quinta-feira, 31 de março de 2011

vagabundo iluminado


Tudo nele é natureza que corta, espinho nos pés, pés no chão, roupa rota. Dentes que não vêem escova, cabelos desgrenhados, corpo à mostra.
Tudo nesse homem é vida que não estanca, alucinação por estar vivo, silêncio que se furta. Dentes rangendo na noite, com a força dos loucos.
Como Riachão, enche os dedos de anéis. Pendura brincos nas orelhas como um pirata. Já teve dias de ficar nu/ como só um índio ficaria. Xamã maldito, salva meus dias.
E como é preguiçoso! Deita-se e não dorme. Muito menos sonha, apenas encarna Quixote, lívido e magro, sozinho, rindo a sabedoria torta, a sabedoria dos anjos que não se importam/ com nada.
Descalço, sempre sujo, atira-se em meu lençol de linho.
Devasso e vil, invade a minha raiva esquecida.
Por isso lhe mordo o braço, lhe faço feridas
que jamais alcançarão sua pele mais funda.
Sua pele negra, iluminada,
que nunca sangra às minhas mordidas.

domingo, 27 de março de 2011

confissão


Ai de nós que vivemos. Ai de nós. Hoje acordei com hinos litúrgicos e odiei ter acordado. Sempre odeio acordar. Por isso presssupõe-se que deve ser bom morrer. Tenho certeza que para onde iremos, ao morrermos, tem livros e filmes. Isso basta. Não, não me mandem fazer caridade no outro mundo, fazer campanha do quilo, sopa para os carentes, etc. Não gosto de mendigo, não gosto de pedintes. Eu sou pedinte, mendiga. Basta uma, portanto, eu. Muitos mendigos juntos são uma chatice, basta uma, eu, portanto. Não consigo concordar com os trâmites desse mundo: ter fé, esperança e caridade. Oh Senhor, sou de fato uma herege. Não sei ter fé. Esperança é palavra clichê pra mim, e a caridade é algo branco e pálido. De tudo que ensinam em Teu nome só queria mesmo aprender uma coisa: a lassidão da paz, a prostração da paz.

quinta-feira, 24 de março de 2011

sem mágoa ou medo


Todo desespero do homem é para voltar à infância. Ele bebe para isso, para romper com as rédeas, as repressões psíquicas e dizer o que tem vontade, como só a criança que ele foi um dia disse. O desespero é que não há volta, nunca haverá. A gênese de nossa infância - a poesia - se perdeu e só em raros momentos a reencontramos, para depois perdê-la de novo e para sempre. Sou uma criança velha, com rugas na cara e bolsas sob os olhos; patética, sou uma criança patética, quero dizer ao mundo que nada presta, mas meus olhos se encantam com o beija-flor no parapeito da janela. Será bom augúrio?, pergunta meu coração completamente desamparado. Tenho terrível pena de meu coração, que terá um dia de enfrentar sozinho a morte. Tenho terrível pena de meu coração. Sou tão medrosa, sei que enfrentarei a morte com muita tremedeira nas pernas. Como passarei pelo túnel escuro? Com as pernas oscilando, certamente, mendigando a Deus a Sua presença. Ah quando chegar a hora... Quando chegar a hora, que meus parentes mortos, que meus poetas mortos venham me ajudar a atravessar o túnel. Que os cantos gregorianos encham meus ouvidos de beatitude. Que eu possa nesse momento, nem que seja por instantes, voltar à infância: e simples, sem qualquer mágoa ou medo, como só uma criança pode ser, que eu consiga finalmente dizer o que penso, o que verdadeiramente penso.

sábado, 19 de março de 2011

imagem e desamparo


Não tem nada a ver o meu rosto com a minha alma. Meu jeito de falar não coincide com minhas emoções mais íntimas. Por isso me assombro quando me vejo. Essa que se apresenta nunca será eu. Qual o meu rosto verdadeiro? Minhas mãos originais? Onde estou? Quando aparecerei para tomar meu posto? O que fazer com esse corpo emprestado que me deram? E essas mãos pequenas? E esse rosto torto? Alma minha, exibe-me tua aparição mais generosa, tuas curvas sutis, mansas, tua franca desilusão de existir.

para dormir


Tudo era para ser, não foi. O que vou fazer? Ranger os dentes? Gritar impropérios para Deus? Dilacerar-me a alma num golpe certeiro? Atear fogo às vestes, como os suicidas de antanho? Repetir os clichês do desespero?
Não,
Dê-me uma relva mansa, umas flores no jarro, um entardecer verdadeiro.
Dê-me três goles d'água, um afago nas têmporas, uns versos de Cesário.
E a música de Bach, inteira, inteira.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Concorda?


Virgulino faz falta, minha irmã está certa. Mandar bala não é pra qualquer um, embora todos tenham vontade. Você não tem vontade? Então fique doente e vá procurar o médico. Logo logo você vai querer fazer uma carnificina: de um tiro só, apagar médico, enfermeira, secretária, o hospital inteiro. Não sei por que, mas acho que se eu tivesse coragem pra matar eu consideraria mais cômodo, mais estético, mais interessante matar com faca. Faca de cozinha bem amolada. Pode até ser faca de pão, qualquer uma fará o benefício maior: tirar da face da terra, com beleza, os excrementos, a podridão humana. A coisa de enfiar a faca entra macio, delicado, mais de que um tiro. Se bem que Virgulino com uma espingarda era algo bonito demais. Com a coragem dele eu estava feita: nada de sofrer na mão de gente estúpida, arrogante, com o nariz pra cima. Com a coragem de Lampião a primeira coisa que eu faria era ir direto pra um hospital. Chegando, com cara de doente, esperaria o maltrato. Teria a alegria infantil de decepar inicialmente o nariz da primeira pessoa que me atendesse mal. Claro, esse nariz seria o da secretária. Depois iria matando um por um que surgisse. Deixaria o médico para matar com requintes cruéis e estéticos. Era só esperar sua primeira insolência e o eliminaria com a minha bela faca de cozinha. Após tudo realizado eu, obviamente, iria dormir com o maior alívio que um ser humano pode ter, pois que essa coisa de dormir com alívio e tranquilidade só Virgulino e Corisco conheceram em sua plenitude.

quinta-feira, 3 de março de 2011

um poema livre


Sempre quis escrever um poema para ele; para dizer da graça de sua dança, da grandeza de seu sorriso, do tamanho enorme de sua boca. Nunca consegui escrever poema algum, nunca consegui deter o verso que passa/ feito aura no seu corpo/ enquanto ele dança no quarto. O poema gruda nos seus dedos, nos cabelos pretos de grama e orvalho, no seu corpo magro de escravo liberto e sai pulando pelos muros, fazendo galhofa das coisas paradas. O poema encarnado nele não pára, não se torna refém de minha palavra, não se deita nunca na página.

terça-feira, 1 de março de 2011

canção para todas as mães


"Maria Santíssima!" é a expressão de horror, dela. "Maria valei-me" é coisa corriqueira, sem sustos. Ela não aceitou, até hoje, a minha idade avançando. Ela ainda pensa que tenho seis anos e estou com hepatite, debilitada, no berço antigo de madeira. Ela me deixa triste, quero sua aprovação, mesmo sabendo que irá demorar, talvez por muito tempo ainda. Ela é o meu medo, meu grande medo de ficar viva. Quantas vezes irei segurar na barra de sua saia, na feira, para não me perder? