segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

"... Dorme, inventado imprudente menino"

Este último dia do ano resolvi passar com a poesia de Hilda Hilst. Principalmente com "Poemas malditos, gozosos e devotos", livro que ela escreveu dialogando com Deus. Nota-se, em todos eles, uma emergência em chamar Deus à carne, às sensações, à vertigem de existir...
Transcrevi um poema que vai abaixo, a fim de que ele possa dizer a minha voz, a minha procura pela poesia, a minha busca pelo gostoso sono de Deus.

V

Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Orações

Li, uma certa feita, Harold Bloom dizendo numa entrevista algo muito interessante, e que era mais ou menos assim: decore poemas como você decora orações, e sempre fale para você mesmo em todos os momentos, seja os difíceis e os maravilhosos. Quando li esse conselho, lembrei que eu já fazia isso há muito tempo, desde que me apaixonei pela poesia. Decorei principalmente "Consolo na praia", de Drummond e falo para mim, constantemente, bem baixinho, em qualquer lugar: no ônibus, na fila do banco, na rua, sob a chuva e sob o sol...
Me vem agora, de lá das bandas de Pernambuco, esses versos de Mauro Mota:

AUSÊNCIA

Vestias diante do espelho
o vestido de viagem,
e o espelho partiu-se ao meio
querendo prender-te a imagem.

Prendo esses versos na memória e vou soletrando palavra por palavra. Lá fora a chuva veio fora de hora. É sábado. Tudo fica em estado de alerta para ouvir o poema que minha memória recita.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

"Maria, valei-me!"

Há uma receita mesmo de Ano Novo? Pergunto a Drummond, que escreveu uma. E ele me diz que as receitas, em si, nunca funcionam, de fato. Mãe já me disse isso uma vez, ela que vive de colecionar receitas de bolos e outras guloseimas. A receita não é o suficiente, é preciso algo a mais que não está lá escrito (óbvio). Talvez por isso eu nunca tenha conseguido fazer um arroz que preste: me falta este algo. Então, como criar uma receita para se ter um ano feliz?, como?, se um lance de dados jamais abolirá o acaso...? Basta ter fé? "Maria, valei-me!", digo o que mãe não se cansa de dizer, é o bordão dela desde que nasci e a conheço... Digo: Maria, valei-me do tédio, valei-me. O tédio perfura a nossa alma, sorrindo. O tédio é cínico, nauseabundo. Principalmente quando todo mundo só fala em festejar e esperar, com fé, o ano que está chegando... Antigamente era hábito para mim, no primeiro dia do ano, datar. Estivesse onde estivesse eu tinha que arrumar uma folha de papel em branco e datar, escrever pela primeira vez o ano novo, deixar marcado que eu estava ali, naquela data suprema... Tudo deixou de ser novidade. Mas claro que tenho fé num ano bom, mesmo sabendo que o tarô não me deu a melhor carta para esse ano. Mas tudo bem, não vou ter fé em cartas. Vou ter fé em mãe, que reza por mim todas as noites e depois sempre reclama: "Rezei tanto pra você, por que aconteceu isso?"; ou: "Rezei tanto pra você conseguir, que bom!" Maria está sempre por perto, lhe ouvindo, eu sei...

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Contínua prosa do contra

A sensação é que o tempo parou, tudo parou para esperar 2008. E essa angústia que me consome? Esse mal-estar de final de ano? Onde ancorar tudo isso? Nas sobras de 2007? Na verdade, o que são 2007, 2008...? A vida é cíclica, só aumentamos de idade. Os dias da semana se repetem, os meses se repetem, as estações se repetem, o seu sorriso e o seu choro (vixe, cuidado com a auto-ajuda, Aeronauta). Tudo é uma repetição só. Não, não estou de mau humor hoje, estou até tranqüila. Só que não agüento mais as convenções. Quero dizer que a data de hoje é 27 de dezembro, e que já vi muitos 27 de dezembro. Sempre volta o 27 de dezembro. Sempre voltam os shows para festejarem o ano que chega: na passagem de 1917 para 1918 foi assim mesmo! Só as pessoas se vestiam diferente, ou dançavam diferente, sei lá. Mas a expectativa, as palavras de "feliz ano novo", os cumprimentos, são tudo coisas que se repetem. Chega uma hora em que a gente enjoa. É muito provável que guardo na parte mais superficial de minha alma todos os milênios de existências consumidos em ter a ilusão de ver mudar as coisas numa queimada de fogos, ouvindo trilhões de vezes "feliz ano novo". Ultimamente estou meio Bouvard e Pécuchet: todos, afinal, temos algo dessa flaubertiana dupla.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Prosa do contra

