sexta-feira, 25 de novembro de 2011

os amantes


A arte vive dos relacionamentos humanos. Sempre em desencontro, os casais na maioria das vezes são "dois inimigos", como bem disse Drummond sobre os "dois amantes". Por que é tão difícil conviver, por que é quase impossível amar, por que as relações sempre acabam, por que... Paro por aqui com medo de me aprofundar ainda mais no clichê. Há esperança? Não sei, embora acredite que amor. A dificuldade está na possibilidade de viver o amor. Porque os homens ainda não sabem como conviver com a falta da hipocrisia, porque a hipocrisia se estabelece nas relações como algo que faz parte de suas entranhas, algo natural. E porque a não hipocrisia não consegue estabelecer diálogo profícuo com o amor. Este idealiza, sempre. Aí o que sustenta a idealização, para quase todos os casais, é a hipocrisia. Mas viver o outro no cru, na sua crueza de ser vivente no mundo, sem polimentos, é quase que impraticável. Com essa impraticabilidade é que a arte dialoga; quem sabe um dia a possibilidade de amar ganhe sobre as hipocrisias, e o amor, em seu estado totalmente natural, sobreviva às convenções e às desistências. E, como no final do filme "Manhattan", de Woody Allen, possamos acreditar que ainda existem no mundo seres que não se corrompem.


Imagem: Cena do filme "Manhattan"(1979), de Woody Allen.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Série "vazios"


Acredito que muitos procuram um psicanalista, ou psicólogo, com o desejo inconsciente de ter um amigo perfeito. Aquele amigo que vai lhe escutar sem emitir julgamento. Que vai se eximir de opinar sobre o que você fez (pois o que você fez está sempre em eterna falta), dizendo-lhe a seguir o que deve ser feito, apontando seus mais míseros pontos fracos. Pois é isso que os amigos, na maioria das vezes, fazem. Eles não sabem quando é melhor ficar em silêncio. Eles quase sempre têm a miserável autoridade do amigo: diz o que "é melhor para você", "para o seu bem", justamente "por que é seu amigo". Enquanto o que você só quer mesmo é colo e silêncio. Compreensão sem palavras. Você não quer um manual, quer um amigo. Essa palavra está, como todas as outras, desgastada. O que é, meu Deus, um amigo? Não sei. Aos seis anos tinha uma amiga, de minha idade; íamos à escola juntas, andávamos juntas, mas a solidão nos permeava, como chicote, pois ela tinha a autoridade de amiga, e essa se exercia através do abandono, sempre assíduo e perverso. Hoje, depois de muito buscar o que se denomina, de maneira complexa,"amizade", vejo-me mais uma vez, de novo, infelizmente, em busca do psicanalista, o homem sem julgamentos, o "amigo" que silencia.


Imagem: "Série Vazios", de Adriana Rocha. In: www.google.com.br

sábado, 19 de novembro de 2011

quando uma mãe conhecida morre


Para Mayrant Gallo

As mães nunca deveriam morrer. Drummond disse algo assim, mas de uma maneira linda. Eu digo aqui, à minha maneira, como uma dor prenunciada, ensaiada, dolorida. Não, Deus, não permita que minha mãe vá embora, e de novo parafraseio tristemente Drummond. Toda vez que uma mãe conhecida morre, morro num soterramento plano.
Em maio de 2010 senti um grande abalo. Em maio de 2010 morreu a mãe de minha amiga de infância, uma segunda mãe, e que se dava tão bem com a minha, de muitas e longas datas; ambas viram as duas meninas, eu e minha amiga, cresceram. Ambas conversavam sobre rádio e novela. Quando essa mãe querida, e tão parecida com a minha, morreu, eu sofri muito; era como se, Deus livre e guarde, morresse um pedaço de minha mãe, como se fosse um pré-ensaio de sua morte. Chorei de maneira multiplicada.
Ontem morreu a mãe de um amigo. Uma mãe conhecida, que exercia, igualzinho à minha, o papel de mãe. Ambas foram apresentadas num Natal de dois mil e cinco, e estavam vestidas com um vestido parecido; logo se identificaram. Deram-se tão bem, e no mesmo instante já estavam trocando a receita de rabanada. Ontem soube de sua morte, e de repente senti a pontada da dor, o anúncio de uma dor ingrata, pérfida. Passei vários emails para o meu amigo, imaginava que a dor que ele sentia era imensa, pois que repercutia em mim de uma maneira terrivelmente incômoda e cruel.
Disse Jorge Luis Borges, sabiamente, que devemos olhar para todas as pessoas como se elas já estivessem mortas. Faço esse exercício desde que li tal frase. E olho para mãe sempre com lágrimas nos olhos. E nem posso pedir a Deus para eu ir antes dela; não posso, pois de todas as saudades e dores que uma mãe pode sentir, essa deve ser a mais inimaginável e perversa.


