quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

perto das águas


POEMA PARA ANTONIO


Eu te amo, Antonio, e teu nome
Abre minha alma: nada se esconde.
Tu vês essa transparência e nele te dissolves
Etéreo e silencioso, como céu no inverno.

No ritmo das pedras que se eternizam
Perto das águas, em ti me detenho.
E como as estradas, teu amor amor me acolhe
No abandono mais triste, mais sereno.



Imagem: "Cada ser tem sonhos...", por Paloma Parentoni. (www.flickr.com)

domingo, 27 de dezembro de 2009

canção para adormecer os sonhos


Por aqui há inverno, flores docemente se balançam ao vento lírico, vento vindo de Paris, daquele café onde nos sentamos, há milênios, entre uma nuvem e o rio Sena.
Sorrateira, tenho apenas a certeza de uma realidade tangível, meu braço tocando facilmente o teu.
Meus olhos, perfeitamente duráveis, multiplicam-se nesses minutos que caem, um a um, num mundo sem festas, calmo, compartilhado.
Antídoto contra a tristeza, bebo gota a gota a melancolia. Para sair flanando atrás de alguma coisa, um sonho desses por exemplo, diferente de tantos, como daquele em que roubei um carro e morri de remorso.
E o outro, mais besta, em que roubei uma moto.
Oh, por que não roubar rubis? Ou bonecas de porcelana guardadas em baús envelhecidos?
Ou livros com dedicatórias para Antônio ou João ou Manuel...
E ser eu, quem sabe, Margarida, Teodora, Beatriz? Com um vestido longo e branco, andando por corredores, chamando teu nome, à guisa dos filmes antigos?...
Por aqui há inverno, flores docemente se balançam ao vento lírico, vento vindo de Paris, daquele café onde nos sentamos...


Imagem: "Winter sunset along the Seine, Paris", por Rita Crane Photography.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

As regras noelinas


Presente é coisa tão bonita: vem sempre sob um papel florido, papel de festa. Alguns são quadrados, outros retangulares, outros redondos. É uma maravilha ganhar presente, mesmo que seja um mero sabonete, sozinho, perdido da caixa. Claro, mas esse sabonete precisa vir enrolado num papel brilhante, com cara de festa. E que o dono lhe dê junto com um abraço. E que ambos riem, felizes.
É uma pena que só nos aniversários e finais de anos isso aconteça com regularidade.
Sempre gostei de dar e ganhar presentes. Ao dar me sinto uma mãe adotiva, entendendo o que é a felicidade proveniente da compaixão, de dar-se para o outro, de ser um pouco com ele. E de, óbvio, respirar a felicidade pairando no ar.
Ao receber, mesmo ficando sem graça, é uma felicidade infantil. Fico logo ansiosa: quero abrir o pacote, ao mesmo tempo com cuidado, pois o papel festivo não pode ser agredido a ponto de desintegrar-se. O papel faz parte do afeto, sempre senti isso.
Abrindo e dando de cara com o presente em si, vem o abraço e a felicidade.
Vejo, portanto, que algumas vezes é muito fácil ser feliz.
Porém, como disse um personagem de Alessandro Baricco, "sempre falta algo à vida para que ela seja perfeita". E em alguns momentos os papéis floridos, assim como os objetos dentro deles, ou seja, os presentes, se tornam algo difícil de alcançar, para toda a vida.
Aí surge a menina que está indo para casa e vê na Rua dos Sete Pecados uma fila grande, grande, enorme, dobrando a praça. As crianças que estão na fila vibram a cada saída de uma outra, proveniente de uma casa ostensiva. Saem com enormes pacotes brilhantes, papéis de presente diferentes dos que vendiam na nossa cidade. Na saída as crianças agraciadas vão lascando os papéis pelas calçadas e de dentro surgem lindas bonecas com cabelo lustroso, olho que bate e vestido longo. Que felicidade a minha! Pois então ali davam presentes de Natal? Pois, pois, entrei logo na fila que eu nunca fui besta.
Permaneci na fila, diga-se, lenta de expectativa, mais ou menos uma duas horas.
Quando, molhada de suor, coloquei o pé na batente da porta-paraíso, e constatei a sala cheia de presentes, vibrei. Mas logo na porta surgiu uma dona austera, vestida com belas roupas. Me olhou e disse:
- Você não. Seu pai é rico, pode lhe dar presentes.
Ainda fiquei esperando, mas ela chamou o próximo com insistência.