Festas de final de ano sempre me deixam desconfortável. Nervosa. Irritada. Esse "ter de" passar o Natal ali, "ter de" passar o Reveillon acolá, "ter", "ter"... Muitas vezes renunciei a gente e resolvi passar as duas datas sozinha, muito bem sozinha, na minha casa. Que coisa boa! Nada de festas, nada de cumprimentos, nada de alegria, apenas paz. Uma paz enorme, ao constatar que aquelas datas estavam passando dentro de mim em silêncio, e não em algaravia com um monte de gente. Ah meu Deus, será que preciso mesmo aprender a não ser só? Quero ser só, que diacho. Que me deixem em paz na minha casa de joão de barro, oh. Estou mesmo nervosa hoje. E não só hoje, desde o início dessas festas que não acabam nunca - uma grudada na outra. E este chamado recesso é horroroso. Porque não há recesso em paz. Há recesso com um monte de obrigações. Fazer isso, fazer aquilo. Enquanto que o que desejo é dormir. Dormir um sono longo, longo, longo... E que não me acordem, façam o favor! Almoçar, para quê? Já almocei com algum anjo sem-que-fazer em algum lugar do espaço! Há algo demais em querer a preguiça? Em não querer fazer nada? Em não querer falar nada? Que me deixem com um disco de Bach, só isso, e estarei em paz.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Conversas natalinas

É tarde, quase noite de Natal. E meu sobrinho, de dez anos, telefona para mim dizendo que sabe que Papai Noel não existe mais. E que não saiu perdendo não, pois os presentes continuam garantidos. E que Natal é a festa que mais gosta, nem o aniversário dele é tão bom. E que quando eu for, à noite, para a ceia, não me esquecer de levar o cd que lhe tomei emprestado: "Um século musical: o melhor da música brasileira", que tem "conversa de botequim", lembra?,de Noel Rosa, música que ele ama pois acha muito engraçada. Ah, e que eu leve emprestado - "como se fosse presente de Natal", o meu disco de Beto Guedes. Outra coisa: que ele ficou ontem, até às onze horas da noite, ouvindo com o pai o cd de Elis Regina que eu lhe dei na quarta-feira. E que "o cd,titia, é fantástico: Elis cantando samba!"...

Ao desligar o telefone, tento buscar a menina de dez anos que fui, perdida do outro lado de uma linha que não existe mais. O que ela ainda sente? O que ela ainda gosta de ouvir? O que ela gostaria de ganhar neste Natal?
Ela não responde. Anda longe, e daqui só consigo ver uma árvore pequena que mãe armava todos os anos em cima da mesa, forrada com um pano bordado de sinos coloridos... Agora, nem um rastro de Papai Noel. Nem de um som natalino. Mas a menina está lá dentro, eu sei, insistente e pálida, aguardando.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Prece de Natal

Há mais ou menos seis meses não escrevo um verso, um poema. A poesia me abandonou por uns tempos. Escrever poesia requer arrebatamento, alma em eterna suspensão... É mesmo a poesia que se escreve no poeta, como disse Octavio Paz. E ela me deixou por uns tempos, volto a dizer. Uns tempos longos, que são os tempos de se crer numa realidade que se impõe, que diz assim: olhe, estou aqui, me veja, existo mesmo, não sou alucinação. Nunca acreditei na realidade, desde criança prefiro o outro mundo, não esse de compras e pagamentos, de nota de dez reais e do trovejo que é carregar moedas, de sair querendo uma bolsa nova e um sapato novo. Desde criança construo meus próprios sapatos, e meus vestidos são do organdi mais fino, mais tênue, mais imperceptível... Ah, e uso chapéus antigos, de muitos séculos passados, todos eles costurados com agulhas invisíveis e dedos vagos. Não, não sou e não quero ser desse mundo. Não quero essa realidade. Essa mesma agora de ir ao Shopping Piedade e ter que me enternecer, morrer de pena daquele monte de papai noel debilóide dançando, pedindo a caridade de serem vistos e apreciados. Tenho horror a qualquer festa que não seja a do espírito que dança do outro lado do mundo... Olhem, vejam!, a festa é linda, tem igrejas e anjos barrocos, preces e sonhos loucos... desses que a gente só tem quando estamos soltos, leves, completamente mortos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Vasto mundo (À maneira de... Carlos Barbosa)