Imagem: Cena do filme "Roma, um nome de mulher" (2004), de Adolfo Aristarain.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

"ensinar" literatura


A cada dia de meu trabalho como professora de literatura, sinto como é deleitosa e ao mesmo tempo dramática tal profissão. O que nos espera na universidade são, na grande maioria, alunos desamparados por não terem tido a oportunidade anterior de conhecer a literatura. Nós, professores, temos o desafio enorme de provocar a iniciação: em muitos alunos isso ocorre rápido, como alumbramento de sua própria vida, em outros tal coisa demora a ocorrer e, em alguns, infelizmente, a tarefa se transforma em algo doloroso, difícil, para ambos os lados.
O primeiro grande desafio é a desautomatização. Desvestir a literatura como disciplina é outro. E, a mais difícil, tocar o aluno, incitá-lo a ler, ele que leu pouco ou quase nenhum livro.
Literatura é alma, ou não é nada.
Literatura é uma "disciplina"? Dizem as grades curriculares que sim. Para mim, não. A burocracia dita as ordens do mundo: preciso preencher cadernetas e nestas, as notas. Mas, inicialmente, o que preciso mesmo é desautomatizar os alunos e encontrarmos, juntos, uma terceira via. Infelizmente, nesse momento não poderei ser Bartleby, por isso preencherei sim as cadernetas, eles terão a famigerada nota, mas isso é besteira; apenas uma necessária encenação para o seu posterior currículo.
O mais importante será a experiência que viveremos juntos ao longo de todo o semestre, no qual a nota será mero acessório. O mais importante, de fato, é outra coisa. Uma delas a nossa relação firmada num pacto sem dogmas, livre, como é a própria literatura. Nesse pacto desautorizaremos a autoridade e seremos amigos. No processo de busca de alumbramento para a vida, seremos companheiros procurando sentidos, ou a falta deles. Os livros intermediarão, como grandes protagonistas, esse encontro. Os livros nos transformarão. Nada, nada será obrigatório. Motivos para fazer chamada ou passar lista de frequência? Para quê, se ali engendramos a liberdade?
Literatura é alma, comunhão, humanidade, ou não é nada.

sábado, 12 de novembro de 2011

canção dos desesperados


Uma angústia sem asas. Um não sei que fazer de sua figuração no mundo. As encenações repetidas. Uma desordem. O que se diz e o que não se entende. Impossibilidade de abraçar. Livros esparramados pela mesa, fechados. Tudo, tudo se distanciando. O colarinho lhe apertando o gogó. A dor de barriga que chega na hora errada. A falta de toda e qualquer palavra. O cansaço da poesia. A falta de paciência com os poetas que têm carteirinha. O clube lotado, o clube vazio. Orides Fontela lhe olhando da cozinha, lhe acusando do roubo de sua miséria. Hilda Hilst de novo sozinha. Você, você, vocezinha, estúpida como um capim. Os cabelos brancos fazendo-lhe coroa num castelo sem reino. Essa boca em eterno esgar, essa cara severa onde dentro há tanta ternura. É preciso, escute logo, que você se acolha em seu próprio ventre. É preciso dobrar-se, como uma cobra, na própria solidão; contorcer-se sem grito, extasiar-se sem medo, talvez morrer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

abandono


Esta casa está sendo, aos poucos, abandonada. Dizem que é necessário mudarmos de casa, de preferência de três em três anos. Já tive vários convites para deixar esta e me mudar para o facebook. Mas sou por demais apegada a casas antigas, com cheiro de abandono; com teias de aranha pelas paredes, copos empoeirados na cristaleira, e roupas envelhecidas. Esta é, pois, uma casa antiga. As janelas emperraram-se e acredito que terei de ter bastante força para conseguir abri-las. O mato tomou a varanda que antes era diáfana, com cheiro de jasmim. Os jasmins morreram, um a um, perante o desconsolo do silêncio. Nunca, ninguém mais veio aqui: só um ou outro, desses que insistem em manter dentro do corpo essa coisa longínqua que é a memória, passam e jogam, pelo alto, um bilhete preso a uma pedra. Há muito cheiro de tempo, e, dentro dos armários, fitas amarelecidas amarram caixas sonâmbulas. Daria tudo, meu Deus, tudo, para que essa casa voltasse a ser habitada. Por isso fico rondando-a, em dias de frio como esse, em dias de chuva, buscando a chave esquecida por mim em algum lugar.