domingo, 31 de maio de 2009

Tudo sobre a vida


Tenho um aluno de nome Gilberto. Nunca vi sorriso mais largo. Alma mais aberta. Olhos que brilham tanto. Gilberto gosta muito da vida. Ele nunca para de rir. Sempre. Em todas as ocasiões. Até quando falamos da morte vejo nos seus olhos uma sombra festiva. No primeiro dia de aula Gilberto se apresentou. Contou, para toda a classe, com um sorriso de orelha a orelha, que estava vindo da roça, e que no início ficou receoso de não ser aceito ali na universidade. Que o palavreado dali era diferente, mas que na roça ele tinha lido vários livros. Gilberto sabe muitas coisas; ontem nos contou tudo sobre o arco-íris.
Na apresentação que fez, com os colegas de sua equipe, sobre a poesia de Francis Ponge, coube-lhe o pão. Trouxeram uma cesta enorme, cheia de pães, e mostraram para a turma os alpes, as montanhas, habitantes da visão panorâmica daquela coisa que comemos todos os dias sem olhar. Tal qual Ponge, Gilberto tomou o partido do pão como o mais sensível e competente dos advogados. E contou, na segunda parte da aula, morrendo de rir, o quanto foi interessante sua pesquisa. Primeiro porque teve a ideia de ir perguntar a um amigo seu, padeiro de muitos anos, como era a experiência de fazer pão. E que o amigo lhe disse que não sabia responder isso, pois nesses anos todos nunca tinha prestado atenção nessas coisas. Nessa hora a risada de Gilberto foi mais ampla, plena, como o aluno que aprendeu - com a mais profunda de sua sensibilidade - tudo sobre a vida.


Imagem: "Sorriso negro", por Fabit's.
(www.flickr.com)

terça-feira, 26 de maio de 2009

Interlúdio


INVENÇÃO


Como inscrever teu nome na noite,
se te inventei, e teu rosto é sombra
repousando leve no mundo?

Como esperar que me reconheças,
se são nuvens teus olhos, e tua presença
sempre desaparece em total silêncio?

Como te tocar, ao menos em sonho,
se é densa a névoa que nos separa,
e imensa a distância que te enlaça?

Como te manter, enfim, em minha casa,
se te inventei ágil, invisível, oscilando
na transparência vaga de uma lágrima?



Imagem: "Leveza", por Ducarvalho.
(www.flickr.com)

sábado, 23 de maio de 2009

em silêncio


Imagine você me conhecendo, olhando meu olho, bem dentro, bem fundo. Imagine o susto, o grande susto do abismo. Um passo em falso na escada, você me vendo. Um lance de dados, jogado completamente ao acaso. Minha voz que não era a minha, minhas mãos que nunca foram essas, meu corpo pendendo para o lado. Minha vontade insana de nunca ter existido. A sensação entranha e profana de não ser, e de convencer o contrário. Palavras que somem, pernas tropeçando no escuro, e o muro, o grande muro.
Imagine, o absurdo: alguém sem forma sair do limbo. E para nada, nada, nada. Para quê? Tal coisa só se pergunta ao Destino. De preferência em silêncio, de preferência muda, completamente, para não ouvir resposta alguma.



Imagem: "il destino dell'uomo", por cacciaramarri.
(www.flickr.com)

