segunda-feira, 19 de setembro de 2011

sobre o inquilino e a dona da casa


Desde a primeira vez em que escrevi um verso, na sala de aula (aos doze anos), ganhei o epíteto de poetisa. Fui poeta municipal por anos a fio, e mesmo saindo de minha cidade continuo poeta municipal. Fui para Feira de Santana, e lá a poetisa ganhou ares universitários, fez até oficina de criação literária - o que lhe amargou um ano sem pegar na pena. Como se ensina a escrever poesia? Nas oficinas há alguns macetes, dicas boas, mas também há o perigo e a salvação de a autoestima ou baixar de vez ou cair na real. Pra mim foram as duas coisas: caí na real, não era essa poetisa toda que diziam na minha terra; ao mesmo tempo meu superego foi cruel: me jogou no poço mais fundo, que é lá onde deve ficar quem escreve literatice. Consegui, depois de muitos anos, ir subindo esse poço, mas ainda não cheguei na metade, vejo que falta muito para o cume dele, e nunca chegarei lá. Ainda bem que não chegarei. Meu superego é guarda que não cochila, e nesse caso somos amigos. É bom que ele não cochile, é bom. Não quero me transformar nesses seres que andam por aí com roupa de poeta, pasta de poeta, palavra de poeta. E mesmo porque a poesia só nos busca quando ela quer: tem mais de nove meses que não escrevo um verso; então, cadê a poetisa? A poesia dormita, a poesia é temperamental, a poesia escolhe o seu momento de aparecer. Nós, que vez ou outra escrevemos poesia, apenas somos seus míseros inquilinos. Um dia, quem sabe, depois de anos sem dar as caras, ela chega e comete o ato justo de nos colocar para fora de sua casa.

sábado, 17 de setembro de 2011

Ofélia


Em mim a vida não é ininterrupta. Ela pára, ela pára. Às vezes isso acontece nos momentos mais inapropriados. Já aconteceu isso em plena sala de aula, em meio à felicidade. Outras, na extrema infelicidade: no enfrentamento de uma fila cruel. Quando isso acontece eu deixo de ser eu, perco a identidade, fico flutuando no universo; partes de mim se desintegram e o ar não as absorve - permaneço em peso. Uma matéria obtusa ocupando a destreza do mundo; é, porque o mundo é movimento, capacidade, agilidade de mão e contramão. Enquanto que eu apenas rodo em círculos, parando, a morrer, cantando a música de Ofélia e não o sentimento de Hamlet.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A beleza dos versos de Lívia Natália


Na última terça-feira houve o lançamento do livro de Lívia, minha amiga querida, poetisa iluminada das águas; livro belíssimo, que ganhou o Prêmio Banco Capital 2011, e que se inscreve no universo como mais um presente precioso doado a nós, seres que trafegam pelas "rotas insondáveis". Leiam abaixo uma pequena amostra da beleza dos versos de Lívia.


Relicário

Lívia Natália

Meu corpo é das delicadezas,
enxovais completos,
toalhas brocadas,
iniciais maiúsculas no tapete do chão.

Meu corpo é um antiquário -
memória fina do inútil,
seara do translúcido.

Meu corpo é das delicadezas,
asas de transparente voar,
périplo de rotas insondáveis.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

fragmentos circenses


Minha irmã sempre me diz: "Você nunca perderá essa cara de pobre". Mas se eu sou pobre?, respondo. "Pobre da roça", replica ela. "Pobre da roça tem cara de pobre da roça onde ele for, mesmo vestido de cetim na entrega do oscar", diz ela. É a herança congênita de Macabéa, digo eu. Quem leva para sempre na vida a cara de pobre da roça terá panos na cara, mesmo que esteja fazendo tratamento de pele com o melhor dermatologista da cidade grande. Panos enormes na cara, e esse jeito de tabaroa, que nunca perderá. Esse jeito acanhado de quem busca a parede, sempre a parede do canto para se apoiar, livrando-se do restante do mundo. Jeito de quem não quer ser visto. Jeito de quem quer passar despercebido, de uma vez por todas.
Quando eu tinha dez anos de idade o retratista chegou lá em casa, numa noite de são joão, e eu, quando o vi, me escondi debaixo do sofá. Só que sempre fui desajeitada, me escondi mas deixei os pés de fora. O retratista mandou brasa e tirou o retrato dos pés do lado de fora. Para todo mundo que chegava lá em casa mãe prontamente ia buscar o retrato com fins de exibição: virei atração de circo de péssima categoria. Só que certa tarde chegou lá em casa uma professora, uma professora delicada, que talvez tenha lido Clarice Lispector, e se interessou muito pelo retrato. Interessou-se tanto que pediu aquela foto de presente. Claro, na mesma hora o retrato estava nas suas mãos; afinal, para que mãe queria guardar aquilo? Todo mundo já riu o suficiente com ele, e o circo, como já disse, era de péssima categoria.