Como escrever para alguém que entorpece a alma? É, eu escrevo para você. Há muito tempo. Nós dois sabemos disso, veladamente. Sua alma brinca de se esconder comigo, eu aceito o jogo. Me solto num túnel perigoso onde só amar é preciso, só amar, você está ouvindo isso?, amar, amar, palavra mais louca, imprecisa, precisa, como andar numa gangorra. Como estar aqui, antes que você, ou eu, um dia morra, e nunca mais poderemos nos alcançar. Como, pergunto ao mundo, talvez ao meu primo Raimundo, como lidar com rimas tão inseparáveis?, com rimas pobres mas terríveis? Como, "Mundo"?, sua avó, de oitenta e cinco anos, agora lhe pergunta através de minha voz.

domingo, 16 de dezembro de 2007

"Eis a noite!"

Postagem de número 71. Não sei se vai ao ar. Não sei se passará pelo crivo cruel de minha leitura. Sou cruel comigo: na adolescência eu mordia meu braço quando estava com raiva. Mordia até ver o formato de meus dentes na pele. Era como se eu mordesse o mundo, com todo o veneno possível que havia em mim. Não sou flor que se cheire, como dizia minha mãe. Não venha para cá com dó de mim, que lhe cravo os dentes. Já pensei muitas vezes em matar. É, com revólver. E bem no meio das costas do fulano. Aquelas costas brancas, nojentas, que abraçavam uma outra pessoa. Aquelas costas que não vão me dar agora a infeliz idéia de um trocadilho clichê. Aquelas costas que são a parede branca, insustentável. Não, essas costas não merecem metáfora nenhuma, nem as piores. São costas largas, frias, cheias de odores. E que nunca me quiseram.
É, não sou mesmo flor que se cheire. A cara e o tamanho enganam. As palavras também. Já me atirei diversas vezes num rio anônimo que passava no fundo de minha alma. E cada vez que fazia isso mais minha alma renascia. Ah, "Eis a noite!" como escreveu João Alphonsus! "Eis a noite!" - conto que me deixou boba de emoção como uma solteirona - uma mulher "entrada em anos", bem machadeana. Ah, "Eis a noite!", repito bem alto para alguém na rua me ouvir, e me ver da janela acenando.

"Uma coisa assim"

(Antigamente quando as pessoas nasciam os pais saíam porta afora soltando foguete. Alegria! Mais um veio ao mundo![Para quem não sabe do que estou falando, foguete é a mesma coisa que fogos de São João]).
Sempre tive pavor a foguete. Quando criança era a coisa que eu mais tinha medo, além de cachorro. Lembro de uma festa do Divino em que fui com minha avó para a última novena, num sábado à noite. Ao sairmos da igreja, a foguetada começou. Foi um horror danado. Eu chorava, grudava na minha avó, e entrei na primeira casa que vi pela frente. E eles, os fogueteiros, não acabavam jamais de festejar: era um foguete atrás do outro. E minha avó nunca foi de ter muita paciência, só com Raimundinho, um neto que ela criou para dar a São Paulo e não virar solução para ninguém, só rima para o mundo; "Mundo" - que era como ela lhe chamava com dengo. Pois bem, eu, ela e Raimundinho, presos naquela praça enorme da Matriz, dentro da casa de uma pessoa que não conhecíamos, só porque eu me pelava de medo de foguete... Eu gritava e chorava sem nenhum pudor (devia ter uns oito anos), para ver se os fogueteiros paravam. Que nada! Depois de mais de uma hora nisso, minha avó me puxou pelo braço e foi me levando pela praça incendiária. Com tanto foguete, a praça era um clarão medonho numa das cenas mais horríveis que tenho lembrança. E eu saí correndo e ela e Raimundinho correndo atrás de mim, algo risível. Quando finalmente conseguimos chegar em casa, minha avó falou para mãe, quase cochichando, que nunca viu "uma coisa assim": "Que menina medrosa é essa, Té?"
Outro desencontro que tive com minha avó aconteceu quando eu era bem pequena: devia ter uns cinco anos. Fomos todos para a sua casa e de lá mãe saiu escondida para um povoado perto. Saiu escondida de mim, claro. Quando procurei por ela e não encontrei dei início a um choro de fazer qualquer um ficar doido. E minha avó dizendo: "deixe ela chorar". E chorei mesmo: o dia inteiro. Só que teve uma hora em que ela já estava perdendo a paciência e falou em me bater. Não me esqueço da revolta que senti nesse momento ao pensar na maior verdade que acreditava existir: avó não tem direito de bater em neta...