Existirmos


Quem não morre de novo, de velho não passa. Era a frase que pai mais dizia. Talvez por isso para mim é estarrecedor o fato de saber que alguém cometeu suicídio na casa dos oitenta, noventa anos. O escritor húngaro Sándor Márai, por exemplo, se matou beirando a casa dos noventa. E Pedro Nava, aos oitenta. Os dois com tiro de revólver. Não sei em que ambiente estava Márai na hora do horror; Nava sei que foi no meio da rua, depois de receber um misterioso telefonema. Meu Deus, o que leva alguém, já presumivelmente tão perto de partir, a adiantar com tamanha fúria sua ida? Pra que tanta pressa? Por que não esperar mais dez, onze anos?
Essas perguntas são bestias, sei. Bestiais, como tudo o que se especula a respeito da existência; sobre o frágil juízo do ser humano. Mãe na sua simplória e vívida sabedoria sempre insistiu nesse ponto: juízo de gente é coisa fraca. Porém, isso não quer dizer que Márai e Nava estavam com os respectivos juízos fracos; muito pelo contrário, pode ser que estavam terrivelmente lúcidos, sabendo exatamente o que faziam. Mas se isso for verdade, por que Nava correu para morrer no meio da rua? E rua é lugar pra morrer? Por que não? Diria ele, dentro de seu baú de ossos. E eu calo minha boca; não sei mesmo o que estou dizendo.
Ah, a existência, coisa séria que levamos na graça, porque senão não vai sobrar um revólver nas lojas... Mas há outra modalidade de fazer o estrago, menos legitimada, é verdade, que é se entupir de todas as porcarias escolhidas, desnaturadamente, pelo paladar: eis, pois, uma maneira sutil, disfarçada de ir construindo, lentamente, a grande cena; porém, claro, sem qualquer glamour.


Imagem: "A ligeira existência", por pedribeirophoto.
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quinta-feira, 21 de maio de 2009

A sombrinha e o carma


Enfrentar chuva no meio da rua faz parte de carma, tenho certeza. Hoje saí de sandálias baixas, abertas na frente, parecendo que estava em veraneio. Dentro da bolsa a sombrinha azulada, meio torta. Uma saia e uma blusinha desafiadoras. Nunca imaginaria que teria dilúvio. E teve: por pouco a praça da piedade não me leva. A velha sombrinha de guerra virou bandeira; o vento deu-lhe uma surra tão forte que entortou o outro lado. Depois, não satisfeito, o vento deu um zum de redemoinho nela, esculhambando a coitada toda, e só não a deixei no lixo porque sou apegada a coisa velha e inútil.
Cheguei em casa desfigurada tal qual a sombrinha. Abri a dita cuja na porta e ela desabou, deitou-se no chão como quem gemesse: acabei, não vês? Entrei com os pés lavados por água de sapo (mãe achava que água de chuva era sempre água de sapo), olhei pela vidraça e, como uma Poliana retardada, preferi acreditar que agora era feliz, longe daquele horror. E tome-lhe vento uivando. Numa fúria estarrecedora. Ligo a luz da sala, aperto o chuíte (alguém se lembra dessa palavra?) e quem disse que a lâmpada acendeu? Queimou-se. E quem vai trocar? Ninguém. Não alcanço e não sei. Então, que tal ouvir aquela cedê de poemas de Manuel Bandeira no escuro? Acolho-me na poesia, na poesia, conforto para todos os carmas, todas as sombrinhas mortas.


Imagem: "Sombrinha", por gitanostudio.
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terça-feira, 19 de maio de 2009

Leve


Pouso, suavemente, no chão. Estou aprendendo, aos poucos, a pousar e não cair. Antes me agarrava à nuvem e não queria vir. E, quando era obrigada a descer, me jogava de lá e me estatelava no chão, de qualquer jeito, como quem quer morrer. Hoje, desço por vontade, e molho os pés à beira do mar, de leve, de leve... Hoje até parece que quero viver. Até insisto em permanecer por um, dois dias, sentindo o vento bater nos pés... A felicidade é que aprendi a melhor maneira de descer: fechar os olhos e esquecer o susto; ter o justo sentimento de nada ter, nada, nada, corpo de neve a se derreter... E a paciência de polir as perdas, as asas inutilizadas, como quem sequer espera, sequer deseja...


