quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Das bizarrices humanas

Chamava-se (e ainda se chama) Leônia. Talvez uma péssima combinação de leão com amônia, sei lá. Só sei é que ela fazia um monte de mecha com creme nos cabelos para que os cachos ficassem duros, à prova de vento. E que veio de São Paulo pra ficar. Estava morando na nossa rua, na última casa, perto da ponte, e um dia nos convidou para o aniversário de seu irmão. Que aniversário estranho! Primeiro porque o bolo era roxo, e segundo porque serviram como salgadinho nada mais nada menos que batatinhas cozidas enfiadas em palitos. Peguei pensando que era algo novo e quando senti o gosto já era tarde.
Mas o fato é que ela, Leônia, ficou nossa amiga. Tínhamos dezesseis pra dezessete anos e ela devia ter uns dezenove, vinte. Baixinha, atarracada, mais pra anã, como eu. Foi ela quem me ensinou a fazer mecha no cabelo, com creme, a fim de que os cachos ficassem duros, à prova de vento. E me ensinou algo que nunca esqueci, mais ou menos assim: quando o vento bater nos cabelos não devemos fazer nada: nada de querer deter o cabelo, pois é pior; o melhor mesmo é deixar o vento fazer o que bem quiser, pois quando esse passar, os cabelos voltarão ao normal. Engraçado, nunca me esqueci disso. Toda vez que estou na rua e o vento vem em cima de meus cabelos lembro do conselho de Leônia.
Logo logo ela se afastou da gente, e foi fazer amizade com meninas de outra rua. Mas sempre que a via, com os cachos à prova de vento, me dava vontade de rir. Até hoje nunca abandonou tais cachos, acrescentando outras coisas ao seu histórico: se entregou à comilança e à bebelança. Ontem minha irmã me trouxe notícias dela, tão bizarras que vou dividi-las com vocês.
Disse minha irmã que soube por uma amiga conterrânea, que Leônia não bebe mais água: só cerveja. É cerveja de manhã, de tarde e de noite. Senta de tardezinha na porta da casa com um monte de latinhas ao redor. E que decorou sua casa de uma maneira muito estranha. Aproveitou todos os cantinhos para enfeitá-los com bibelôs de sapos de todas as espécies e tamanhos. Da sala de entrada ao quintal. Nas paredes, imagens de sapos; nas estantes, sapos vestidos de roupas e usando bonés; sobre a televisão, sapo pequeno dormindo; sobre o aparelho de dvd, sapo dando sorrisos; sobre os sofás, sapos gargalhando em forma de almofadas. No quarto tem outros tantos em cima da cama: apertando a barriga desses sai um coaxar igualzinho a de um sapo de verdade. Em cima do guarda-roupa a saparia verde, os maiores, vigia seu sono. No quintal estão os sapos que não couberam dentro de casa: uns grandalhões, rústicos, de barro e de plástico.
Voltando ao quarto: sobre a penteadeira não tem sapos, mas algo bizarro também: um monte de vidro de perfume vazio. Pediu a todas as pessoas da cidade que dessem para ela os perfumes que fossem acabando. Tem todos os tipos de perfume que se foram.
Ah, e na cozinha? A saparia divide espaço com as joaninhas. Enfeitando a geladeira tem ímãs de joaninhas de todos os quilates, de todos as formas. Quando se tenta abri-la, as joaninhas caem pelo chão, numa barulheira terrível. Conta-se que uma senhora sua prima chegou pra visitá-la e foi abrir a dita geladeira pra pegar água... Quando vem de lá aquele monte de joaninha destrambelhada, a outra não fez por menos: pegou uma bacia, colocou todas as joaninhas dentro e aconselhou a prima a jogar tudo fora. O que essa não fez, claro.
Voltando aos sapos. A cidade inteira quis saber por que o incutimento da dita cuja pela saparia. Ela disse que foi uma coisa à toa. Estava sentada de tardezinha na porta, bebendo sua cerveja, quando viu um sapo na calçada, perto do rio. Aí imediamente pensou: puxa, o sapo, um bicho que ninguém gosta... Apiedou-se, portanto, e resolveu render-lhe homenagem. O marido é quem mais sofre, coitado: na hora de dormir deita-se sobre os sapos coaxando porque ela não quer, de jeito nenhum, tirar os lindinhos verdes da cama.

