quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Ela

Ela sabe - das manhãs de teu corpo, acordando breve, morno. Do curso dos dias passando nos teus olhos, enquanto chove. Da noite vasta, sentindo em ti as primeiras horas de um sono largo. Do alcance do teu braço num abraço imprevisto...
Ela sabe tudo - disso tudo que teu corpo sonha e diz, quase num sussurro... a textura de tua pele, as fissuras nos teus dedos, cada pátina em tua unha revestida. As vírgulas imprecisas no teu rosto, como num rápido senão. E o dorso, então, de tua alma? É fácil, para ela, tocá-la - tua alma, tua alma... como remendar um vaso, peça por peça, um vaso raro, e nessa tarefa nenhuma pressa de terminá-la.
Ah, ela também sabe da temperatura que arde, quando teu corpo acende e se parte. De cada parte de teu cabelo um fio que se distende e se perde; de teus velhos sonhos - todos eles que nesse momento se abrem...
E como será fácil para ela abraçar-te, e no abraço morrer um pouco, como num salto... Ouvir, de perto, teu hálito transformando em atos palavras tão simples... Como um vento que simplesmente existe...
E como será farto para ela almoçar ao teu lado, com o braço perto do teu, num toque adivinhado; um riso que se intercala entre uma fala e um silêncio; um olhar distante, porém apaziguado de qualquer ausência premente... Um estar, mesmo ausente.
E depois - todas as noites - com a mão na tua, ela sentirá tudo: teu mundo de foices e mortes, a bravura de poder ser tua quando tudo, em todos os instantes, se desfalece; e a certeza de que poderá reter-te, em partículas de memória, para sempre.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A lamparina

Segundo Ricardo Piglia (em "O último leitor"), Kafka enviou à sua possível pretendente Felice (como a preveni-la) o seguinte poema chinês do século XVIII, de autoria de Yan Tsen-tsai:

NA NOITE PROFUNDA
Na noite fria, absorto na leitura
de meu livro, esqueci-me da hora de ir deitar.
Os perfumes de minha colcha bordada em ouro
se dissiparam e o fogo se apagou.
Minha bela amiga, que até então a duras penas
dominara sua ira, toma de mim a lamparina
e me pergunta: Sabe que horas são?


Tomar a lamparina é mesmo a terrível "cena da interrupção". Quero ler, me deixem em paz, deixem eu amanhecer o dia com meu livro!!!!!!!

domingo, 27 de janeiro de 2008

O grande susto de estar viva

Sofro por coisas aparentemente anódinas: um dia que chega, um dia que vai, um amigo que não liga, a sensação do tempo passando, a angústia de estar viva, o livro que eu comprei e ainda não consegui ler, a pia cheia de pratos sujos olhando para mim... Ah, é sem fim a lista. Há três dias atrás resolvi encarar todas as coisas pendentes a fim de sofrer menos, mas não adianta. Lavei todas as roupas, passei, arrumei. Mas e os livros comprados que estão me chamando da estante? Oh, Bandeira, logo logo chego aí. Preciso, Cecília, antes de ler "O estudante empírico", arrumar as pastas de trabalho. Oh, Jorge de Lima, há quanto tempo marcamos nosso encontro? Ainda não vai ser hoje. Que droga! Eu queria estar lá com eles, mas a própria vida me empurra pra outro lugar...
Os felizes de plantão, os bem-aventurados saúdam o dia que nasce. Eu não. Detesto acordar. Só à tardinha é que vou me adaptando ao dia. E à noite me sinto em casa, me sinto em mim, coisa que também não é fácil. Mais fácil é ler Clarice Lispector. Hoje pouco leio Clarice. Acho que não tenho mais a predisposição que antes tinha. Já aprendi que não sou imortal, já sei, como Macabéa, que ser feia dói, já vivi todos "Os desastres de Sofia", já tive, também, quando pequena, uma amiga com muitos livros e que não gostava de ler e que não me emprestava... Ah, já vivi muitas "felicidades clandestinas", o Livro aberto em "êxtase puríssimo", Livro que pai trazia na pasta quando vinha de Salvador...
Não sei, mas desde os sete anos é a mesma angústia: alguém está doente, um carro virou, fulano está no hospital, beltrano foi preso... Tudo isso aos sete anos me tirava o sono. Mesmo bebendo chá de erva-cidreira o sono não vinha, o sono não queria saber de chá, o sono queria saber da vida, do sofrimento do mundo... Desde os sete anos trago olheiras profundas, e um susto, o grande susto de estar viva.
Lembro quando, aos dez anos, me arrumando para ir à escola, toquei no meu peito e vi uma pedra. Toquei no outro peito e vi uma outra pedra. Meu Deus, que pedras são essas? Me assustei. Uma colega do grupo escolar me disse que era peito nascendo, peito de moça. E mãe pediu à professora que nos instruísse sobre a puberdade. Nunca me esqueci dessa palavra estranha e dura: puberdade. Odiei essa palavra logo de cara. Não, não queria a puberdade, queria continuar como eu era, sem puberdade. Mas ela veio, e me trouxe espinhas pelo rosto, e eu virei a própria Macabéa, com "panos" na cara, procurando um certo Olímpico. Que nunca veio. Ainda bem. Pelo menos me livrei de ser derrubada na lama.
Ah, foi sim aos sete anos. Antes mesmo de ler Clarice. Descobri aos sete anos a minha condição de vivente. Via gente morrendo na cidade, via gente adoecendo, via gente chorando, sofrendo, e rezava por todos eles, e não conseguia dormir. Daí nasceram a minha compaixão e a minha dor. "Essa menina é diferente", diziam todos. Minhas insônias faziam pai brincar, ao passar no meu quarto antes de dormir: "todo mundo está dormindo... por que só tu, olho arregalado, é que não dorme?" Parece que escutei, agora, ele dizer isso novamente, rindo para mim...