Imagem: "Leveza do ser", por Suellen Martins.
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domingo, 17 de maio de 2009

Náufrago


Ele era alto, torto, gordo e meu namorado. Minha cabeça dava na sua cintura, e para me abraçar andando, ele precisava ficar mais torto ainda. Quando passávamos pela rua, todo mundo ria. Eu não me importava, estava feliz. Ele comia muito, sem nenhuma vergonha. Minha irmã o odiava, pois ele ia lá pra casa e comia tudo que lhe ofereciam. Comia, repetia, comia, repetia. Sempre rindo, com os olhos tortos por trás dos óculos. Médico da cidade, morava, coincidentemente, na casa de número 33, rua da Glória. Era uma casa estiradona, com todos os cômodos pequenos e imensos corredores frios. Não queria gastar com móveis, então levou para lá apenas uma cama de hospital. Isso mais aumentava o ódio de minha irmã por essa criatura avarenta, torta e comilona.
Todos os domingos íamos passear no rio, perto da cidade. Eu sempre de sandálias havaianas e ele impressionado com elas. Dizia nunca ter visto por ali uma só menina, além de mim, usando sandálias havaianas. Ficou entusiasmado também com meu perfume seivas de alfazema e meus cabelos crespos. Me pedia que eu lesse poemas pra ele, e num desses passeios me deu de presente uma pedra dali do rio, marcando a exata hora em que estávamos vivendo. Pediu meu lápis emprestado para desenhar as quinze para as três.
Numa manhã de segunda-feira ele chegou lá em casa me chamando. Disse que havia sido demitido da prefeitura e já estava de viagem. Me chamou para ajudá-lo na mudança. Nesse momento cheio de emoção, me deu de presente um baldinho azul de lixo que guardava no cantinho de sua sala sem sofá. Sempre tive muito zelo por esse balde. Muito zelo. E desde aquele dia cuido dele como se cuida de um náufrago. Vejo-o agora, aqui embaixo da mesa do computador.
Passaram-se anos, vários anos. Mudei de cidade, e meu namorado torto se perdeu no mundo, trabalhando como psicanalista em Ribeirão Preto. Coincidência do destino, um dia descobriu meu telefone e me ligou, talvez por pura curiosidade em saber como estava aquela menina que usava sandálias havaianas e perfume seivas de alfazema. Ao reconhecer sua voz no telefone eu não acreditei. E a primeira coisa que me veio à cabeça e à boca, para lhe falar, foi o balde. Lembra-se? Aquele balde pequeno, azul, que você me deu quando foi embora! Está aqui comigo! Novinho ainda! E ele: Mas que balde? Não lembro! Eu: Poxa, o balde, azul! Está igualzinho, novo do mesmo jeito! Ele imediatamente mudou de assunto, querendo saber em que lugar eu trabalhava.


Imagem: "Flores perdidas", por Jessika Mendonça.
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quarta-feira, 13 de maio de 2009

Minha ternura absoluta


Minha ternura absoluta por São Paulo. Não pela cidade, mas por meus parentes todos que foram pra lá. E voltavam de ano em ano com um gravador enorme nos ombros e um monte de fitas cassetes na mala. Ligavam o aparelho na sala para a parentalha toda ouvir as vozes gravadas dos filhos, noras e netos desconhecidos, perdidos naquele lugar distante. Nunca esquecerei essa cena: meu avô e minha avó chorando ao ouvirem a vozinha cantante de uma neta que nunca viram, dizendo assim: Vó, vô, sou a Wilza, irmã do Williomar, que foi aí no ano passado...
São Paulo para nós era um mito, símbolo de salvação. De lá vinham pelo correio retratos dos parentes todos ajeitados, na graça de Deus. Faziam questão de mandar as fotos tiradas dentro de casa, em meio aos móveis, tudo de boa qualidade: geladeira vermelha, sofás amarelos, radiola preta. Pai tinha o maior orgulho desses parentes; ele que certa vez tentou a vida por lá e voltou cabisbaixo em nome de uma saudade ardilosa, egoísta e romântica. Mas os parentes que foram e prosperaram exerciam nele o fascínio por esse mundo longínquo, mundo onde as pessoas falavam cantando e tinham umas feições civilizadas.
Pai era tão fascinado por São Paulo, cidade que amava numa resignação do impossível, que ao falar ao telefone com um parente, ou um conhecido que lá morava, o tom de sua voz mudava instantaneamente, sem ele perceber: "Oi, Sônia, cadê o Mauro? E a Vera? O tio aqui morre de saudades!"
Minha ternura absoluta por nossas risadas escondidas ao ouvirmos pai falando paulista sem perceber, no puro instinto de uma sedução inefável por essa cidade farta e longínqua.