Série "cartas"

Numa caixinha que tenho de guardados, lê-se em cima: "cartas de mãe e de minha irmã". São verdadeiras pérolas. Vejam essa de minha irmã:

"Lábio amargo"

Hoje acordei com um gostinho amargo na boca: aquele que sempre sinto quando percebo que os outros finalmente vêem que não sou aquilo que idealizaram. Não sou mesmo, gente. O fato de viver nas nuvens não me faz pessoa melhor. Nem mais lírica. Nem mais generosa. Nem menos fútil. Vivo no meio dos livros, sou pouco vaidosa, detesto ir ao salão pintar os cabelos brancos que me atormentam, detesto ter que fazer as unhas dos pés (das mãos não faço nem sob tortura), odeio ficar experimentando roupas nos provadores de lojas (nunca encontro o que gosto)... A enumeração não teria fim. Isso tudo não é pra dizer que sou melhor que os outros, ou pior; ou que não sou fútil e vivo preocupada tão somente com os problemas do espírito. Ou do intelecto. De jeito nenhum. Porém, volto a falar que uma das coisas que mais me atormentam é envelhecer. E olhe que já envelheci bastante para a idade que tenho; talvez pela própria preocupação nesse item. A preocupação é tanta que, incoerentemente, nunca me cuidei para retardar o envelhecimento. Minha irmã, mais velha um ano, demonstra muito menos idade que eu. Mas o fato é que sempre me senti velha: aos treze me considerava uma velhinha de bengala. Descobri esse trauma ao lembrar que quando eu tinha sete anos mãe me disse que eu não era mais criança. Não aceitava: por que eu teria que deixar de ser criança aos sete anos? Ainda me pergunto isso até hoje.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Amizade seqüestrada

Na infância tínhamos, eu e minha irmã, uma amiga que adorávamos: Itamara. Ela ia lá pra casa almoçar com a gente e ficava a tarde inteira. Brincávamos, e umas oito, nove horas da noite, ela queria ir embora, obviamente. Mas o que é que eu fazia? Trancava a porta de saída e escondia a chave. A menina chorava, gritava, pedia pelo amor de Deus que a soltassem, mas eu nem tchum. Aí mãe vinha pra resolver o horror. Não lembro se minha irmã era cúmplice, só sei mesmo é que essa cena ficou marcada em mim como símbolo da amizade seqüestrada. Coisa que continuei repetindo vida afora, em suas mais distintas maneiras. Amar é algo terrível que dentre suas sinônimos tem a palavra engaiolar. Sim, botar o fulano dentro de uma gaiola, e dar-lhe um remedinho pra ele se acostumar, pra não se rebelar e ainda poder lhe amar em dobro. É demoníaco, sei, pois que eu nunca gostaria de ser engaiolada, de jeito nenhum. Tenho espírito de passarinho, de nuvem, de coisa que se desloca, se modifica continuamente. Mesmo assim, sinto ainda gastura quando gosto de alguém: e aí me vem "Ata-me", de Almodóvar. Ah, como já senti vontades de seqüestrar um grande amor que não me amava e lhe obrigar a me amar, a pulso! Isso é algo extremamente primitivo, e confessar aqui me traz a sensação de que posso olhar-me no espelho, mesmo com perplexidade.
Falo agora sobre essas coisas porque hoje, ao visitar todos os blogues e dar de cara com a porta fechada do blogue de Bernardo, ou melhor, o bico fechado, mudo, me lembrei da história de Itamara. Onde encontrar uma chave nesse mundo cibernético que possa trancar um ser virtual e mandar-lhe escrever? O que fazer para capturar alguém que não conheço, e que já tinha entrado na rotina de minha amizade, e obrigar-lhe a não me abandonar? Nada, não posso fazer nada. De cá, de meu esconderijo de pessoa extremamente imperfeita, mais uma vez vejo mãe chegando, me obrigando a devolver a chave da casa, abrindo a porta, e eu assistindo, pela milésima e infinita vez, minha amiga Itamara ir embora.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Heranças