sábado, 26 de janeiro de 2008

Aquele sorriso

Ele é a memória dos meus inocentes dezessete anos. Lindo. Olhos verdes. E namorava a menina mais bonita da cidade. Ainda hoje vejo-os de longe, abraçados, felizes. Ele cantava com a voz de Chico Buarque e me mostrava, como verdadeiro amigo que sempre foi, os mistérios que a arte sugere e não revela. Na verdade ele é, o quanto dura a quimera dos meus dezessete anos, uma inventiva vida vivida pelas sendas das palavras ocultas e enternecidas. Talvez, se ele não tivesse passado com o seu voyage azul pela minha rua, com aquela camiseta verde tão bela, eu nunca teria escrito um só verso. Talvez, se ele não tivesse tocado a "valsinha" eu nunca teria sentido aquela dor essencial. Eu escrevia poemas para ele. Ele lia e sorria. Era o suficiente. O Destino sabia. Ah, eu escrevia poemas para ele, repito, pois que esta é a sina de quem se apaixona. Ele passava todos os dias lá em casa e lia os poemas. Sorria. Seus dentes ficaram para sempre na minha alma... cravando, eternamente, a poesia.

Vestígios da Senhorita B.

A Senhorita B. fugiu por tudo que não pode ser: um abraço, um aviso, um beijo, um esconderijo, uma nuvem, um céu. Partiu. Num trem invisível, num dia distante, frio e absoluto. Deixou apenas vestígios, para os amigos: um par de sandálias abandonadas, o filme encontros e desencontros, e muitas, muitas palavras, como poemas em prosas contadas. Aqui e ali se lê um sonho: de natal, de festa de aniversário, de toda uma vida que poderia ter sido, e que nunca será - porque uma vida nunca será, de verdade. A Senhorita B. sabia disso, calma e dolorosamente. Por isso fugiu num dia de inverno, num trem invisível. Dos últimos vestígios deixados, encontrei um livro, "O amante"... Completamente marcado.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Das lembranças roubadas

Guardo uma lembrança que não é minha. É de minha irmã. E ela sempre fez questão de frisar isso: "é MINHA a lembrança, não é sua, você não tinha idade para se lembrar disso". Mas a cena entrou na minha memória de uma maneira irrevogável, visceral; tanto que posso assumir a propriedade da lembrança, mesmo minha irmã não gostando nem um pouco.
A cena é em preto e branco.
Mãe, no fundo do quintal, debruçava-se sobre uma bacia, lavando roupas. Eu em pé à porta de nossa casa, na roça, com um vestidinho curto, os cabelos assanhados. Do meu lado minha irmã se esgoelando de chorar. Magrinha, com os cabelos também assanhados, dois anos, e já vivenciava sua primeira tragédia:
À nossa frente, um homem ia se distanciando, e quanto mais ele se distanciava mais minha irmã chorava.
O caminho era estreito, dava apenas para uma pessoa passar. E longo, nossas vistas alcançaram aquela partida por muito tempo, até hoje ainda alcançam.
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Minha irmã retruca que me lembro disso porque ela contou muitas vezes essa história para mim. Daí, por sugestão de imagens, a cena ficou na minha memória.
Não vou mais discutir isso com ela. Mas em mim essa imagem também dói. Por ela. Por meu pai. Eles se amavam muito, eram grudados um no outro, e ele precisava partir. Para onde? Todos sabem. Dizer qual o lugar seria só mais um clichê nordestino.
Ele foi.
Voltou em menos de um mês, dizendo, dizendo, dizendo que voltou por ela, por minha irmã, não agüentou a saudade. Lá, ele só se lembrava dela, lá era um mundão estranho, muito carro, muita gente, e não arrumou emprego algum, e o que ele queria mesmo era voltar. Voltar para ela.
Essa é a dolorosa e grande lembrança de minha irmã, e que eu roubei. Por despeito, talvez. Por compaixão, quem sabe. Por inveja... Não sei.