Imagem: "São Paulo", por Schwingel.
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segunda-feira, 11 de maio de 2009

A bela adormecida


*Este é um dos poemas mais lindos que li nos últimos tempos...

A bela adormecida

Seja como for, ela dorme. É possível que durma por mil anos.
Eu sou o cão que guarda o seu sono por mil anos.
Sua inocência explica tão longo encantamento.
O mistério pousará em sua testa, tentará corrompê-la
com as promessas da vida comum:
um príncipe, um cavalo, um castelo.
Entretanto, é improvável que beijos possam
com tamanha vontade de esquecer – a si mesma,
e à beleza que era o seu atributo mais decantado,
e que talvez não fenecesse nem com o tempo
ou a morte – pois resistiu a mil anos de heras e ruínas.
Isso tudo eu sei por ter estado sempre aqui,
embora ninguém suspeitasse da existência do monstro insone,
testemunha da beleza desperdiçada.
Providencio para que a floresta se adense, ano após ano,
e se adensem também as sombras no coração do príncipe,
para que ele enxergue não as possibilidades
deste corpo intacto, mas o horror do feitiço,
o cheiro de mofo e a estupidez da renúncia.
O demônio me impede de libertá-la; o anjo, de desposá-la;
a humanidade, o encanto sobre mim,
me impede de matá-la.
Não sou a fera que ama a bela.
Sou antes a besta desordenada que guarda o ermo e suas criaturas.
Estou no âmago das histórias realmente estranhas.
Ignoro o mal, e o bem para mim é tão infantil.
Habito as lendas para povoá-las com as distorções necessárias.
Me interesso especialmente por essa criança que dorme.
Se o príncipe a toma de mim – e dela mesma – ficarei tão enfurecido
que envenenarei o mundo e o mundo adormecerá.
Ela partirá, acordada.
O mundo todo adormecerá.


Autor: Nilson Pedro.
Extraído do blogue "Blag": http://nilsonpedro.wordpress.com
Imagem: "Encantamento", por César Augusto.
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quinta-feira, 7 de maio de 2009

