terça-feira, 30 de março de 2010

baixas temperaturas


Na maioria das vezes na academia a literatura vira algo enlatado. Lembram-se do quitute? É, a literatura fica parecendo quitute: ainda gostoso, mas artificial. Bota-se quitute, ou seja, "literatura" dentro do pão e tudo indica que matou a fome. Quem não se lembra do quitute (ou não conhece) vale outra comida enlatada da contemporaneidade: dá no mesmo. É assim que sentimos a literatura, portanto, nas salas acadêmicas, principalmente em defesas de mestrado e doutorado. Aquilo que o escritor escreveu, e nós lemos em momentos epifânicos, se transforma num conglomerado de terminologias, adereços e outras coisas extremamente óbvias, porém ditas num palavreado técnico pomposo, corroborado pelas palavras de um autor-teórico-da-moda.
Por exemplo, ontem, em plena sessão de defesa de mestrado, a professora doutora lança mão de Umberto Eco para dizer que, em todo texto, é o leitor o complementador de sua significação. Ora, isso é algo extremamente óbvio. Todo leitor de verdade sabe disso. Além do mais os estudiosos da estética da recepção bateram tanto nesse ponto... O mais importante, porém, é que todo leitor de verdade sabe dessas coisas. É preciso, pois, correr atrás de um teórico para validar tamanha obviedade?
Nesses momentos acadêmicos é que percebo o quanto a literatura virou componente de hospital. Nesses ambientes tudo é esterilizado, a fala dos professores e a própria postura deles sentados à mesa, avaliando o trabalho proposto, é de gelo e solenidade, o contrário, portanto, das altas temperaturas do livro literário. Tudo vira jargão e não paixão. Coitada da literatura, perecendo num leito de uti, tendo como enfermeiros homens de jaleco branco e mãos frias.



Imagem: "O último cubo de gelo", por renatomoll.
(www.flickr.com)

domingo, 28 de março de 2010

elegia


Passaram-se muito tempo dos dezoito. Dos vinte. Dos vinte e oito. Mas a neblina continua no para-brisa. O carro pifou na ladeira. A vista é linda: uma praia. A estrada é de pedra. Mas tudo parou, não foi só o automóvel. Meu corpo, numa magreza impossível, pesa litros e litros de nada, nada, nada. Esvaziei-me. Esquálida, fecho todas as portas. Não tem autoajuda que me salve. Nem literatura. Chegar aqui, nesse ponto do caminho, é extremamente clichê. Não tive filhos, marido tive um, e para quê? Estudei, guardei diplomas, trabalhei. Para quê? É muito besta fazer perguntas. Sabe-se que não haverá resposta. Nunca. Talvez na morte. Mas não quero morrer. Vivo como se fosse imortal, alheia à História e à mobilidade das coisas. E não sei viver, fico espantada como um girassol, olhando fixamente nada. Como é que se vive? Clarice vivia perguntando isso, enquanto Cecília cantava. Como é que se canta, Cecília? Minha voz, aos quarenta, desafina. E a casa, repleta de pássaros, se aquieta.


Imagem: "Elegía", por antolozaZD.
(www.flickr.com)

quinta-feira, 25 de março de 2010

algaravia


meu estômago está uma brasa, mora. Parece que botaram aqui dentro um monte de tocha fervente, luzindo a meio quilômetro de distância. Eta caldeirão. Meus intestinos vão no mesmo ritmo, pipocando que nem carne frita na panela de ferro, exalando um odor de coisa apodrecendo. O maior exemplo de minha miséria mesmo foi o acontecido naquela viagem de ônibus. Eu que sempre nutri nojo por banheiro andante, móvel e socializado, naquele dia me vi sentada na privada fedorenta sem nenhum pudor, somente querendo me livrar daquilo, que vinha dentro de mim sem nenhum lirismo, num sadismo de aplaudir. É, porque o que está dentro de mim não é meu, é dos outros. Essa dor não é minha, é alheia. Essa fogueira no meu estômago é presente de teu olhar, de tua dor, dessa solidão de sermos um e para sempre desconectados. Ah, para que tanta filosofia com uma dor de barriga, com um estômago triste e murcho, se os banheiros coletivos estão aí para nos acolher? Sente sua bunda numa privada nojenta e veja o que é bom pra tosse. Vai ver o quanto ela é boa pra tosse, pois se sua dor for imensa a privada será uma bênção. Oh, bendita privada fedorenta que me mandaste! E eu que sempre fui tão refinada, e que nutro uma prisão de ventre pelo simples fato de não gostar de minha parte podre; eu que não frequento banheiro de ônibus e viajo dez horas sem lá pisar os pés, me vi naquele dia sentada num vaso semovente, agradecendo a Deus tamanha criação. Se rio de mim? Oh, garfadas estridentes de riso. Mesmo com o estômago ardendo. E com essa solidão apodrecendo: nos intestinos, por dentro; algaravia silenciosa dos infernos.


