sexta-feira, 28 de junho de 2013

no cinema


Não somos namorados
desses que se encontram no portão
sob o olhar do lampião de antanho,
mas como queria poder assistir
contigo
"Candelabro italiano":
nós dois
montados numa lambreta
a passear pela antiga Roma...
Ah, e "Casablanca"?
Beijaria tua boca enfim
o beijo da década de quarenta:
lábios apenas se encostando,
e o espanto dos olhos entremostrando
nosso solene e lindo drama.

Não somos namorados
mas queria assistir contigo
"Os melhores anos de nossas vidas".
Depois, só nós dois
e Doris Day cantando
"Que sera, sera"
no mais lindo filme de Hitchock;
e para assombrar um pouco nosso presente
iríamos ao futuro com Bette Davis
naquela personagem velha e cega
de "O Aniversário"; preservaríamos
como amuleto, a bela Bette de "A malvada".

Iríamos, jovens, aos futuro, para
passar a "Meia-noite em Paris";
sem deixar, após, de visitar a Fontana di Trevi:
serias Mastroianni buscando o gato
para Elza, não para Anita;
Serias Fred, um velho argentino e
não o jovem Marcello, italiano.

Hoje, nesse dia, namorado de mentira,
estás pelas ruas, solitário,
como o homem magro de Clarice
a tocar violino na esquina
que Suzana Amaral não aproveitou.
São tempos de igrejas
e não de cines;
de filmes e não de fitas...
Onde, digas, construiremos
nosso "Cinema Paradiso"?
Estamos em pleno "Inferno n. 17"
e "Antes do amanhecer",
inexoravelmente, não mais existiremos.


Imagem: Cena de "Casablanca" (1942)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

o meu Clark Gable


Ah, pai, que saudade eu tenho de seu cheiro. Lembro bem, o senhor me trazendo no colo, aos seis anos, da festa que dancei a noite inteira. Lembro do cheiro de seu pescoço, lembro da maciez de sua ternura, de seu cuidado, de seu zelo. Pai sempre foi a personificação do amor. O amor a todos, sem distinção. O homem que gostava de ajudar todo mundo, não para se mostrar melhor que os outros, mas por puro instinto. O amor nasceu dentro dele, como dentro da gente nasce orelha, boca e nariz, naturalmente: pedaço do corpo. Mãos bem morenas, queimadas de sol, quase negras, unha do dedo mindinho grande (nunca soube por que), cabelos crespos, bigode a la Clark Gable, e um olhar doce, mas tão doce...
Feito Hilda Hilst com o seu respectivo pai, lhe procurei a vida inteira. Por que eu lhe perdi ainda na infância, depois daquela festa em que o senhor me trouxe no colo. É a última lembrança de seu afago. Nunca nos separamos, mas nunca mais nos encontramos em afeto encarnado, a não ser nos livros e revistas em quadrinhos que o senhor fazia questão de trazer pra mim de Salvador, e de sempre elogiar meus poemas para mim e para os outros. Tenho lhe procurado como louca por onde ando. Já vi mãos iguais às suas, ternuras parecidas, olhares com a mesma extrema doçura. E eles, seres semelhantes, me abraçam, me trazem da festa no colo. Depois vão embora. Uma outra mulher sempre o captura, com a mesma sedução de minha irmã.

exercícios (1)