Vestido azul


Eu tinha seis anos e estava na escola quando vi aquela mulher. Uma mulher vestida de azul, tão bonita! Tinha os cabelos cacheados, um rosto alegre. Levava a tiracolo seu filho, um rapazote de seus dez pra onze anos. Segui aquela mulher até longe, e falei, insistentemente, pra mãe o quanto ela era bonita. Esse foi meu primeiro contato com a beleza. Nunca me esquecerei disso. Depois soube que aquelas pessoas que chegavam da roça seriam os nossos vizinhos. Família grande, uma moça, três rapazes e uma menina da mesma idade que a minha. Inclusive essa menina, Sílvia, seria colega de classe, do primeiro ano primário.
Rua da Ilha. A casa onde eles foram morar tinha uma fachada antiga, duas janelas e uma porta. Casa bem maior que a nossa. Fizemos logo amizade. Sempre gostei daquela mulher: ela era bonita, alegre, e gostou também de mim. Minha amizade com sua filha é preciosa, mas minha amizade com ela é mais preciosa ainda: ela me conheceu pequena, de vestido curto, gordinha, indo pra sua casa e não aceitando tomar lá nem um gole d'água. Mãe não deixava, e eu era obediente. Não tinha um dia sequer que eu não ia lá. Quando eu e Sílvia brigávamos, ela não tomava partido, e acreditava tanto em mim, tanto, que uma vez inventei uma mentira e ela deu uma surra na filha, acreditando ser essa a culpada.
Cresci, e nunca perdemos a amizade. Ela sempre ali, por perto. Criando netos, ramificações daquela filharada toda. Saí de minha terra, mas toda vez que lá volto, bato na sua porta pedindo dois dedos de prosa. Prosa boa, de levar uma tarde inteirinhazinha rindo. Estou ouvindo agora seu sotaque, seu jeito de falar tão peculiar, a maneira de me receber na cozinha com a alegria das mais afetuosas anfitriãs. Me levava na despensa e me mostrava aquelas formas largas de bolo de milho. Ah, como eu me fartava. Assim, comendo, ficava a par de todos os acontecidos durante minha ausência.
Faz tanto tempo que não vou a minha terra. Um ano e alguns meses. Nunca passei tanto tempo distante. Da última vez que lá estive, claro, fui vê-la. Conversamos e rimos na cozinha e depois ela me levou até a porta. Na porta ficamos conversando, conversando. Ela dizendo Não vá não. E eu Antes de ir embora eu volto pra gente conversar mais. Fui embora e não voltei. Clotildes, seu nome. Nome bonito, antigo. Parece saído dos romances de Machado.
Ô Cróte, agora eu é quem lhe pede: não vá não. É cedo, muito cedo ainda, querida. Nossa prosa é tão antiga, precisamos colocá-la em dia. Saia desse lugar frio. Precisamos relembrar aquele seu vestido azul. Lembra-se dele? Tire-o do cabide e vamos de novo, alegremente, prosear na cozinha...


Imagem: "Barra do vestido azul", por Elba Maria.
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quarta-feira, 6 de maio de 2009

De todos os roubos


Roubo flores nas varandas vizinhas; roubo livros nas livrarias; sou uma ladrona disfarçada. Assalto casas na madrugada: minha insônia me traz muita utilidade. Na minha carteira de identidade consta um nome mentiroso, nunca serei encontrada. Eu sou a coisa mais falsa que existe, acreditem. Que me conhece nem imagina que sou ladra.



Imagem: "Roubo-te", por Humanchrysalis.
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terça-feira, 5 de maio de 2009

Desdém


Sempre gostei de chuva: à noite, na minha caminha, debaixo de mil cobertas de retalho. Mas durante o dia, chuva não é mais que um trovejo: sair na rua segurando uma sombrinha horrorosa, com um lado decadente, e o vento abrindo-a pelo avesso, pronto para o sadismo próprio dos ventos. Como se não bastasse, você se distrai e ploft! enterra o pé numa grande poça d'água. O resultado é a humilhação aumentando: agora você já tem, além dos pés ensopados, a barra da calça suja de lama. Cena do inferno de Dante, óbvio. Sem falar no monte de cadáver de sombrinha que você encontra caído pelas calçadas...
Lembro que lá minha terra quando chovia dias e dias, e pontes e pontes viravam água de rio, eu me queixava, dizia que tinha raiva de chuva. Aí pai saía do alto de seu posto para a doutrinação. Lembrava do povo da roça que rezava o ano inteiro pedindo chuva; que não tinha nada pra comer; que só conhecia terra vermelha. Eu na minha indiferença pelos problemas sociais, fazia um muxoxo, pegava minha blusa de frio, um livro e ia deitar no sofá pra ler.


Imagem: www.flickr.com

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Sensação de intimidade


A chuva torna as criaturas mais amigas.
Vendo-a cair, que sensação de intimidade!