Pai, aos quinze anos de idade, e tia Nói, aquela do sapato de madeira, lembram-se? Atrás do retrato vem a data: 1952. Esse retrato pai sempre utilizava para provar que já teve cabelos lisos. Só depois que resolveu passar máquina zero é que os novos fios nasceram crespos. Baixinho que só: nisso eu puxei a ele. Mãos nos bolsos da calça, desvendando a mais pulsante vaidade, é coisa herdada por minha irmã. Foi nessa época que ele realizou o maior sonho de sua vida: comer um quilo de açúcar. Trabalhou e arrumou dinheiro suficiente pra ir na venda e comprar. Com o quilo de açúcar nas mãos foi para o quintal e se empanturrou. Na quarta colher, vomitou tudo. Oh, como é metafórico isso...
Tia Nói, adulta, como vocês já sabem, nunca teve meias palavras: mulher de pulso forte, sempre bebeu pinga e brigou onde quer que estivesse. Porém, nesse dia aí do retrato ainda era uma menina. Por isso o retratista tratou de colocar uma cadeira a fim de conseguir uma possível simetria entre ela e pai. E esses braços cruzados? O que significam? Já traços de sua personalidade querendo saltar... Vejam só a cara quase se enfezando...
Ah, pai, como lhe procuro, como lhe procuro!
Minha irmã estará para sempre simbolizada nessas suas mãos dentro do bolso; e eu nesse seu olhar interrogativo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ainda sobre "Morte Abjeta"

Terminei agorinha cedo o livro. Faltavam tão somente quatro páginas. Que devorei antes do café. Volto a dizer: livro primoroso. E que me levou a pensar muitas coisas, inclusive sobre minha relação com a literatura. Duas coisas, acredito, me levaram à literatura, desde menina: primeiro, a curiosidade: ali dentro daquele livro fechado, e com um título na capa, tem coisas... deixa eu ir lá descobrir; segundo, a força que a literatura tem de nos fazer crédulos. Eu que sempre fui crédula, desde que vim ao mundo, percorrendo as páginas dos romances e poemas mais crédula fiquei. Foi na pós-graduação, incrível, que primeiro ouvi a ratificação dessa minha fé inabalável em todas as palavras escritas. Ouvi aquela famosa frase teórica na qual se corrobora que quando lemos literatura há "a suspensão da incredulidade". Pois bem: eu estava certa, eu estava certa, desde sempre, foi isso que pensei, e que eu já sabia, claro, desde os seis anos, quando li Chapeuzinho Vermelho. Ora, pois, o que quero dizer agora? É que acreditei em tudo que vocês, Bernardo e Judith, contaram. Ainda briguei com minha irmã no telefone, dizendo: foi verdade, sim. E ela: menina, como é que ocorreu um crime no Tribunal, em 1999, e ninguém soube! E eu: tudo pode. Não, eu não podia deixar minha credulidade de lado. Na verdade, o interessante é não saber onde a chamada "verdade" termina e a mal-falada "mentira" começa. Isso é que é interessante e que nos faz pactuar com a literatura. Vocês dois estão lá como autores e personagens. Surgem outros personagens que já conheço, virtualmente: Maria Sampaio, Mena, Verinha e suas filhas (Meu Deus, quer dizer que Maria Sampaio rouba santos de igrejas? Que maravilha!). São personagens absolutamente reais, críveis. Por isso acredito que Cirço existiu mesmo. E morreu nas salas do Tribunal. E Judite o encontrou em estado abjeto de decomposição. E daí o livro nasceu; e os dois grandes autores-detetives. Rindo da morte e da vida, como poucos sabem rir. Vocês são embusteiros, "mentirosos", que sabem tudo sobre o mundo e a literatura.
É verdade e dou fé.

sábado, 25 de outubro de 2008

Bernardo e Judith


Judith e Bernardo (torcendo para Maria Sampaio não ficar com ciúmes):

