olha o mar, num contraste com o calor e o suor fedorento e terrível que lhe acompanha. Enfim, descendo, e pronto: você já está na cidade baixa. Vai em busca da Avenida Estados Unidos. Espera quase meia hora para atravessar duas ruas. O sol tinindo. Pronto: já está na Estados Unidos. Interpela um ambulante: onde fica o cartório tal e tal e tal? Ele: vá andando, é lá na frente. Enfim, você está agora na sombra, dá até pra tomar uma água de coco. Você toma. E segue. Lá lá no fim, você avista o prédio. É um prédio verde-cinza. Pega o elevador. Quinto andar. Entra no Tabelionato. O problema é que você tem esperanças demais: pensa sempre que será logo atendido. Qual! Você abre a porta e pega a ficha número 105. Olha o painel e este marca o número 77. Você busca lugar pra se sentar, e só tem um bem apertado, lá no fundo. Você se queixa com um seu companheiro de infortúnio, ali sentado. Ele lhe diz pra tentar o cartório do sexto andar, que lá é mais rápido. Você é crédulo, levanta-se em busca do sexto andar. Espera o elevador. Como ele demora, você sobe as escadas. Chegando lá, sala apinhada. Você pega a ficha 54 e olha para o painel: está marcando a 22. Você se sente uma besta: tá tudo igual, e pensa vou voltar para o outro, lá pelo menos tem ar refrigerado. Você volta, a sala está mais apinhada. Você tenta se acalmar, chama pelo anjo da guarda. Você percebe seu anjo da guarda se fazendo de desentendido. Pensa: sairei daqui lá pelas seis da tarde. Acha um lugar menos desconfortável e aguarda. Você está fedendo mais, seu cabelo uma peste. Você se resigna. E fica olhando para o painel: a cada viradinha de número há uma musiquinha. E todos, todos os seus companheiros de infortúnio, olham para o painel nessa hora. Para cada número virar, dura uma eternidade. E lá não tem nenhuma revista para folhear. Você então resolve prestar atenção nas pessoas, companheiras de miséria humana. Algumas com o olhar compungido, outras com os olhos vibrando de ódio, mas todos rigorosamente sentados. Só os chegantes ficam em pé; claro, não há mais lugar disponível. O olhar desses é de inveja: olham para os sentados com os olhos mortos, cinza. Ah, você se resigna, sente até vontade de puxar prosa com um vizinho de cadeira, mas percebe que será uma prosa de lamentação. Você desiste, e espera, olhando sempre para o painel. Vê que tem uma televisão no recinto, e ela está chuviscando, e fica ora parcialmente colorida, ora em preto e branco. E passa um programa imbecil. Você volta a olhar para o painel e interroga seu anjo da guarda: cadê você, moço? Você escuta uma vozinha por dentro dizendo que agora vai dar tudo certo, é só aguardar. Tlin... o painel. Número 100! Você nem acredita. Até que está passando rápido, você pensa, otimista e besta. Apruma seus documentos, tira-os do envelope e aguarda sua vez. Pronto! Chegou sua vez. Você vai para o guichê. Quem está do outro lado é uma demônia com dois brincos enormes, com formato de flor. Traz colares enormes e uma gargantilha com a letra R. Ela lhe olha enfezada. Não responde ao seu bom-dia. Mas pega seus documentos. Nessa hora chegam dois pedidores de informação. Ela para tudo para informar às duas criaturas que estão quase lhe empurrando do guichê. Seu ódio vai tomando proporções alarmantes, você tem medo até de desmaiar. Os pedidores de informação chegando, de minuto a minuto. Então, no meio de uma informação dada, a demônia de brincos enormes de flor olha pra sua cara como quem quer lhe dar um tapa, e diz que o histórico precisa ser xerocado. Aí você diz: olha aí a xerox. E ela: está colorida. Você: Cadê o colorido? Aqui. E lhe mostra uma assinatura que, segundo ela, está assinada com tinta preta. Aí você não aguenta, e começa a falar: Moça, por favor, estou desde as oito horas no mundo... Ela lhe interrompe: desça e tire xerox na farmácia santana e depois suba com o material. Ô anjo da guarda, você chama de novo. Então Carlos Pena Filho constata, grave, no seu ouvido: "... quando até Deus em silêncio se afastar..." Lágrimas descem, você se sente injustiçado demais. Mas vai em busca da farmácia santana, da xerox. A moça diz que não é lá não, é na lan house vizinha. Você não esmorece, mesmo sentindo suas forças minguarem. Na lan house uma outra fila. Enorme. Mas, enfim, você já está ficando acostumado com filas. E suas lágrimas lhe impedem de pensar. Espera. Chega sua vez. Tira a xerox. Volta para o cartório. Lá no guichê tem uma pessoa sendo atendida e dois pedidores de informação. Você está com ódio manso, o pior dos ódios. Mas é humilde, e torce para que a demônia não veja mais o colorido nessa xerox recém-tirada. Enfim. Tudo deu certo. Você conseguiu. Na saída, olha o relógio: meio dia. Você vai direto buscar um ponto de ônibus. Não acha. Resolve subir o elevador lacerda. Chegando na cidade alta, busca um ponto. Há ponto, mas não há ônibus. Você resolve voltar andando para casa. O sol quente, o pé cheio de bolhas, os cabelos desgrenhados, você não se sente um mártir, mas um vivente infeliz. Sobe a ladeira de são bento, chega na piedade. Resolve almoçar no shopping lapa. Lá, o anjo da guarda decide trabalhar e acaba com a fila para almoço. Você não pega fila, portanto. Senta-se para almoçar e não pensa em mais nada. Sonâmbula, engole, sonâmbula toma um sorvete, ainda numa tonta perseguição ao lúdico. Sai do shopping e, a caminho de casa, tem mais sol fervente à sua espera. Verga-se a ele, entra no caldeirão humano, tropeça aqui, tropeça ali e chega. Cai no sofá, num choro convulsivo, sentindo o cheiro fétido de decomposição da alma.