Fomos para a casa de minha avó. Lembro de mãe e de minha tia mais nova usando aqueles vestidos curtinhos da década de 60 e 70. As duas se davam bem, conversavam muito, mas eu sempre grudada na barra da saia de mãe. Eu tinha quatro anos de idade, sufocava mãe, assim como ela me sufocava, só que eu não tinha noção disso, ela era meu elo com o mundo; mundo do qual eu tinha tanto medo. Mas nesse dia a família toda foi para a casa de dona Calu, minha avó. Minha avó sempre foi braba, não tinha paciência para neto não. O carinho dela era dar a cada um uma coalhada bem feita numa caneca de alumínio. Pois bem. Mãe conversava com tia Lia já tramando o que ambas iriam fazer: iriam passear na feira de um povoado próximo, só eu não poderia ter ciência disso. Claro, não queriam me levar. Fizeram tudo calculado, mas muito calculado, já que eu não saía da barra da saia de mãe e não percebi o que estava acontecendo. De repente me vi no meio do terreiro, desamparada, procurando por mãe (a estrada de carro à frente) e eu gritando em desespero de morte: "mãe, mãe, mãe!", parecendo que iria ter um ataque. Corri para a estrada e se não fosse minha avó, com uma sandália na mão querendo me bater, eu morreria atropelada. Ela me deu um grito, me botou pra dentro de casa, valente que só ela, e ameaçou me bater. Chorei o dia inteiro, até mãe chegar, já de tardezinha, meiga, como se nada tivesse acontecido.
Duas grandes mágoas: só minha mãe poderia me bater, queria dizer isso pra minha avó, mas não tive coragem. A outra mágoa foi o cálculo de mãe, a estratégia, a traição: foi a primeira vez que fui traída na vida.


terça-feira, 25 de junho de 2013

comoção


Tenho imensa comoção por teus olhos.
Teus olhos imersos em luz, mas que se apagam
com a frequência dos vaga-lumes:
nunca ficam todo o tempo brilhando.

Tenho verdadeira comoção por ti,
cordeiro manso, indo ao encontro de um Deus
que não alcanças; mas o interpela de perguntas
que Ele nunca te responderá, apenas o escuta.

Tenho terna comoção por ti, irmão da vida,
do mesmo destino sem abrigo, sem permanência,
nós dois, transitórios, sempre sabendo da morte,
tu sem medo, eu com medo: fortes, nem nos abraçamos

para compreender tudo isso, esse mundo em que estamos
submergidos sem qualquer pedido anterior lembrado:
existências e mais existências comovidos
e destruídos, como papéis rasgados.


Imagem: Alain Delon em cena do filme "A primeira noite de tranquilidade", de Valerio Zurlini (1972).

segunda-feira, 24 de junho de 2013



Posso te amar por toda a minha vida, deixar-te entranhar em meu corpo com a garra de um bicho louco, de um bicho selvagem, ensandecido e doce. Lá irás morar para sempre, nesse ambiente úmido e quente, dissolvendo-se em mim como um poente se dissolve sobre o mar.




Imagem: Itacaré-Ba.

domingo, 23 de junho de 2013

Interdito




Teu silêncio, tua falta de eloquência, tuas mensagens curtas
Tudo isso me separa de ti como se separa um século do outro:
com muitas mortes, vidas torturadas, tumultos de uma História
que se acaba.
Teu medo diante do nada que eu sou, em forma de Vida,
anima meus sonhos, mas me interdita, me faz mulher que se esconde
(em sua própria casa) das visitas.
Me escondo com minhas palavras proibidas,
mas pretendendo ser seguida por ti: lida, pelo menos,
dentro do fosso, na parte mais baixa do porão,
onde só os ratos e os gatos transitam
em festa íntima.



Imagem: Cena do filme "O Leitor" (2008).

sábado, 22 de junho de 2013

Canção diante do abismo


A um passo do abismo
É só você me abraçar, bem forte
e cantar aquela música de João,
ou Jobim,
Uma bossa nova.
Irei, sem vacilar, contigo
cair lá no fundo, sem perigo
algum, sem perigo algum.

Deus se aproximará com suas asas
etéreas, como quem retira as feras
de dentro de si, e as manda
de volta ao mundo.
Deus, e nós dois.

A um passo do abismo
É só você me abraçar, e entoar
outra prece, mais outra, se preciso.
Falarei poesia, a fim de subtrair
tanto cálculo, indo à altura
de sua alma girando sem cura,
sem qualquer apoteose, e abrigo.

Cairemos juntos no abismo
Loucos amparados por anjos
tocando Bach, em piano e violino
em concerto universal, vivos, plenos,
sentindo que um passo a mais ou a menos
poderá nos levar ao total desaparecimento
de nós mesmos.