A vida, sei há alguns anos, é do contra. Ela não gosta de ver a gente feliz. Ela não quer, de jeito nenhum, por exemplo, que a gente leia. Faz de um tudo pra nos desviar dos livros e nos levar aos quefazeres sem graça, como atender a telefones gritando.Vou contar tudo. Depois de receber o "Morte Abjeta" na LDM, ler a dedicatória e a carta manuscrita do final e, ainda, postar o sucedido, a vida me tirou o tal livro das mãos. Não deixou mais eu pegar no dito cujo. Esse me olhava para todo lugar que eu ia. E quando eu finalmente recomeçava a leitura, o telefone tocava (não, não é desculpa de gente que não gosta de ler). Passei uma semana fora, então o telefone, que se encontrava mudo, desatinou a gritar. O mundo inteiro me chamando, eu que detesto que demandem de mim (por isso até hoje não tive filhos). Depois que desligava o telefone, e desgraçadamente ia abrir os emails, o que estavam lá? Mil pessoas me chamando, me pedindo coisas, inclusive para responder aos emails.
Agora à tardinha, voltando da rua, gritei: CHEGA! Peguei o "Morte Abjeta" e fui para o quarto, ler deitada, como gosto. Ah, moço, foi só o tempo de ler a primeira, a segunda, a terceira carta e rir, rir, rir, rir. E me deliciar, claro, com a beleza de escrita, com o suspense da história policial, com as descrições arrepiantes e engraçadas do estado dos que morrem e dos que ficam para contar. Percebi até agora que Bernardo é pontual nas respostas, enquanto que Judith enrola que é uma beleza pra responder. Ambos, porém, são extremamente pontuais no humor, na dilacerante observação da morte e, principalmente, da vida. Terrivelmente impagável na descrição do morto, encontrado em estado fétido de decomposição na sala de trabalho, Judith ressalta: "não tenho culpa, são detalhes indispensáveis":

No que havia a boca do indivíduo estava aberto um buraco, e como o nariz já havia sido comido, os óculos escorregaram pra cima do buraco, tortos de um lado.Parece que a criatura havia babado ou vomitado antes de morrer, pois em volta da cabeça e do pescoço, no chão, havia uma mancha circular, seca pelo sol que entrava pela janela sem persianas, das 10 horas ao meio dia. Os sapatos estavam nos pés, o telefone celular pendia frouxo, ainda preso ao cinto. Acho que o sujeito havia feito bastante cocô, pois havia uma massa seca e escura, que víamos pelo buraco aberto pelos vermes no fundilho lá dele. (p.18)

Bernardo, por sua vez, conta-nos mortes antológicas, presenciadas por sua condição de médico, vigilante de almas vivas e mortas: a história de um homem que foi atropelado "e deu um trabalhão para retirar um retrovisor agarrado nas mãos como uma tábua de salvação, e a língua teimosamente presa no limpador de pára-brisa que os socorristas levaram junto por algum motivo (...)"! O mais terrível e engraçado é o teimoso suicida que só conseguiu realizar seu intento após amarrar "uma carretilha de bombas de São João, de um real, em volta da cabeça":

Quem assistiu à cena garante que o infeliz (que não contava com as explosões em série), rodopiava loucamente, pipocando, numa dança grotesca. Um observador mais atento garante que viu os olhos do infeliz rodopiando um para cada lado; a língua balançando no mesmo ritmo frenético da cabeça e os braços balançavam feito os bonecões de Olinda. Imagine, então, o que encontrei no levantamento cadavérico! Saía uma fumacinha dos ouvidos, cheirando a pólvora de fogos Caramuru e o corpo parecia um Judas no day after. (p.23)

Vou parar por aqui, antes que Maria Sampaio fique "roxinha de ciúmes". E para que, conseqüentemente, ela não desista de autografar e dedicar pra mim o "Rosália Roseiral". Eis outro livro que merece resenha já!

Imagem: contracapa do livro em questão. GUIMARÃES, Bernardo e RIBEIRO, Judith. Morte Abjeta. Salvador: M.J. Ribeiro, 2002.
* Fotografia de Bernardo e Judith: Célia Aguiar