Cantiga para tua alma

Pela alma choramos.
Procuramos a alma.
Queríamos alma
.

(Cecília Meireles, no poema "Anatomia")

Tua alma foge a todos os encontros. Rodopia pelas ruas que acolhiam tua infância e nunca mais quer voltar. Tua alma muda de lugar, a todo instante, a todo momento, por isso é tão difícil a ti te acompanhar. Estás quase que completamente perdido, como todo mundo, e a voz de Cecília ecoa nos teus ouvidos: "É triste ver-se o homem por dentro:/ tudo arrumado, cerrado, dobrado/ como objetos num armário./ A alma não." Tua alma não vem, não adianta eu ir buscar. Deixemos ela lá, no imprevisível de um sopro que o tempo possa exalar.
Quem sabe um dia terei mãos de vento e dedos de nuvem e assim conseguirei tua alma tocar? Quem sabe um dia não toparei com ela nas ruas de tua infância e roubaremos juntas as frutas da vizinhança? Ou, quem sabe, nas andanças de um redemoinho eu possa a ela dar o braço e trazê-la de volta para cá?
Não, nunca conseguirei tal façanha. Tua alma, intermitente e vária, pertence à vigília das solteironas que, debruçadas nas gretas das janelas, sonham encontrá-la.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Ele está aqui

É como se meu pai estivesse aqui.
Às vezes, no meio da noite, ouço o ruflar do jornal passando pelos seus dedos - ele que só ia dormir depois de ler todos os cadernos.
Às vezes, às onze horas da noite, sinto ele chegar da rua, entrar no quarto para ver se eu e minha irmã já dormimos, e desligar, mais uma vez, o ventilador.
Nas noites de muita chuva, noto ele andando pela casa com medo do rio entrar na cozinha. E de manhã escuto sua voz vindo da janela da sala falando sobre a enchente com as pessoas que passam na rua.
É mesmo como se meu pai estivesse aqui.
Perguntando, todo dia, sempre nervoso, onde está sua agenda. Sua agenda, aquela que ele colocava na estante e sumia. "E a caneta, Té, cadê?", perguntava desesperado.
E quando chegavam as contas quilométricas de telefone? Sentava-se nos degraus da sala e fazia sempre a mesma pergunta: "Quem ligou para Embu?" Era o enigma da família. "Quem ligou para Embu?" Todos os lugares apareciam com seus respectivos ligadores, mas Embu era diferente: ninguém sabia quem ligou.
E nas segundas-feiras, a briga na sala da frente: mãe querendo mais dinheiro para a feira, ele negando e ela reiterando no final da briga: "Ô home ruim!"... Ele por fim dizendo: "Você não é mais aquela que eu conheci no Valha-me Deus!"

Sinto, ele está aqui, é verdade.
Nos livros de Jorge Amado na estante da sala. Na maneira de ler movimentando os lábios. Nas melancolias. Nas manhãs da semana, quando lerdo, quase sempre perdia o ônibus para a roça, com mãe gritando da janela: "lá vem o ônibus, Bino, corre!", e ele lá na cozinha comendo. "Lá vem o ônibus, Bino, já está na praça, corre!" E a correria dele pelo corredor para pegar o ônibus. Todos os dias sempre a mesma coisa.