Imagem: Cena do filme "Um corpo que cai", de Alfred Hitchcock (1958).

sexta-feira, 21 de junho de 2013

o sonho e o cavaleiro




Nessa noite, em sonho, um homem me visitou. O corpo dele pedia amor, eu o conhecia de muitos anos atrás, era um conhecido, um amado conhecido. Ele queria de novo ser amado por mim, só que apareceu uma mulher na hora e nos acompanhou pelo nosso passeio, passeio que era nosso apenas. Cheguei para ela e disse isso, expressamente: "esse passeio é nosso". Ela entendeu, parou por onde estava,  e eu segui com o homem que necessitava ser amado e que eu queria amar. Vocês sabem, nenhum sonho, ainda bem, é literal: é sempre poético, fragmentado, cheio de cortes de câmera, cinematográfico. A cena que surge a seguir é o homem deitado à minha frente, eu lhe apalpando o peito e percebendo que ele trazia no seu corpo muitas camisas: não era apenas uma. Camadas e mais camadas de camisas o sobrepunham como cascas de cebola. E eu teria que ter o trabalho e a disposição de retirá-las, uma a uma. Perguntei se aquilo tudo era frio, por que tanta camisa. Ele nada falou. Na cena seguinte aparece eu tentando tirar pelo menos a primeira camisa, ou seja, a última. Não conseguia; e não conseguia por que sabia que as camisas eram muitas e eu não conseguiria chegar à primeira: Quando? Em que tempo? Em que século? Meu prazer aumentava diante do interdito daquele que se vestia para sempre, como um cavaleiro medieval, e eu morria em mim, muito viva, muito viva.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

a mulher e o mendigo


Desejo teu corpo. Poderia dizer isso de maneira poética.
Mas não dá. Tenho que dizer sem metáforas, de forma direta.
Tal qual com fome o mendigo pede coisas na sarjeta.
De maneira direta, sem análise complexa.
Não que eu seja esperta, mas minha carne implora
a tua, sem subterfúgios metonímicos.
E quando o desejo grita o verbo da alma
e o vago anímico lateja ardente
é premente que se peça,
que se implore,
que se verbalize em voz alta.



(Poema escrito em 02 de janeiro de 2008, do meu inédito "Livro de Preces")



CLARIDADES



Amar é para onde vou, minha vocação absoluta.
Veja a renda de meu vestido, toque-a, não há luta
nem armadilhas: apenas um vestido rendado.
E essas flores, e esse campo aberto, e esses teus dentes?
Deus, vejo Deus, nesse intervalo entre mim e o sentimento
de semelhança contigo, rindo e comendo as sementes
que nos plantam um no outro, sem qualquer retorno.

São prodigiosos nossos encontros por dentro
como quem da rosa não tira os espinhos, e fura os dedos
com o vento; e nada entende de poesia nem de semeadura,
mas faz da ternura coisa farta, enchendo a mesa de uma grande casa.
Percebes que não há diferença entre um homem e uma mulher e Deus?
Cósmicos, nos encontramos vivos sem sabermos a que veio
essa tarde; e, maior, essa claridade crescendo vívida em nossa carne.


(Poema antigo, escrito antes de mim, no século XVIII. Brincadeira: escrito por mim em dezembro de 2009)

quarta-feira, 19 de junho de 2013

como esquecer?


Como esquecer o detalhe daqueles dedos da mão direita todos olhando para cima, juntinhos, coladinhos um no outro? A quentura de uma pele doce a despeito da violência que nutria? O encantamento dos primeiros anos, aquele amor imenso finalmente saindo pelos meus poros e lhe doando? E o erro, sempre o erro, estragando tudo: para o amor, a maledicência não tem cura, não dura, o amor não dura à mal querência. Mas como esquecer detalhes mínimos: sobrancelha direita falhando no meio, olhos escuros meio tortos e um jeito peculiar de me abraçar para se desviar da morte?