***

Papai Noel lá em casa sempre foi magnânimo. Cumpria minhas cartas à risca, e eu adorava aquele velhinho. Adorava mais ainda acordar na madrugada e ouvir o barulho que meu pé fazia batendo no papel de presente. Ficava tocando seguidas vezes aquele papel diferente, tão feliz, antes de abrir o pacote e constatar a fidelidade de Noel.
Mas num Natal isso não ocorreu.
Bati o pé e não senti papel e nem presente algum.
De meu lado minha irmã vibrava com o presente dela.
Pensei: que traição, que injustiça. E claro, botei a boca no mundo com toda a força.
Mãe e pai acordaram e foram ver o que acontecia. Eu chorava e aos soluços tentava explicar-lhes que eu não ganhei presente de Natal.
O pior de tudo era que minha irmã tinha ganhado. E olhar pra ela rindo fazia com que minha infelicidade aumentasse. Chorava, então, mais alto.
Pai e mãe curiosos mandaram eu vasculhar direito a cama. Disseram: Olhe tudo, quem sabe não está aí. (Eles me davam esperança.) Acreditei neles e procurei de novo. Nada.
Aí eles disseram: olhe embaixo do colchão. Olhei, e nada. Aí eles disseram: olhe embaixo da cama. Quanto botei minha cabeça embaixo da cama achei uma carta.
Era uma carta de Papai Noel.
Escrita com uma caneta vermelha em letras de forma.
Nela o velhinho relatava, em detalhes, todas as mentiras que cometi no ano. Todas as malcriações. E concluía que, por conta disse, eu não ganharia presente algum. Abri o berreiro mais alto, me sentia absolutamente injustiçada.
No final da carta, porém, tinha um pós escrito em que ele dizia que pensou um bocado e iria, por caridade, me dar mais uma chance: portanto, meu presente estava embaixo da cama, do outro lado da parede. Mas se no próximo ano eu não me comportasse direitinho, nécas de presente, para sempre.
Foi nesse dia que descobri ser Papai Noel um doutrinador cruel que gosta de brincar com o poder que tem.
Foi nesse dia que aprendi a dureza e a dificuldade que é ganhar um presente. Muitas vezes, para ter a graça de ganhar um, é policialmente necessário que sejamos como os outros querem, dentro de regras socialmente noelinas. E esse é um exercício profundamente desgastante e infeliz.

***


Imagem: Presente I (www.flickr.com)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

tocantins


Estávamos todas em Tocantins. Pegamos a excursão no ato. Preço módico: trezentos reais pelas três: eu, mãe, minha irmã. Nem pensamos duas vezes: dali mesmo, na rua, com a roupa do corpo, entramos no ônibus. Tocantins era uma cidade plana, com tantas pessoas comuns andando nas ruas, com uma atmosfera de nave de igreja, um destino deliberado em mãos alheias. É, as pessoas liam as mãos pelas calçadas, com a boa vontade jamais vista. Notei que tinha chegado no lugar certo e estirei as mãos aos passantes como quem abre as cartas ao mundo. Lembro perfeitamente do meu eme na mão esquerda, espalmada ao crepúsculo. Era um final de tarde, tão lindo o lusco-fusco em Tocantins! Ah, o meu amor vindo, vindo, previsto nas linhas de um eme torto, cheio de garras e descaminhos...