Ah, ele está aqui.
As sandálias estão no mesmo lugar à sua espera. Sua roupa pendurada no cabide do quarto e ele tomando banho. Mãe aproveita e vai lá na sua calça retirar, clandestinamente, um dinheirinho extra. Daqui a pouco ele vai jantar e assistir ao jornal nacional. Depois lerá todos os cadernos do jornal, madrugada adentro.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Conversando no divã novamente

Muitas coisas aprendi com a terapia. A primeira delas: declarar amor. Antes eu não tinha coragem, hoje vivo dizendo: "amo você", "amo vocês", sem nenhum pudor, sem ficar vermelha. E com isso aprendi a dizer também cruéis verdades, na cara. Claro que com a mais doce voz que é possível, como um canto, mas digo. Dizer que ama desconcerta o ouvinte, ele fica sem saber o que falar depois, fica sem graça... Dizer o desagradável desconcerta mais ainda, mas nos liberta mais ainda também.
Com a terapia aprendi muitas outras coisas. Todas sobre mim. Coisas terríveis, coisas de cigana dissimulada, com olhos oblíquos e tudo. A dissimulação é algo que me seduz. Ontem mesmo disse uma "mentira" na frente de um grupo de pessoas e me senti o máximo. Alguém me perguntou se eu tinha blog e eu disse "não, não tenho blog". Não pensei que tal declaração poderia me dar tanto prazer. Ah, a dissimulação, não a mentira... A dissimulação como fetiche, como forma de existir e de se proteger, de se libertar.
Uma certa feita o psicólogo me deu alta. Me senti como que saindo do hospital depois de uma longa temporada, e com um diagnóstico: "estou sã". Que nada, que sã que nada. Voltei logo depois, às pressas, porque não conseguia escrever o último capítulo de minha tese. A mulher "sã" estava novamente doente. E acabei voltando várias vezes, e cada vez mais gravemente doente...
O psicólogo funciona como se fosse um duplo meu: olhar para ele é como olhar para um espelho. E muitas vezes esse espelho irrita demais. Se antigamente eu não tinha coragem de me dizer certas verdades, aprendi a dizê-las para o psicólogo. Claro que é desconfortante ver alguém ali na sua frente olhando para você como se você fosse um rato de laboratório. Porém percebi que o cientista, que é o psicólogo, pode amar o rato de laboratório, e não ter nojo dele. Não adianta, pelo menos no meu caso, não desisti da história do amor. Abaixo Freud, e etc e tal. Quero me sentir amada, porque só assim conseguirei me amar. É a coisa do reflexo mesmo.
Desde o primeiro dia de terapia faço manifesto. Esse manifesto é semanal: "quero amor", "me dê amor", "eu só fico aqui se não sentir frieza em você", etc. Não, não estou falando do amor sexual, mas da ternura. Quero olhar para o psicólogo e ver, nos seus olhos, ternura pela minha tragédia de existir.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

"A galinha degolada"

Na noite do Réveillon, meu amigo, com uma faca na mão para cortar o peru, disse:
- Aeronauta, você já leu "A galinha degolada", de Horacio Quiroga?
- Não, respondi.
- Ah, vou te emprestar.
Foi lá na estante e me entregou aquele que seria o conto mais terrível que já li na vida.
2008 havia chegado. Agora só nos restava comer aquele peru que estava à mesa já com a faca no corpo. Comi tranqüila e calma, como se diz por aí. Não sabia que aquele peru metaforizaria a dor que eu iria sentir em meados desse mês de janeiro num dia de sábado à tarde, quando resolvi ler o conto.
Estava sozinha numa casa que não era a minha, e em nenhum momento imaginei o que me esperava. (Não gosto de contar enredos de filmes, romances, novelas, muito menos contos. Mas dessa vez você, leitor, vai precisar saber - se ainda não sabe - o que nos causa essa história...)
O conto traz "quatro filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz", que ficavam sempre sentados "o dia todo num banco do pátio", "olhando para o sol com uma alegria bestial, como se fosse comida".
Nas quatro tentativas de ter um filho, o casal "falhara": quatro idiotas nasceram.
Na quinta tentativa "acertaram": veio uma menina "saudável", e que foi muito mimada por isso, enquanto que os quatro idiotas ficavam lá largados e sujos, olhando para o nada, olhando para um muro de tijolos, "demitidos de todo e qualquer carinho"...
Um dia os quatro idiotas resolveram sair do banco e ver a empregada degolar uma galinha para a refeição, "dessangrando-a lentamente" (a patroa lhe disse que só dessa maneira "conservava-se o frescor da carne")... E os meninos olhando...
A menina cresceu: forte e cercada de atenção. Porém, nesse mesmo dia que a ave foi degolada, ela driblou os olhares dos pais e foi tentar subir o muro. E os quatro idiotas olhando, afinal ali era o lugar deles existirem. A menina buscou subir o muro mas os quatro idiotas "lentamente avançaram". A menina gritou pelos pais, mas seu grito não foi escutado. Os idiotas tinham nas mãos, agora, a menina: "um deles apertou seu pescoço, separando os bucles como se fossem penas, e os outros a arrastaram por uma perna até a cozinha, onde naquela manhã tinham dessangrado a galinha, tirando-lhe a vida aos poucos, segundo a segundo."
O conto não termina aí, mas não vou contar o resto. Não vou.
Esse conto me deixou petrificada no sofá daquela casa que não era minha, daquele sábado que não era meu.
Ah, a literatura não nos traz gratificações; nos ensina, isso sim, tudo sobre a nossa mais terrível miséria humana.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Amo, amo, amo...