terça-feira, 18 de junho de 2013

nota oficial



Como disse Tom Zé, há um "Tribunal Feicibuque". É, lá tem um tribunal, tudo é visto, olhado e julgado. Guardas kafkianos na porta, revistam sua roupa, ops, sua escrita. E fazem pontes com a sua vida. E com a de quem leu. E com outras vidas. Tudo assim: preto no branco. E tem condenação. Você vive o tempo todo cerceado. Ora, quem escreve quer ser livre. Quer abrir o verbo, a garganta, contar e inventar e dizer o que quiser. Que se dane o mundo. Sempre fui livre. Mas agora sinto olheiros por todos os lados que vou. Porque além de escrever no facebook, moro numa cidade pequena. Pim-pam, pam-pim. Não, não é isso. Sou altamente biográfica e altamente mentirosa. Por isso mãe me mandou para o catecismo aos sete anos. E me deu o livro  do menino que o nariz aumentava quando mentia. Meu nariz continuou aumentando aqui no blogue, e nunca reclamaram. Por que lá reclamam? Por que será que lá ficam olhando texto e biografia? Ficam procurando imagem especular? Isso dá uma tese de pós-doutorado. Blogue é literatura e facebook não? Tudo é literatura, basta você enviesar a palavra e encarnar todos os seres que você quiser ser. Basta você falar aquela estranha língua potencializada, metaforizada. Basta buscar a infância. Basta falar de amor de maneira potente. Aí você está no reino da literatura, não da fantasia, nem da mentira. Mas de uma verdade enigmática, ambígua.
Minha vida está e nunca está completamente naquilo que escrevo.
Isso é verdade e dou fé.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

"Antes da Meia-Noite"


 
Uma decepção o filme! O que Antes do Amanhecer e Antes do Por-do-Sol traziam de beleza filosófica, existencial, plástica, sonora, Antes da Meia-Noite desfaz. Não desfaz completamente porque, graças a Deus, os dois primeiros filmes são impecáveis e continuarão assim. Já esse, coitado, esse é um xingamento ao cinéfilo. O filme começa com Jesse (lindo, aos quarenta e um anos), levando o filho do primeiro casamento ao aeroporto e conversando com ele,  enquanto Celine (linda também, com a mesma idade) esperava-o no carro, juntamente com as duas filhas gêmeas. A conversa de Jesse com seu filho foi atrapalhada com minha gastura por conta do bilhete perdido, minha mente não lembra quase nada desse diálogo. Mas quando Jesse volta e entra no carro para viajar com a família para a Grécia, aí sim é que meu juízo apertou. O que vi foi uma Celine verborrágica, chata, reclamando de tudo. E eu que já estava com o juízo apertado, foi dando um nó e sentindo vontade de sair do cinema. Cena longa, o carro em movimento, Jesse ainda inteligente e espirituoso, num contraste terrível com aquela mulher falastrona e reclamona. Quando finalmente chegam à Grécia, continua a chatice do converseiro, agora com um monte de gente numa mesa. Dai-me paciência, Deus, quase saio da sala! Três pessoas saíram, e antes do final mais duas (a sala estava quase vazia). Nunca vi tanta pobreza de conversa! Nem eu conversando com minhas amigas falamos tanta bobagem. Cadê aquele diálogo profundo de Jesse e Celine dos dois primeiros filmes? Foram para o esgoto da relação familiar. Aqui é que o filme morre de vez. O diretor repete a fórmula do diálogo andante (o de Viena, maravilhoso, o de Paris, idem) agora pela Grécia, os dois conversando até chegarem a um quarto de motel. Só que o que ouvimos é de uma pobreza constrangedora. Se o diretor quis ser fiel à realidade, mostrando que “todo” casamento cai na rotina e se estraga, foi incoerente consigo mesmo ao propor algo diferente nos dois primeiros filmes. Ora, todo amor que dá certo tem que virar uma droga daquela? Até a palavra “cagar”  sai com raiva da boca de uma Celine ciumenta, amarga e enraivada por ter sido mãe apenas, enquanto Jesse ficou famoso como escritor em suas turnês pelo mundo. Jesse salva a cena sempre: inteligente, maduro, espirituoso. Por que o diretor fez questão de acabar com a personagem inteligente que foi Celine nos dois primeiros filmes? Por que a mulher tem que ficar, depois de anos casada, descrente e sem tesão? Por que os casamentos têm que ser transformados na mesma coisa? Com os dois primeiros filmes, o diretor tinha tudo para mostrar não a comum realidade sem imaginação e repetitiva do comum casamento, mas a credibilidade no aprendizado do amor, que se faz com o cotidiano, com a rotina. Era esse o desafio dele. Não conseguiu. Transformou dois personagens apaixonados e apaixonantes em duas pessoas corriqueiras; só não digo medíocres porque salvou Jesse. Mas pergunto: por que ele fez de Celine um estereótipo? Celine, sensível, inteligente, linda e culta que conhecemos nos dois primeiros filmes, se transformou num ser deplorável: ciumenta, dona de casa, mãe de gêmeas, frustrada, e sem qualquer sensualidade. Uma tristeza. Assista ao filme, assim mesmo. E se, por acaso, como aconteceu comigo, você “perder” o bilhete, não compre outro, vá embora. O bilhete que não se perdeu foi um aviso.