Imagem: Fim de tarde no tocantins, por luiz pantoja.
(www.flickr.com)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

cumplicidade


Quer ouvir um treco assim, bem baixo astral, num feriado religioso? A humanidade é fictícia. (Acho que peguei leve demais.) Não existe a coletividade. O que existe dentro dela é o indivíduo morrendo. Uns dançando, claro, rodeados de cerveja; outros querendo morrer, outros querendo que morram todos. Tudo, portanto, é enganação: bolo festejando aniversário de casamento, casa com bibelô na porta escrito na roupa "aqui existe amor, felicidade", essas baboseiras todas. Está vendo? Ninguém dará por minha falta no mundo, ninguém. Basta eu chegar ali na cozinha, pegar aquela corda e me pendurar feito um espantalho. Ah, não quer ler texto assim? Vá pra outro blogue, a internet está cheia de felicidade; bata em outra porta. Aqui não tem jeito: você só verá carne e sangue; há algo mais visceral que sangue? Pois aqui tem, demais. Pode ter sangue alheio: é só você continuar lendo. E sabe por que estou dizendo tudo isso? Porque preciso abanar essa ferida. Não está vendo esta ferida grande aqui? Puxa vida, que miopia a sua. Aproxime-se. Chegue perto. Já tirei a campainha da casa há muito tempo, pode entrar. Está vendo agora? Ah não? É tão invisível assim? Invento tudo? Aumento tudo? Sou louca? Sou doente? Epa, moço, não vá embora não. Veja direito. Lembrei de quando mãe me dava mingau com os dedos. Não tenha nojo não. Você não comeria mingau vindo dos dedos de sua mãe? É a mesma coisa. Não há imundície, há dor. Você não quer compactuar? Quer me mandar ir tomar banho de mar, ler livro de autoajuda, fazer acupuntura ou meditar? Oh, meu querido. Quero apenas tua cumplicidade, nenhuma palavra, nenhuma. Poder trafegar contigo por essas linhas; só isso.



Imagem: "Cumplicidade", por Mário Tadeu.
(www.flickr.com)

sábado, 5 de dezembro de 2009

sem trégua


Voltei ao antigo lugar onde trabalhei há vinte anos atrás. Estava tudo quieto. Na sala onde ficava a secretaria, ao invés dos móveis de aço havia uma cama de madeira, velha e puída. Nela uma senhora deitada com um vestido florido, pálida, tentava dormir. De sua presença exalava o odor das doenças impossíveis, sem trégua, sem compadecimento, sob um chão sujo, amarelo, e paredes úmidas. Saí imediatamente e fui andando pelo corredor, em busca de algum outro cômodo aberto. Tinha: o lugar onde as crianças faziam as refeições. Antigamente era uma sala larga, repleta de pratos e copos azuis, aberta para a cozinha. Agora apenas mais um quarto. Nele outra doente, com uma roupa branca, deitada numa cama de hospital. Tudo naquele lugar emanava sujeira e abandono. Quis fugir dali o mais rápido que os meus pés pudessem. O ar pesado, porém, me fazia arrastar pelo cimento. Andei mil anos até chegar ao portão. Antes de abrir o cadeado, ouvi uma voz conhecida vinda do primeiro quarto. Resolvi voltar e constatei mãe, bastante compenetrada, limpando o chão imundo com minhas melhores roupas.



Imagem: "Sueños", por Yolanda Carbajales.
(www.flickr.com)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

espião e traidor


Há uma escrita entre mim e ti. Não sei se provém do I Ching, com seus hexagramas indecifráveis. Há uma escrita; dessas que a gente lê nos sonhos, rapidamente, em letras oníricas, e desaparece. Escrita impossível, diria, livro que não se permite abrir, com capa e letras góticas. Talvez Deus esteja lá dentro, guardando tudo, devoto que é de muitas línguas; e dentro de nós, vivendo como espião fervoroso, para que nem pensemos em abrir o livro. Oh, mas uma força maior, Deus mesmo, como traidor, nos permite saber da escrita! E nos incita a essa ternura perversa e desesperada, ideograma dos suicidas.



Imagem: "Falling down", por Lilith Ecate.
(www.flickr.com)