quarta-feira, 29 de junho de 2011

de tudo que foi perdido


Vivo fora de casa faz algum tempo. Na verdade não tenho mais casa. Em exílio de interiores persisto firme. Em amplos exteriores vou vagando, vazio. São salões brancos e imensos, e neles pessoas em festa festejam, e bailam sob uma música estridente. A criança que fui deu-me adeus, e eu, velho e entediado, limpo minha maquiagem de circo, suja. Nunca tive aptidão para viver, sempre soube disso, por que continuei? Não foi ideal cristão, nem medo da morte, nem ilusão de uma felicidade fina como rendas no vestido. Meu Deus, sequer fui ateu, acreditei em Ti como absoluta permanência de um sol insistente e iluminado. Meu Deus, e os santos todos empilhados num altar laico e místico. Nunca soube o que fui, o que seria, o que serei. Viajo por exteriores oblíquos, e o mar que tenho seca como vidros cortados. A criança que fui me acena de algum lugar antigo, e balas em baleiro colorido me chamam, com fervor. Não há como ir, não há, e não vou. Onde estou, marchar é uma ordem, e acato.

domingo, 12 de junho de 2011

amar


A ambição de amar é sempre triste. Nela, só a grande ausência se instala, mesmo quando felizes nos amamos. É sempre triste, meu Deus, como esse domingo ameno em que tenho consciência da felicidade. Amar é o pleno vazio mais repleto de coisas, sorrateiras coisas, todas emprestadas pelo deus proprietário de tudo. Goethe mandou parar o tempo, pois que é tão belo; eu não ambiciono isso, apenas que eu sofra menos quando eu tiver que sofrer muito. E agradecer a alguma divindade o poder que me foi concedido de saber que irei morrer, e você também; e que essa cama, essa casa, esses cânticos, esse domingo se perderão um dia, completamente, na memória do tempo.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

"Agora que sinto amor"


A imagem maior que tenho dele são aqueles livros empilhados sobre o velho guarda-roupa, e ele retirando-os um a um e me mostrando, dizendo a seguir que foram todos roubados, uns por ele, outros por amigos; que nunca teve dinheiro para comprar livros. Imediatamente me uni a ele, minha alma abarcou sua alma toda, aqueles livros ensebados, frutos de contrabando, traziam a maior humanidade de que já tive notícia. Imediatamente me uni a ele, e lhe comprei uma estante, e comecei a lhe comprar livros, queria nutrir aquela alma. Depois eu fiquei pensando, ele era meu duplo; essa obsessão pela literatura era eu, sempre fui eu; essa preguiça de viver dele era minha; essa vontade de passar a noite em claro, a dormitar pelas ruas era minha. Essa raiva indistinta do mundo era minha. Eu comecei a lhe amar profundamente, como só amaria a mim, em total desespero da própria causa. E ele trazia umas fitinhas esfiapadas no calcanhar, um jeito de menino de rua. E era mansa demais sua pele violenta; sua alma crespa era dissimuladamente indócil. E eu fui me afeiçoando a ele como a uma doença literária, um bovarismo alucinado. Ele pensava literariamente em se matar, e um dia quando entramos numa loja para comprarmos um colchão ele me mostrou um belíssimo amontoado de corda, à venda. E queria ser Bukovski, e era Dom Quixote, e era Sancho, numa ambição prosaica de ser ilustre. Deu a ler Fernando Pessoa e vestiu-se, certo dia, de Álvaro de Campos, a gritar impropérios pelas ruas. Já preocupada, trouxe-lhe, numa de minhas viagens, Alberto Caeiro. Mas ele começou a pensar que o melhor era não pensar, e comprar uma casa no campo, essas ideias que bem remontam também à década de sessenta, com junção absoluta ao não pensar de Caeiro, completamente dominado. Como seria esse menino encarnando Ricardo Reis? É o que me pergunto, é o que me perguntarei sempre, olhando seu retrato.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

a bela poesia amorosa de Idea Vilariño


O QUE SINTO POR TI É TÃO DIFÍCIL

O que sinto por ti é tão difícil.
Não é de rosas abrindo-se no ar,
é de rosas abrindo-se na água
o que sinto por ti. Isto que roda
ou se quebra com tantos gestos teus
ou que com tuas palavras despedaças
e que logo incorporas em um gesto
e me invade nas horas amarelas
e me deixa uma doce sede dobrada.
O que sinto por ti, tão doloroso
como pobre luz das estrelas
que chega dolorida e fatigada.
O que sinto por ti, e que no entanto
anda tanto que às vezes não chega.


A NOITE

A noite não era o sonho
era sua boca
era seu bonito corpo despojado
de seus gestos inúteis
era sua pálida cara olhando-me na sombra.
A noite era sua boca
sua força e sua paixão
era seus olhos sérios
essas pedras de sombra
caindo-se em meus olhos
e era seu amor em mim
invadindo tão lenta
tão misteriosamente.



Imagem: foto da poetisa uruguaia (1920-2009).