quinta-feira, 23 de outubro de 2008


Ontem, aproveitando uma brisa inconstante que passava, grudei na primeira nuvem fofa e voltei. Cheguei hoje, manhã cedinho. Dormi, depois fui direto à LDM. Também com o coração aos pulos. Desde a entrada da livraria, aos vendedores, aos livros, tudo parecia conspirar uma felicidade clandestina, uma cumplicidade de mistérios. Ali estava o livro que Bernardo deixou pra mim. Cadê Edilson? Um vendedor vermelhinho (vermelho é a cor da farda deles) foi logo dizendo que Edilson tinha ido almoçar e só voltava às três da tarde. Pensei: tudo pra mim é complicado... Teria que agüentar minha expectativa e esperar. Livraria é algo extremamente perigoso: como não sei roubar, o jeito é pagar os livros que me chamam das estantes, me endividando. Resolvi sentar lá nos fundos, com um livro no colo, para esperar o homem. O homem que conhece duas pessoas que não se conhecem: o homem que sabe dos mistérios: Edilson. Engraçado, nunca Edilson foi tão importante pra mim; tenho a cara de pau de dizer que gosto de Edilson porque ele é o facilitador de minhas compras: sempre me dá vinte por cento de desconto. Hoje ele era um rei esperado. E amado. E o pior é que demorou pra chegar. Quando eu já embalava nas páginas do livro (Clarice diz que é preciso a gente viver distraído para que as coisas aconteçam) não é que vem de lá Edilson (estava era bonito hoje!) e me chama? Professora, aqui sua encomenda. Me entregou um envelope branco, cor das nuvens leves. Entregou e saiu com pressa, mal deu tempo de eu perguntar como foi o sucedido. Abri logo o envelope e vi um livro lindo, lindo. Edição primorosa. Capa belíssima de Maria Sampaio. Fui direto à primeira página. Nela, uma letra sensível e elegante dizia assim: "Amiga secreta Aeronauta: Para ler nas nuvens, onde são guardados todos os segredos. Que nosso mistério permaneça. Um grande abraço de Bernardo. 17.10.08." Como sou viciada em analisar discursos, percebi que ele sublinhou o "Aeronauta" e o "nosso". Achei a dedicatória tão bonita! Principalmente porque mais bonita que a vida é o mistério. Que se preserve o mistério, pois. Que as nuvens abençoem todos nós. Que abençoe Edilson, o que traz a chave.
Na saída, não me contive e perguntei: E aí, Edilson, ele perguntou alguma coisa? E Edilson: Não, professora, apenas... E contou tudo igualzinho ao que Bernardo falou no seu blogue. Fiquei em frente a Edilson, admirando-o, tentando tirar dele um fiapo do mistério que o rodeava, mas logo desisti. Com meu livro nas mãos, e mais aquele que havia comprado, peguei a primeira nuvem que passava. Agora estou aqui, lendo o livro de Bernardo e Judith com uma sensação clandestina de saber e não saber do mundo. Por entre as páginas consigo ver as marcas das mãos de quem se debruçou para escrever a dedicatória.

*Sobre a capa: ainda não sei escanear direito: esse negocinho verde que vocês estão vendo em cima é o marcador de livro que veio dentro.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Para sonhar

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


(O sorriso, de Eugénio de Andrade)

terça-feira, 21 de outubro de 2008

telegrama


Onde estou não tem uma nuvem no céu. Estou me equilibrando, solta, no azul escaldante de um céu... que pega fogo. Aqui não tem vento. As árvores, perplexas, se olham, se acenam, sem poderem movimentar uma folha. E eu, pesada, tento mover-me nessa temperatura absurda que a distância aumenta. Não sei viver fora do ar. Não sei lidar com o calor. Quero frio, uma nuvem volumosa e fofa, para que eu possa deitar, dormir, sentir todas as gotas/ de chuva/ do mundo. Aqui não tem brisa, Bandeira. E eu não sei viver sem brisa. Sem notícias/ do mar.