Imagem: www.google.com.br

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

marcha, soldado


Sair do senso comum sempre foi ambição da literatura, dos escritores. Mas não houve quem mais conseguiu isso que Kafka. Flaubert conseguiu delatar o senso comum com "Bouvard e Pécuchet", e Kafka conseguiu driblar o senso comum com toda a sua obra, e no próprio corpo da linguagem; uma linguagem estranha, em que o homem é posto em exílio perpétuo, e onde há possível esperança ou redenção, ou não: nenhuma esperança, nenhuma redenção. Tudo cabe dentro da interpretação da obra de Kafka, ao mesmo tempo em que nada cabe. Quem diz bem, e belamente, sobre ela é Maurice Blanchot, num livro magnífico: "A parte do fogo".
Devia ser essa a ambição de todo homem, em toda e qualquer instância: sair do senso comum. Tentar não se repetir, tentar dizer e fazer coisas diferentes, livrar-se de uma vez por todas desse legado medíocre e estúpido que é o convencionalismo humano; livrar-se, enfim, de uma certa voz de comando que sempre ecoa nas nossas costas. Uma voz de comando que se diz individual ("a voz do povo... etc"), mas que de individual não tem nada. Aliás, há algo individual no mundo? Existe algo individual em mim? Estou contaminada pelo discurso alheio, não há nada de novo em mim a não ser a repetida estupidez. É preciso ser vigilante de si, em extrema e lúcida clarividência. Vigiar a si para só depois vigiar a dita e conclamada "sociedade", e não o contrário. Vigiar a tal "sociedade" sem se vigiar é a repetição da estupidez, é ser boneco de engonço, balançando a cabeça e marchando - porque todos marcham.

salve a pátria


Sempre quis ser baliza no sete de setembro. Baliza é aquela menina dançando, fazendo acrobacias na frente do desfile. De saia curta, com uma varinha na mão, ela dava ritmo e luz àquela coisa anódina chamado desfile; ela abria a fanfarra, toda fardada com esmero, doando festa às ruas. As pessoas acudiam à janela, prestigiando tudo, mas quem chamava a atenção mesmo era a baliza.
... Meu lugar no desfile era no fundão, como aluna anônima, segurando uma bandeirinha medíocre e marchando ridiculamente, sem ouvir o som da fanfarra, que ia lá frente, looonge. Eu era um triste fantochezinho da pátria. Nunca, nunca fui baliza, talvez o serei em outra vida, puxando o desfile anódino que também deve haver no outro mundo.



Imagem: Foto de uma menina chamada Naíra, que, evidentemente, um dia foi baliza; retirada do www.google.com.br

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

in natura


Adoro o cheiro de suor dele, o chamado suor vencido, que vem de suas axilas sem desodorante. Gosto de seus pés sujos de andar pelo mato, seus pés grossos e calosos, endurecidos como seixos graúdos. Me apego demais a seu hálito fresco de dentes não escovados, sua mania de comer com a boca aberta dando a ver a decomposição da carne. Desde que o conheci, perdi a mania de assepsia e grandeza. Eu que já não tinha qualquer ambição, depois que o conheci entreguei ao mundo meus bens, e que são quase nada: duas dezenas de livros, três vinténs de melancolia, e uma espécie de felicidade sem teto.


Imagem: "in natura": www.google.com.br

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

de novo, Clarice


Desdigo o que um dia disse aqui, e afirmo: o conto Amor não está esgotado. (É, de novo, Clarice.) Acho que quem estava esgotada era eu, de tanto ouvir falar nesse conto, de as pessoas ficarem falando dele pra cima e pra baixo, e com uma superficialidade doentia. Também estava de saco cheio de usarem tanto a palavra de Clarice em vão; acho que a própria, do seu túmulo, vivia bastante insatisfeita. Sem falar na legião de imitadores baratos, neles, claro, eu incluída.
Pois bem. O conto Amor é um dos mais belos contos escritos em língua portuguesa. De uma sensível genialidade; de uma delicadeza de quem sabe fazer renda naqueles bilros antigos, jogando os bilros para lá e para cá, num movimento sutil de mestre, e sempre cantarolando uma cantiga. Enfim, só quem sabe as delicadezas de um bordado, de uma renda, sabe o que é esse conto clariceano.
Não é tão somente a história de uma dona de casa, é mais do que é isso. É a história da apelação da existência: a existência a todo momento nos chama, clama para que nós a escutemos. A existência está lá fora: no cego mascando chicletes e sua intensa existência de coisa viva, saída do lugar comum a que nos prega a vida prática - essa que nos impede de enxergar tudo. O contingente, disse Sartre, é o absoluto. Tudo o que existe é pleno de gratuidade, portanto de plenitude: eis o perigo. Precisamos, isso sim, é acordar. Sentir o frenesi do vento batendo no rosto. E, diferentemente de Ana no conto em questão, não retornarmos à ordem, não apagarmos "a flama do dia", a inquietante e prazerosa (e perigosa) descoberta de estarmos vivos.