sexta-feira, 21 de maio de 2010

mesmo sabendo de tudo


O frio gélido, que acompanha o condenado pelo imenso corredor - há sempre um corredor -, todos nós sentimos nos ossos. Se você pensa que nunca sentiu, pare apenas um pouco e se instale na sua própria câmara de gás. Lá você terá duas grandes verdades estampadas na testa: você não sabe nada sobre seu próprio nascimento assim como também nada saberá sobre sua morte, já a caminho. Tudo o que você é, a ficção que você escolheu criar, pertence aos outros, à memória alheia. Sobre o momento que você nasceu, apenas sua mãe e os que estavam presentes "disseram"; de sua morte que vem aí, já já, apenas os possíveis espectadores farão o posterior relato. O que resta pensar? Se você não tem a memória dos dois grandes marcos de sua própria existência, a pergunta é insistente: não é uma imensa solidão essa, existir? E para sentir a solidão gélida nos ossos será necessário você andar pelo imenso corredor antes do fuzilamento que ocorrerá no pátio externo?
Ora, ora, você sequer existe, e a solidão é tudo que há. Sinta-a agora, antes de ir atravessar o imenso corredor que lhe espera. Não se agarre ao braço de seu namorado, afinal ele não poderá atravessar o corredor com você. Ele também, na sua hora, atravessará o corredor. Sozinho. É assim que a lei maior, a burocracia, manda: sozinho, marchando sempre, sem se deter.
Posso soltar um riso? É engraçada essa tragédia. Engraçada porque pensando bem será meu corpo, sinal de minha indiscutível realidade, quem sofrerá tudo isso. Ele foi quase esmagado ao nascer, e será completamente esmagado ao morrer. E, ironicamente, jamais saberá contar tais experiências. Deve ser essa a frustração máxima do homem, e mais ainda do escritor: não ter nunca a totalidade, a unidade de si mesmo. Em decorrência dessa frustração ele inventa vidas, principalmente a sua, que traz como palimpsesto na raiz de suas mãos tortas, a fim de tentar driblar a solidão.
Solidão. Afinal é sobre isso que estou falando.
Se ela é tão peculiar a cada ser, como compartilhá-la?
Não, não fale. Abraça-me.
Dê-me a ilusão de que ela não existe. Invente salões de dança, filmes em preto e branco, bailes, bailes, vinhos, embriaguez de corpos se encontrando. Dê-me o sonho, tua mão na minha, voz sussurrando versos. E sorriremos, enfim, absolutamente confiantes, mesmo sabendo de tudo.



Imagem: "Dance", por Andreu Robusté.
(www.flickr.com)

terça-feira, 18 de maio de 2010

culto


é o fantasmático que busco; minha total ausência e a sua; o ultramundo, sair do comando do Destino; nós dois liquefeitos em corpos, ilimitados e irreais; sem qualquer metafísica, livres do pensamento, potencializando nossos olhos de muito ver - perante a intensidade do encontro; nós dois, vivendo o desejo como culto, sorvendo a multiforme água do mundo; abençoados por Dionísio, seremos outros: enfim nus, absolutos.