São essas as duas grandes lembranças "chatas" - de infância - que trago de minha avó. Uma mulher danada, sem papas na língua, e que só tinha dengos mesmo era para Raimundinho... Raimundo, aquele primo que São Paulo carregou a fim de ser uma triste rima para o mundo. Esta história outro dia eu conto.

Escrever

O que faz a gente parar de escrever? Talvez este seja um bom mote para um domingo feio. Nunca me esqueci daquela pergunta de Rilke ao jovem poeta Kappus: "morreria, se lhe fosse vedado escrever?" Se sua resposta for "afirmativa", diz o poeta, "então construa a sua vida de acordo com esta necessidade".
Muitas pessoas acham somente romântica e idealizada tal pergunta rilkeana.
Eu não. Desde os doze anos sou impelida a escrever, obrigada a escrever. Algo de não-sei-onde me manda ir escrever, como se gritasse no meu ouvido: escolha: ou você escreve ou você mata alguém. Ou você escreve ou você se mata. Sei lá, coisas dramáticas assim.
Mas Raduan Nassar está aí para confirmar que é possível parar de escrever.
E muita gente que escreve e está feliz nesse momento pode afirmar: não quero escrever, sobrevivo se me fosse vedado escrever. E não escreve e pronto.
Borges estava certíssimo ao afirmar que a felicidade é estéril, e que a infelicidade quer ser transformada em alguma coisa. A felicidade é assim: a gente fica alegrinho, bobinho, dá muitas risadinhas, se arruma para esperar o namoradinho, e dão juntos muitos abracinhos, beijinhos, tudo no diminutivo, tudo no diminutivo...
Não estou aqui fazendo apologia ao sofrimento, de maneira nenhuma. Faço apenas apologia à possibilidade de poder transformar minha infelicidade em alguma coisa.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

"Ninguém sabe nem saberá"

Devo ter herdado mesmo de meu pai essa nostalgia, essa lágrima pendente, sempre pronta a cair, esse desespero de amar... Esses dias enormes que nunca acabam, nem por decreto de algum poeta invisível. Oh, Quintana, venha me visitar agora e me diga o seu "ora bolas!" Preciso rir, talvez relembrar que visitei o hotel de Falcão em Porto Alegre e na minha idiotice não sabia que você morava lá. Ah, se eu soubesse... Bateríamos longos papos, talvez. Talvez não, naquela época, aos vinte e poucos anos, eu era mais bicho do mato do que sou agora. Mas eu já tinha colado no meu guarda-roupa o seu poema "Canção do dia e de sempre". E achava que você estava certo. Eu sempre quis ser sábia e engraçada, como você, e nunca consegui. São esses dias, Quintana, esses dias que não acabam nunca...
É, devo ter herdado mesmo de meu pai essa melancolia absurda, essa emotividade sem freios, esse meio olhar para a vida. Todas as cartas de amor não respondidas, os sorrisos não trocados, a esperança lírica e íntima, sempre, açoitando... E a certeza de um destino escrito, ano a ano, num papel branco, como que se esboçando para o dia que nunca chega, que nunca chegará... Ah, Cecília, só tua vida poderá dizer da dor, a minha não. E eu fico aqui chorando diante da única tragédia que é apenas existir. Nem sou dentuça, não é, Bandeira? Nem tísica sou. Deveria estar agora numa roda de amigos bebendo vinho, sorrindo, ao invés de dedilhar, piegas, no computador.
Mas herdei mesmo de meu pai esse pendor para o choro, para pôr a mão na cabeça como minha tia,sua irmã, sempre fazia, a gritar: "O que esperar, Senhor?" Toda a sua família é assim, gente desesperada, gente como eu sou, que nunca soube negociar com o mundo, com a dor. "Oh, não se mate Aeronauta", me diz Drummond... Escuto sua voz daqui onde estou: ela de novo diz baixinho que o amor é mesmo "sempre triste, minha filha"... E ainda me pede devagar: "Mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá."

domingo, 9 de dezembro de 2007

Natal


O Natal está próximo, e eu sempre fico tão emotiva... Abri minha caixinha de guardados e de lá tirei as cartas que meu pai escreveu para minha mãe em época de namoro. São cartas muito simples e tocantes, e cada uma vem dentro de um envelope de papel azul e delicado, escrito atrás: "À jovem Terezinha Novaes Santos - Fazenda Campinho." Releio agora todas elas e sinto uma saudade esquisita, uma dor no peito, uma vontade de chorar...