Imagem: "Multiple Kafkas", por Lautreamax.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

De todas as histórias


CONDIÇÃO



Mônica Menezes



Meu destino foi grafado no mesmo livro

em que inscreveram as histórias da minha avó, da minha mãe

e de muitas outras mulheres



Esse é o livro que trago sempre comigo

e no qual me reescrevo todos os dias,

insistentemente,

sobre letras milenares





Imagem: "Para saber amor", por Paulo Amoreira.
(www.flickr.com
)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Diário Arcaico


Como despedir-me de mim,
Antiga, vestida com um capote
Bordado por minha mãe?
Eu, no seu colo, tinha os olhos
Espantados para o mundo.
Ali eu me esquecia de quase tudo
Até das bonecas, que só mais tarde
Esqueceria de verdade.

Conseguirei despedir-me pra sempre
Daquela gente que rodeava a praça
Para um retrato histórico?
Era um mero batizado
O sol turvava meu rosto
E eu tentava aprender, a custo,
Como desviar-me dele.
O vestido que eu usava era branco,
Curto, com uns bordados invisíveis
Pelos cantos, em círculos.
Eram bastante nítidos
Meus três anos de idade.

Conseguirei, um dia, desviar-me
Daquela menina esquisita
Que eu, na vida, me transformara?
Irrequieta, quieta, morta e viva,
Alegre e triste, etérea e pálida?
E que andava sozinha pelo mundo
Embriagada pelas vontades mudas?
Conseguirei, de verdade, ignorá-la?
Ela que sempre me acompanha
Insólita, pelas tardes, sem nenhuma fala?...

Conseguirei, às noites, ver-me de novo
Deitada no berço, em meio à coberta
Que era do meu tamanho?
Era sempre uma noite longa
Era sempre uma noite alta
E o sono me entorpecia
Trazendo-me de volta
Transparente, esquecida
Para o dia que longo vinha.

Amanhecia, e eu adorava
Ou nem sabia que adorava.
Conseguirei despedir-me desses dias?
Conseguirei avistar-me, sozinha?
O que fazer, se isso acontecer?
Correr, ou abraçar-me,
Ou finalmente morrer?
Poderei reaver meus vestidos
Para descobrir alguns segredos?
E se não houver segredos?
Como, enfim, tarde ou cedo,
Deixar-me, ou levar-me, com a face
Desaparecida nos espelhos?


(Salvador, 28.08.05)

Imagem: "Traços sobre vermelho", por Maria Fernanda P. Barreira.
(www.flickr.com)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

"rito de passagem"


Ontem alguém me perguntou "onde passei a ilusão". Tranquilamente respondi "passei em casa". Não quis alongar-me na conversa (ultimamente ando com muita preguiça), mas passagem de ano é tudo, menos ilusão. O imaginário coletivo já cunhou há muito tempo no mundo esse símbolo: não há como retirá-lo de nossa psique. Portanto, é um recomeço, não tem jeito. A ilusão, acredito, está na repetição dos festejos - que, como todo lugar comum, perde a força. Hoje tenho o maior constrangimento em desejar feliz 2010 a alguém: não acredito na frase, apesar de desejá-la verdadeira; a frase nega a veracidade de minha alma. A frase banalizou-se, virou comércio. O que fazer, meu Deus, com meus sentimentos? Quais palavras dirão ao menos um pouco deles? Nenhuma palavra conseguirá. Por isso fiquei muda nesses dias. Fiquei muda, sem uma palavra que significasse o símbolo - o símbolo, pois não há como retirá-lo de mim. Claro, é recomeço; e não é só o calendário proclamando isso, é minha alma muda.
Porém, como todo recomeço, é recheado de repetição. Afinal tudo se repete... Ser condenado a se repetir, a tomar banho todos os dias, a comer todos os dias, a dormir todos os dias... essa coisa cíclica é um filme de terror. Conheço todos os caminhos da segunda, da terça, da quarta, de janeiro, fevereiro, março... Mas minha alma insiste no símbolo. O símbolo da transfiguração, da mudança, do divino. Nunca nem vi alma do outro mundo, mas intuo. Intuo constelações de felicidades amenas em outras almas que vejo, por aqui mesmo. Acredito, ah, acredito na felicidade. Há coisa mais piegas?, Acreditar na felicidade? Há coisa mais grave? É tudo mentira, eu sei. O que ainda não aprendi é rastrear com acuidade e inteligência essa mentira.


Não se iluda, a vida dos seres humanos, tanto na dimensão coletiva quanto na individual, é sempre montada sobre um mito, sobre uma lenda, sobre uma mentira, enfim. (Juan José Millás, in "Laura e Julio")



Imagem: "Fada da ilusão"-MysticalBlessing-2000, por tatinha2007.
(www.flickr.com)