Imagem: "Galeria choque cultural", por artexplorer.
(www.flickr.com)

terça-feira, 23 de março de 2010

para todas as ausências


MADRIGAL


José Paulo Paes


Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.

Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.



Imagem: "simplicidade", por Fá Silva.
(www.flickr.com)

terça-feira, 16 de março de 2010

aquela história


De tanto ouvir aquela história, ela ficou inerente à minha pele. É a história de meu avô, a pessoa que mãe mais adorou no mundo. As heranças de amor são sempre involuntariamente herdadas. E ao vê-la falar nele com os olhos marejados, meu amor cresce mais, tal qual o dela.
Meu avô era tocador de sanfona, aventureiro, mesmo sendo pai de onze filhos.
Meu avô era caixeiro-viajante, sumia no mundo e voltava alegre, cheio de presentes.
Galeanteador, bonitão, namorador.
Sabia todos os artifícios do encanto; sempre calmo, sempre rindo, os olhos apertados.
Um dia demorou mais tempo em sua viagem. Demorou dois meses, três, seis, um ano. Demorou dois anos. Sequer um bilhete, sequer um recado. A família em prantos, mãe sem comer, era muita saudade.
No mesmo dia da partida, uma comadre sumiu.
E o tempo da ausência dos dois, compartilhado.
Morrendo de paixão, sumiram os dois, foram para São Paulo. E São Paulo é terra de nunca mais, lugar longe retado; naquele tempo, quantos dias de viagem eram enfrentados?
Ao certo, não se sabe.
Para voltar, soube-se: dois anos. Voltou feliz, satisfeito, sem a comadre. Voltou para os filhos, para a mulher, para a família. A comadre ele deixou, sem ninguém, num ponto qualquer da estrada.
Essa história é forte; essa história é lírica, ingrata, perpétua.
Vertiginosa, açoita minha alma.



Imagem: "Revendo as cicatrizes", por Luara Monteiro.
(www.flickr.com)

sábado, 13 de março de 2010

Riquete


Guardo em mim imagens míticas. De homem a figura de Riquete, o príncipe feio. Não sabem quem é? Ele morava dentro de um livro pequeno, numa coleção de histórias infantis. Tinha, coitado, um topete enorme na cabeça, parecia uma árvore se desfolhando. Era fatalmente feio, esse o grande mote da história. Não me lembro o que aconteceu com ele, o enredo se foi na memória, mas a cara dele não. Era uma cara tristonha, terrivelmente comprometida pelo visual da imensa cabeleira revoltada. O que adiantava tanta riqueza, um palácio enorme? Daí nasceu, provavelmente, a minha comoção pela fatalidade, pelo destino, por existir assim e não do outro jeito. Lembro da ternura que eu devotava àquele princípe diferente: lia e relia a história, milhões de vezes. Era tão comovente que eu dava risadas. Nem sabia que já amava Riquete, e que o amaria para sempre, num pacto terno e dramático.



Imagem: "Mundo homem", por Lu.
(www.flickr.com)

terça-feira, 9 de março de 2010

sexta-feira, 5 de março de 2010

Por que ando ausente


O mundo está me chamando interminantemente. Não, se pudesse não iria: ficaria aqui, passeando no ar, sentindo uma nuvem e outra deslizar nas minhas pernas, penetrar meus cabelos. Mas o mundo é imperativo: exige minha presença. Minha presença física: braços gesticulando, corpo em movimento, boca se abrindo. Não, não quero. Quero solidão. O mundo nunca irá entender isso: me bota no meio do redemoinho, gira meu corpo como se fosse máquina a ser triturada. E tritura: vejo meus ossos se partindo em dança sarcástica. Tira de mim o que mais amo: a palavra. A palavra silenciada. O ir e vir no abandono lírico. Desgovernar-me num amor sem causa. Abrir o livro e deparar-me com nada - delicadezas de inventar o que não existe. Ah, o mundo é o porteiro dos livros de Kafka. Impede minha entrada e ao mesmo tempo me obriga a entrar. Fico lá dentro, num cartório imenso, obrigada a dedilhar processos. Nunca aprendi a ser Bartleby, e me encarcero, sem nem poder escrever - como o amanuense Belmiro. Ausento-me de mim, dias sucessivos. Cecília me olha do alto de seu nicho: complacente, como todas as santas, entende o que digo.



Imagem: sem título, de Gustavo Minas.
(www.flickr.com)