Imagem: www.flickr.com

quarta-feira, 12 de maio de 2010

o que sei dizer


Eu só sei dizer que mãe sempre faz as mesmas coisas. Me dá presentes com papéis já usados, guardados: vê-se neles as marcas daquilo que um dia já foi recebido com alegria. Sobre o embrulho, o reaproveitamento de fitinhas cor de rosa encaracoladas, que vieram de outros pacotes. Eu só sei dizer também que ela sempre me dá muitos presentes: e que muitas vezes eu mesma lhe dou os papéis de volta, para que ela possa guardá-los, desamassá-los e outro dia voltar a me presentear com os mesmos, nesse ínterim do eterno retorno em forma de papel. Sei que há nisso algo misterioso, como em tudo há mistério. Só que certos mistérios são bem melhores que os deixemos em seu véu de ternura, de idiossincrasia, de algo particular. E mãe tem muitos desses. Todos bastante simplórios. Colecionar receitas, por exemplo, como se coleciona selos. Guarda-as, copia mais, e vai juntando sua babel de comidas invisíveis: todas elas no papel, ocultas em cadernos luxuosos, nas revistas compradas em bancas, ou tiradas na televisão, copiadas com sua mão cheia de veias verdes, saltando sobre a folha. É um escrevinhar e ler eternos de comidas, perpetuados no paladar inefável de quem já provou todas as iguarias. Portanto, eu sei dizer que ela fala muito em receitas, um de seus maiores segredos. Tem também uma disposição invejável para viver, usar os sentidos, varrer uma casa, lavar uma roupa, estar em contínuo movimento. Lembro que quando criança meu maior desejo era que ela fizesse as sobrancelhas e passasse batom. Sem querer ela já me ensinava sobre tudo que é selvagem no mundo, principalmente as próprias roupas, costuradas por suas mãos de unhas pequenas. Sua nenhuma vaidade, distribuída pela casa em forma de cactos em latas de querosene. E aquela força violenta que vinha de seus olhos ao ser contrariada. A poesia oculta na bolsa que nunca usou, na calça comprida que jamais se ajustou aos quadris estreitos, nos cabelos para sempre curtos. Ah, como não dizer mais uma vez que ela sempre faz as mesmas coisas... E que suas palavras e frases ultrapassam décadas, sem máculas, sempre as mesmas. Abre a geladeira da mesma maneira que abriu na década de setenta. E ri com o mesmo trejeito que conheci quando balbuciei as primeiras sílabas. Com ela aprendi a amar o que se conhece - sem qualquer susto; o que me priva de tudo que é, na verdade, a vida.



Imagem: "in utero", por marco sannino.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

mundos invisíveis


Mãe não me ouve, tão longe voa
Num infinito que não alcanço
Mesmo me tocando como antes.

Pai se transfigura, e vejo-o agora
Nítido e forte, vívido em seu bigode,
Nutrindo mundos invisíveis.

Minha avó, com o mesmo vestido,
Vem naquele velho caminho, findo,
Tão percorrido por seus netos.

Minha tia, tão perto, morrendo,
Insiste ainda, pálida, na sala,
A repetir, incansável, a mesma cena.

Eu e minha irmã, plenas, acordando,
Continuamos sem nada saber, nada,
Enquanto cada dia se desmorona.



(2005)

Imagem: www.flickr.com

sábado, 1 de maio de 2010

escrevo-me


Acho que levei a sério demais o conselho de Barthes: "o que não se deve suportar é o recalque do sujeito - quaisquer que sejam os riscos da subjetividade". Assim, corro todos os riscos me colocando nessa página, arriscando minha cabeça, minha reputação, mesmo sob o signo de aeronauta. Falo, falo, sim, o nome de meu amor, de meu inferno, de minha alegria, de meu desespero. Conto as minhas tragédias mais íntimas, revelo a cor de minha apatia, rubro-forte, com amarelo nas pontas. Vivo para escrever-me, dona que sou desse umbigo fundo, sempre à espreita, com sua sujeira primordial. Esta página aqui é meu espelho diário, e se não há texto novo é porque não estou em mim. Mas um dia volto, nas nuvens aterrisso, e cravo meus dentes na alma, com fome antropofágica. É, porque minha alma é feita de matéria, matéria bruta, nada suave. Cinquenta quilos de carne. Esmago cada parte dela, como não se faz com o Amor; sem nenhuma delicadeza, exumo-a, às vezes mato-a. O que não me impede de sobreviver; aliás, é o que me permite sobreviver. Sem alma - na página. Nem um pouco lírica, nem um pouco terna, nem um pouco amiga. Mas viva. Esplendidamente ligada ao umbigo sujo, encardido, presa de formigas e fungos.



Imagem: "Umbigo 3", por Arthur Boniconte.
(www.flickr.com)