Imagem capturada na www.flickr.com

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Covardia

Uma das cenas de covardia que insiste em habitar minha memória é terrível. Vejam: eu e minha irmã indo para a banca, à tarde. Um solzão de lascar. Numa dobradinha de rua, três cabeças despontam dentro de um buraco: Janda e suas capangas - Lourdinha e Mariquinha. Estavam lá de tocaia, esperando. Quando elas nos vêem, saem do buraco. Cercam a gente. Aliás, cercam minha irmã, pois eu tratei logo de sair de banda. Enquanto Lourdinha, a secretária, segurava os livros da coitada da minha irmã, Mariquinha começava o ataque, e Janda, a chefona, só olhava. Todas estão instaladas num meio-fio, onde lá embaixo uma lagoa verde, de sapo, fedia à espera. Mariquinha tratou logo de abrir passagem e se jogou pra cima de minha irmã - que só não caiu no buraco porque grudou nas suas canelas secas. Nessa hora, Janda, ferozmente, já com toda a raiva que necessitava, partiu para cima com olho de cachorro doido. E eu? Onde estou eu numa hora dessas?
Ah, eu estou já perto da ponte, bem longe, gritando pela coitada que apanhava: Vambora Mã, vambora Mã, Vambora Mã...
Se não fosse uma filha de Deus, adulta, que passava na hora, minha irmã tinha se acabado.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O encontro


Estarei, amigos, na LDM. Escondida na estante onde tem escrito com letras vermelhas: Poesia. Minha roupa é de um azul bem tênue, quase que não se enxerga durante o dia. Meus sapatos vêm estragados pela escapadela de uma nuvem, nessa manhã de chuva, só para conhecer vocês de longe. Me esconderei entre os livros de Hilda Hilst, e os de Clarice, e os de Cecília. Ou então estarei na guarda-volumes, no meio dos objetos que ali não têm moradia: sacolas, sombrinhas, e livros de outros livrarias.

domingo, 12 de outubro de 2008

Meu avô


"Papai", "Seu Jesuíno", "Vovô", "Meu padrinho", "O véi": era assim como lhe chamavam, respectivamente, mãe, pai, minha irmã, eu e minha avó. É este homem aí, só elegância, e que está ao lado de mãe, posando para retrato e retratista, no dia 06 de agosto de 1960, na Lapinha. Mãe e ele eram almas gêmeas. Sempre juntos, sempre confidentes, sempre sorrindo. Nas segundas-feiras ele aparecia lá em casa com algo que ela amava, dando-lhe de presente: requeijão. Que festa! Os dois eternamente apaixonados por requeijão!
O que marcavam mesmo meu avô era o riso e o amor à filha: Té. Trazer requeijão pra ela, toda segunda-feira, era a prova de amor que ele lhe dava. Depois que desembrulhava o papel de venda de roça, ela preparava a mesa para o café, que ambos tomavam com leite, conversando e rindo.
É isso o que mais lembro de meu avô: seu riso constante. Ele ria o tempo todo, sem interrupções. E nos envolvia com balas, conversas..., contando vantagens, tal qual seu irmão, tio Abel. Usava sempre paletó. Surrado, mas paletó. Chamava pai de "compadre", e conversavam sobre política. Eram bastante amigos.
Meu avô tinha uma venda na roça. E de lá é que trazia requeijão pra mãe e balas pra mim e pra minha irmã. As balas da roça eram diferentes das balas da cidade: tinham um papel ordinário e eram muito doces. Mas adorávamos. Ele as trazia dentro do bolso do paletó. E morrendo de rir nos entregava juntamente com a benção que recebia. Suas mãos eram brancas, grossas e cheias de calos. Mãos humanas demais.
Essa coisa de dar requeijão pra mãe e doces pra gente continuou até ficarmos adultas. Quando minha irmã casou, com o juiz da cidade, ele foi ao fórum conhecer o noivo. Depois de um largo abraço, tirou de dentro do paletó um lanche mirabel do fofão e ofereceu ao novo "neto" com o riso mais longo e puro do mundo.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Convite


Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?

Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?

(Hilda Hilst)

Por saber-me mulher estremeço como chocolate se derretendo. Fico líquida, espalho-me entre as xícaras e os pratos e os talheres e a mesa e o jantar e o café. Sou mulher, grito dentro de casa, para que o universo escute no teu ouvido, e para que possas usufruir de tudo que tenho, água e chaleira fervendo. E te chamo, Amigo, para desceres o rio comigo; esse rio onde tudo é beira, pedra, limo.