Lagoinha, 22 de dezembro de 1961.

Inesquecível Té,

Primeiramente meu abraço.
Té, até o momento vou indo bem graças a Deus. Como vai você
e Dona Calu e os meninos, vão bem?
Té, aviso que não posso ir essa semana. Não posso ir à Festa.
Desejo que você dance bastante e seja feliz no Natal.
Não sabe como fico de não poder passar o Natal aí com vocês,
mas logo depois passarei o Ano Novo aí com você.
Té, peço que você mande a minha roupa por pai. Sem mais,
termino com saudade deste que lhe ama loucamente,

Bino.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Quando meu avô morreu

Quando meu avô morreu, minha avó teve um comportamento considerado estranho, principalmente por sua cunhada, irmã de meu avô, que não gostou nem um pouco do que viu.
Era noite quando chegamos lá na roça. Eu abraçava mãe e não acreditávamos naquilo tudo: a casa cheia, uns candeeiros clareando a imensa sala, e muita gente chorando. Minha avó foi nos receber na porta, assim como ela estava fazendo com todas as pessoas que chegavam. E também repetiu o que dizia desde que ali entrou a primeira pessoa: "Parem com essa besteira de chorar, gente! Que chororô que nada! Todo mundo um dia vai morrer! Hoje foi ele, amanhã sou eu, depois serão vocês! Entrem, entrem, mas nada de choro, nada de choro!" A repetição empolgada do "entrem, entrem", fazia parecer que ela abria as portas para uma festa. Claro que achei estranho, mesmo sabendo que minha avó sempre foi tirada a engraçada, quase seca para a vida, fazendo desdém das coisas, mas naquele dia ela ultrapassava todos os limites.
Fomos para o quarto: eu, mãe, minha tia, minha prima... Mãe estava mal, chorava muito. E minha avó, depois de receber as últimas pessoas que chegavam, entrou com um rompante no quarto que estávamos e tratou logo de explicar como meu avô morreu: "Assim, ó, de repente, sem quê nem pra quê! Depois dei banho, tá lá todo limpinho, cheiroso, ninguém pode dizer que não cuidei!" Dizendo isso, foi se sentando na cama junto com a gente, sem uma lágrima no olho, numa excitação juvenil: "Deixem eu falar pra vocês o que sofri com esse véi a vida toda!" Daí abriu sua vida, contou tudo, desde o casamento até aquele dia. "Ah, minhas filhas, esse véi nunca prestou, não é porque morreu que eu não vou contar tudo". E abriu mesmo o verbo: todas as traições, os filhos que ele teve fora do casamento, as pensões para as outras que ela sempre lhe obrigou a pagar... "Na primeira traição desmanchei o jirau e nunca mais dormi com ele! E digo mais, minhas filhas: tomara que não tenha ninguém na família que puxe a este homem!"
Assim foi a noite toda: minha avó, lavando a alma, contou o que queria com muita graça, e nós não conseguimos deixar de não rir. Até mãe chegou a rir numa determinada ocasião, mesmo com o rosto inchado de chorar.
Na casa todos comentavam aquele comportamento de Dona Calu. Que coisa! Nem uma lagrimazinha! "Esse véi foi ruim demais, minhas filhas, e que Deus lhe perdoe!", ela repetia. Minha tia-avó (irmã de meu avô),diante de todo esse teatro, se sentou na cozinha e ficou lá com a cara amarrada de ressentimento.
No outro dia, bem cedo, acordamos com as ladainhas tiradas, na sala, por minha avó bastante animada. As rezas eram tristes, mas ela alteava no tom e a coisa perdia um pouco a dramaticidade. Na hora do adeus final, foi ela quem ordenou aos filhos fazerem uma fila para darem a benção ao "véi" que estava partindo. "E os netos também, têm que vir", ela gritou. Lá fui eu na fila. Minha irmã fingiu que ia, aproveitou a distração de minha avó e não foi não, se escondeu no meio do povo. E a ordem continuava: "Dêem a bênção e beijem a mão dele!" Todos obedeciam. As pessoas presentes buscavam lágrimas nos olhos dela e, nada achando, murmuravam entre si: "Como é que pode? Que velha dura é essa?"
A fila dos parentes todos se despedindo foi grande. Isso levou mais ou menos uns trinta minutos. Depois ela voltou ao comando: "Tampem o caixão, está na hora!"
Na porta, uma caminhoneta com o fundo aberto esperava. O cemitério era longe, o enterro seria acompanhado de carro. Os filhos pegaram o caixão e foram saindo, colocando-o, a seguir, na caminhoneta. Minha avó no batente da porta olhava, com o olho seco. Fecharam a caminhoneta. O motorista ligou o carro. Minha avó no batente da porta olhava para tudo aquilo, dura. Depois mexeu no lenço da cabeça e começou um choro longo, doloroso, entrecortado de soluços.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