 

terça-feira, 11 de junho de 2013

sobre as águas



45. Mudanças no aspecto físico, obviamente. Orelhas: pendem com o brinco. Pescoço: quando gorda, com dobras; quando magra, com pequenas pelancas que se movimentam, como puxa-puxa, quando você fala. Braços: se você fez ginástica a vida inteira, vai ter músculos; claro, se não fez, vai ter sobras: não ligue em dar adeus com vontade! Olhos: ao redor, se desenvolvendo muitas vezes até a face, pés de galinhas de quintal bem articulados, bolsa nos olhos com uma ligeira melancolia roxa chamada olheiras: não se importe, é algo poético, charmoso. (Pior é sempre o botox, corra dele.) Bochechas: caem, caem, óbvio; mas quando você ri elas suspendem: mais um motivo para sorrir, sorrir sempre, seu rosto fica sem aquela marquinha caída debaixo das respectivas bochechas, que sempre parecem tristes. Cabelos: agora frágeis, os fios vão parar no chão do banheiro e descem no ralo, indo embora, para esgotos, talvez. E os fios brancos, aqueles mais rebeldes que despontam fazendo chifres na cabeça? Tem mulheres que arrancam esses rebeldes com ódio. E pintam os outros brancos, pintam de preto, pintam de outras cores, morte declarada aos fios brancos, malditos! (Não, aceito tudo, mas fio branco é demais!) Os seios: há, os seios ficam outonais, há quem goste de outonos... líricos... A barriga com afluentes e pedras amolecidas, dessas que rios antigos passaram muitos e muitos anos sobre elas... As pernas sustentam essa mulher, repleto de marcas. Maduro, seu corpo é um mapa, sobre as águas.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

sonho eterno




O senso comum é que as pessoas são substituíveis. Assistindo pela quarta vez, ontem, aos filmes Antes do Amanhecer (1995) e Antes do Por-do-Sol (2004) relembrei o aprendizado. A personagem Celine diz isso: que nenhum amor que passou por sua vida foi substituído por outro, que cada um teve suas peculiaridades. Nenhum ser humano pode ser substituído, pensei, é verdade, claro que é verdade. Todos temos algo que nos difere dos outros: um sinal no pescoço, no ombro, na boca, na barriga, no braço. Não meramente isso: um sinal na alma. Nesse, um traço de mazela, noutro o traço de libertação, naquele outro traços de perda e de dor; e de alegria. Todos verdadeiramente humanos, e que atravessam nossas vidas deixando suas tatuagens no nosso corpo, para sempre.
A maior birra de minha vida é continuar acreditando no Amor. Se um dia esse sonho minar, me enterrem, me enterrem viva, num caixão de vidro, em cima de um monte: serei, à revelia do mundo, Branca de Neve - que acordará com o beijo do Príncipe.