A voz é de Ribeiro Couto. Ele me faz buscar, nessa chuva incessante, uma sensação de intimidade. Busco tal sensação nos livros de poesia repousando na estante. Sentamos juntinhos um do outro, com muita intimidade, nessa manhã chuvosa, dolente e triste. Quanta singeleza e grandiosidade nessa Canção do Beijo Suave:

Tua boca delicada
Pôs na minha, docemente,
Uma carícia magoada.

Não te sei dizer ao vivo
Como foi meigo e suave
Esse beijo fugitivo,

Esse beijo de um instante,
Leve como a folha morta
Caindo sobre o passante...


Ah, poesia liricamente despretensiosa! Ah, Ribeiro Couto, como foi bom te encontrar a cinco mil réis num dos stands da Bienal! Não, não te desmereço pelo preço, apenas por saber que estavas ali, quase invisível, e eu te colhi, te trouxe para casa, antes que outros chegassem primeiro.
Apresso-me para ler em voz alta, para mim e para ele, e para você, criatura íntima, um dos poemas mais lindos do livro, o qual me encerra em mim mesma e em você, diante da brincadeira mais séria e mais lúdica do mundo: o amor.

BONECOS

Esse gesto de pôr um dedo nos seus lábios
Faz de mim um menino e dela uma boneca.
Sinto o desejo de tê-la morta, de ver por dentro
De que é feito o seu corpo.

Este gesto de me apertar contra o seu peito
Faz de mim um boneco e dela uma menina.
Sinto o desejo de diverti-la, de que o meu corpo
Caia em pedaços das suas mãos.

Como somos então menino e menina,
Ficamos a brincar tão cheios de candura
Que nem é crível que no brinquedo exista algum mal.

Como somos os dois menino e menina,
Cansamo-nos depressa e dormimos tranqüilos
Num ingênuo abandono de bonecos partidos.



Imagem: "Marcas da chuva", por Sasha Alves.
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domingo, 3 de maio de 2009

Uma menina


A casa enorme, muitos cômodos, com rosto de abandono. E minha avó dentro dela. Dizia que de lá não sairia nem amarrada. A casa caindo parte por parte. Primeiro o quarto, depois o outro quarto. Depois o outro. Minha avó forte, pegando água no rio, enchendo todos os potes. Proclamava que enquanto restasse um cômodo que fosse, lá seria sua morada. E a casa caindo, a cada dia indo-se, finando-se, bem ali perto da estrada. Ó filhos ingratos, as pessoas falavam. Minha avó firme e decidida, não ouvia parentes nem aderentes, e teimosa ali ficava. Paredes rachadas, vento frio e chuva fina, e minha avó quase ao relento, cozinhando, como uma menina, no grande fogão de lenha...


Imagem: "A casa caindo", por Yuri.
(www.flickr.com)

sábado, 2 de maio de 2009

a música eterna



Nessa tarde chuvosa de sábado, vejo, de uma distância de mais de mil anos, uma menina e um rapaz sentados na porta do clube interiorano: ele, feioso, tocava e cantava essa música. Quando terminou a cantoria, a menina pediu bis (ela sempre quis muito) e ele cantou novamente. Ao terminar de cantar, a menina pediu outro bis... E outro... E outro...

Eis a razão dessa música tocar para sempre dentro de mim.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

De todos os fragmentos


Sonhei que estava no meio de um rio fundo e caudaloso. E para me salvar eu precisava - já que não sei nadar - enfrentar a água indo de costas, deitada sobre as águas. Se por um acaso eu fizesse o contrário perceberia toda a profundidade do rio e me afundaria de vez.
Paro por aqui porque foi nesse momento que acordei.
Não vou tentar fazer interpretações, investigações psicanalíticas, buscar entendimento em metáforas etc.
Deixemos o sonho assim, somente como uma visão.
Só acrescentarei como epígrafe - e não sei exatamente o motivo, o que um dia escreveu Rilke para Lou Salomé: "Nunca te ouvi que não tivesse vontade de crer em ti".


Imagem: "Águas tormentosas", por J. Martinez.
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