O "motivo da rosa"

Esqueçam! Esqueçam tudo que eu disse até agora sobre esse negócio de amar e ter que ser amada, fui muitíssimo leviana. Isso porque só hoje tive acesso a uma verdade extraordinária. Quem me disse foi alguém de outro mundo pela boca de uma pessoa próxima, que tem a missão de me ajudar nessa milésima vida que estou vivendo. Eu, no meu primarismo existencial, querendo receber amor a qualquer custo, a ponto até de desejar voltar a passar facão na cabeça de gente que não me amava, aprendi, hoje pela manhã, algo sublime. Sabe dessas verdades que a gente não ouve todos os dias? Que os ventos escondem atrás das pedras em dias de muito sol? Que nas noites de tempestade os trovões fazem questão de esconder dos nossos ouvidos? Que Deus embaralha nas cartas do tarô para que não possamos saber senão na hora certa?
Eis a hora, Aeronauta. Desculpem, leitores, mas não posso contar, é segredo.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Rimas desagradáveis

Sempre amei muito. E sei que ainda tenho uma propensão grande para amar. Mas o amor é algo tão difícil que aos quinze anos eu já dizia para mim aquele poema de Drummond: "Carlos, sossegue, o amor/ é isto que você está vendo:/ hoje beija, amanhã não beija"... etc. E completava, à maneira minha e do poeta: "Aeronauta, sossegue","depois de amanhã é domingo/ e segunda-feira ninguém sabe o que será". Cruel esperança, essa do amor. E repito o que disse Mário de Andrade no conto "Vestida de preto": "Minha impressão é que tenho amado sempre..." Frase simples, mas que desde a primeira vez que li me causou um impacto enorme. Sabia, secretamente, que essa seria a minha verdade mais íntima e dolorosa.
Isso tudo porque aquela história de dizer que o que vale a pena é só amar sem esperar amor de volta é apenas uma história bonitinha e inverossímil. Eu amo e quero amor de volta, sim... Por que senão como sobreviverei? Morrerei de fome, morrerei triste e perdida, chorando igual a uma condenada...
(Nesse instante me lembro de uma coisa risível: aos onze anos eu tinha um caderno de pensamentos, rimazinhas pobres, versinhos bobos, e um deles dizia: "amar e não ser amado é melhor morrer crucificado" (ah, ah, ah). Toda vez que me lembro desses pobres versos me dá vontade de rir. Puxa, eu, aos onze anos, com um gosto miserável para a poesia, já acreditava nessa verdade secreta, e mal-formulada em rimas tão desagradáveis...)

Orações

Li, uma certa feita, Harold Bloom dizendo numa entrevista algo muito interessante, e que era mais ou menos assim: decore poemas como você decora orações, e sempre fale para você mesmo em todos os momentos, seja os difíceis e os maravilhosos. Quando li esse conselho, lembrei que eu já fazia isso há muito tempo, desde que me apaixonei pela poesia. Decorei principalmente "Consolo na praia", de Drummond e falo para mim, constantemente, bem baixinho, em qualquer lugar: no ônibus, na fila do banco, na rua, sob a chuva e sob o sol...
Me vem agora, de lá das bandas de Pernambuco, esses versos de Mauro Mota:

AUSÊNCIA

Vestias diante do espelho
o vestido de viagem,
e o espelho partiu-se ao meio
querendo prender-te a imagem.

Prendo esses versos na memória e vou soletrando palavra por palavra. Lá fora a chuva veio fora de hora. É sábado. Tudo fica em estado de alerta para ouvir o poema que minha memória recita.