Imagens, respectivamente: Filmes Antes do Amanhecer e Antes do Por do Sol.

domingo, 9 de junho de 2013

sobre a redenção de nós, malditos


Deus Abraxas. Tenho o mal e o bem em mim, e o que faço, a todo o tempo, é tentar jogar o mal fora. Há um gozo em fazer maldades, em se vingar. Não, não me venha com cara de santo, que eu sei que você, leitor, por mais religioso que seja, já desejou que alguém morresse; que azulasse no mundo desaparecendo. Oh Deus Abraxas, Deus que habita meu sangue fervente, humano, demasiado humano, me abrace, me compreenda. Fui feita numa casa simples, de um povoado singelo, de uma relação de amor e abandono, de carinho e sofrimento, provavelmente com cheiro de cachaça circundando o ambiente. Fui feita também através do ódio e do desamparo, do sexo frouxo e convencional, das intimidades dilaceradas. Como hoje eu poderia ser algo maior do que sou? Sou frágil, também dilacerada, dada às fraquezas de pensar em matar e ferir. O pior é que não consigo matar nem ferir, então a faca se volta para mim, com a fúria de quem se envergonha da covardia de seu dono.



Imagem: Abraxas (www.google.com.br)

mudanças



Nessa noite passada sonhei com mudanças, eu havia mudado, ou melhor, voltado para o meu apartamento em Salvador. Quando saí de lá não tinha tantos móveis, afinal morava num apartamento. Aqui moro numa casa, os móveis aumentaram, comprei aqui na cidade móveis antigos; então o apartamento para o qual voltava não comportava tantos móveis. Lembro-me bem que no sonho ficava gritando, junto com os ajudantes: "Onde coloco a mesa, essa mesa redonda? E essa mesa quadrada?" De repente, num passe de mágica, o apartamento ganhou mais uma sala de jantar, foi crescendo, crescendo, e os móveis se adaptando em plena felicidade; essa felicidade só conhecida pelos que um dia já foram acolhidos.
Diferentemente do sonho, aqui é a casa, o Facebook era o apartamento. Lá eu tinha que escrever textos curtos, imediatos. Aqui tenho um salão enorme para colocar móveis, ops, palavras. A casa é tão grande aqui, gente, grande demais. Venham, ocupem essas cadeiras vazias, venham todos.

sábado, 8 de junho de 2013

chove


O que queres de mim, Senhor? Que eu sofra, que eu me liberte, o que é que queres de mim? Já bebi todo o cálice, já me autoflagelei, já perdi amores, e estou só. Sinto que te afastas de mim para a prova maior. A prova da solidão absoluta. Vou aceitar essa prova. Só não aceito a culpa. Não, não tenho culpa, não tenho. Não quero a culpa, sempre fui eu mesma, na busca de uma integridade com o outro. Sou distraída, talvez essa seja minha única maneira de magoar pessoas, sem querer, sempre sem querer. Mas nunca sequer roubei uma flor. Busco ser humana, só isso, em perpétua cruz; aquela mesma para a qual te condenaram. Estamos todos na tua cruz, sofrendo horrores, e eu não quero mais sofrer. Quero apenas escrever. Para escrever preciso descer da cruz, pois não salvarei nem minha humanidade, como Tu salvaste a de tantos e tantos. E eu só consigo salvar minha pobre humanidade escrevendo. Também não quero mais a doença: quero o rosto corado, a esperança nos olhos, o amor no corpo. Quero a vida.
Com essa prece, saio de uma cidade chamada Facebook, e volto para casa, para minha nuvem, pois aqui escondidinha sofrerei menos. E como está chovendo muito, poderei misturar minhas lágrimas com a chuva, ninguém precisará notar que choro. Chove.

sábado, 1 de junho de 2013

fruta boa





Toquei trêmula teu rosto e não acreditava no que via: dentes perfeitos, sorriso esculpido em
  nuvem sem ser desfeita. Tocar. Apenas o que eu queria, ambição pura de menina curiosa. 
Saber a temperatura de teus braços, de teu queixo, de teus olhos. Toquei sim, e muito, e ria, 
ria, ria, feito criança em dia de natal. Em tempos sem festa, aquela tua presença viva era o 

meu enorme quintal, cheio de frutas saborosas para meu paladar infantil.