O amor.
Não sei dizer o que é. Sei amar. Amo você que me lê agora, amo quem me olha de soslaio, amo meus alunos como só uma mãe ama. Amo as salas de aula e as paredes aguardando, na sua dissimulada superfície, os poemas que serão ecoados. Amo ensinar, como disse o professor Keating no Sociedade dos Poetas Mortos. Amo comer bolo de cenoura com chocolate. Amo mais ainda tabletes e tabletes de chocolate. Amo a Festa do Divino na minha cidade e a coroação do menino. Amo as lembranças de minha antiga casa, onde, nos meus seis anos, espiava meu pai tomar banho. Amo a minha libidinosa memória infantil, a força pura dos amores pulsando, os sonhos que só meus sentidos alcançam. Amo minha vidinha normal, você acordando e eu lhe vendo.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Bilhete encontrado numa gaveta

Não tenhas medo de meu amor. Em dias de chuva ele se veste das sombras deixadas pela ausência dos transeuntes. Em dias de calor despe-se do vermelho e sonha o nu absoluto, mais obsceno, vertendo-se em sonho... Para isso servem os amores impossíveis: para nutrir a natureza, celebrar a noite e a morte como vínculos com o eterno sentimento do mundo.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Mariquinha

Desde criança fui dada a melancolias. E mãe me mandava para a rezadeira. Não só eu, mas minha irmã também. As duas sempre com o corpo mole, sem vontades de levantar da cama. Mãe dizia que era quebranto. E comprava figas, laços de fita vermelhos, tudo para driblar o olhado do povo. Mesmo assim, lembro que até os quinze, dezesseis anos, a moleza ainda nos pegava e mãe nos enviava para a rezadeira da cidade: Mariquinha. Ela morava na Rua dos Sete Pecados, atrás do sobrado verde, ao lado da praça principal. Mariquinha era uma senhora de uns setenta e muitos anos, negra, dona de um repertório de rezas e performances bem interessante. Chegávamos na sua casa e íamos entrando, porta adentro. A casa era comprida, escura, cheia de móveis velhos e santos estupefatos, nos olhando dos oratórios com olhos de espanto e eternidade. Entrávamos chamando seu nome: "Mariquinha, ô Mariquinha..." Ela estava sempre nos fundos da casa, próxima ao quintal. Bem magra, forte, lúcida, dizia: "Vão entrando, meninas..." E completava assim: "Ah, são as meninas de Terezinha, entrem, entrem..." E nem precisava a gente dizer mais nada. Ela nos levava para o meio do quintal e ia procurar um ramo de folhas verdes. Era uma de cada vez: primeiro minha irmã, depois eu. Pronunciando uma reza engraçada, ela nos rodava e nos rodava e nos rodava, dando uma surra em nossos rostos, costas, braços, pernas com o ramo de folhas verdes, ritualmente falando: "... Se o quebranto é no olhar, é no calçar, é no vestir..., saia olhado, quebranto, plasmado". E terminava: "...Onde Jesus põe a mão, Nossa Senhora põe a vertude", não se importando nem um pouco com as nossas risadas. Era essa (além, claro, de muitas outras) a grande virtude de Mariquinha.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Cecília...


Outro dia sonhei que o coche fúnebre

Outro dia sonhei que o coche fúnebre
vinha buscar-me e eu não me achava preparada:
não estava nem morta nem doente,
e sentia que tinha de partir.
Então, disse para o cocheiro:
"Espere um pouquinho,
que estou acabando de ler este livro."
E o cocheiro concordou e esperou.
Deve estar esperando.

(Cecília Meireles)

Entrar em 2008 com a poesia de Cecília! Ah, Cecília, o que seria de mim sem tua existência, sem tua poesia? Tenho certeza que não seria quase nada. Tudo o que sonha em mim e pulsa, e diz, e não diz, tem teu nome, tua marca, teu olhar. Cheguei a acreditar, na pretensão de meus dezesseis anos, que eu era a tua encarnação! Já pensou a maravilha de ser Cecília Meireles?