Imagem capturada do www.flickr.com

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Série espanto


Imperfeição, seu nome é Aeronauta. Olhem só no que deu o primeiro scanner que faço na vida: uma foto minha bebê com um pano de fundo rasteiro de uma imagem do Capão! Como não sei mexer mesmo nessas máquinas do mundo, vai assim como está. Faz de conta que é o pano de fundo que minha alma gostaria de ter, aos onze meses, sentada no chão, na porta da igreja. Dá pra ver pela minha cara que estou espantada, como em todos os outros retratos tirados na infância. Era o dia de meu batizado, estou toda azul. Minha cabeça semi-careca foi aproveitada com um laço de fita gigante. Idem azul. Meus braços gorduchos parecem saber alguma coisa do mundo, da força talvez. O sapato de filha de papai noel e o monte de babado do vestido me fazem bem olhar, pareço engraçada. As pintas não são minhas, são da revelação do retrato, isso também ajuda na possível graça. A cara redonda sempre foi explicada por mãe: nasci em madrugada de lua cheia. Signo escorpião. Ascendente libra. Veneno em doses equilibradas.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Liturgia do mundo

Imosec, aprilin, remédio dos carocinhos são as piores memórias de sabor que trago na boca. Minha irmã fazendo xixi na sala e tentando secar o chão com folhas e mais folhas de caderno, antes que a professora chegasse, é memória da visão desesperadora do inferno. A terrível memória do cheiro é a banha de galinha que mãe passava nos meus cabelos a fim de que crescessem infinitamente. "Eu morava na areia, sereia, e mudei para o sertão" é a carícia do vento que meus ouvidos recebiam, para que meu corpo sempre se lembrasse que infância é sentido grudado eternamente na pele, toque dos anjos, liturgia do mundo.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Primeiras nuvens

A professora-diretora me colocava para sentar na frente. Eu e um menino branquelo: os mais aplicados e menores da turma de cinqüenta alunos. Quinta série. Esse menino branquelo passava todas as aulas fazendo bolotas de meleca que tirava do nariz. Fazia uma, amassava, amassava, e quando estava bem amassadinha e fácil de desgrudar do dedo ele a colocava em cima da carteira. Depois nova bolota. O mesmo processo. Bolotas em série em cima da carteira. Aquilo pra mim era visto como algo normal; na verdade eu tinha até certo carinho pelo meu porco-colega-de carteira. Estávamos ilhados na frente, sozinhos do restante do mundo. Éramos alvo de inveja, maledicências e atos violentos dos outros colegas. Minha longa trança que o diga: sofria tremendos choques elétricos que os gêmeos da sala faziam questão de dar em plena aula. Os ditos cujos levavam um fio elétrico, colocavam na tomada e grudava-o na raiz da minha trança. Eu ficava tomando choque o tempo inteiro. E calada. Não sei por que tamanho heroísmo. Ou tamanho medo. Sei lá. Nessa época parece que eu não existia, vivia muita alheia ao mundo. Pra mim o mundo era uma névoa. Estava no ginásio e enfrentar essa nova realidade era estranho. Muitas matérias, muitos professores, muitos colegas, e matemática difícil. Então, o jeito era voar. E eu voava. Não tenho lembranças precisas desse tempo: tudo vem muito embaçado na minha memória, como se fosse um sonho antigo. Um sonho enevoado em que todos riam de mim. Todos. Inclusive a professora de português, diretora do colégio. Um dia, em pleno recreio, ela me chamou e me mandou ir na casa de Nita (vizinha do colégio) pegar uma pena de galinha para ela coçar o ouvido. Fui. Corri atrás da primeira galinha que vi. A galinha correu de mim. E fiquei nessa labuta, até que Deus me ajudou que a galinha, ao tentar alcançar um muro alto, soltou uma pena. A pena correu no ar, e do ar para o chão, e do chão para mim, que a levei nas mãos para a professora. Que prontamente a colocou direto no ouvido, matando aquela sua coceira horrorosa. Eu não questionava nada, se aquilo era normal ou não. Apenas obedecia. Aliás, obedecer era meu lema. Até quando os meninos, na descida do colégio, iam tocando sino na minha trança: belém-bem, belém-bem, belém-bem, cada vez mais forte. Eu deixava. Ficava tonta, mas deixava. O pescoço doía, mas deixava. Oh, como diria Clarice, eu era uma delicada, uma menina de onze anos que passeava pelo mundo como uma borboleta atônita.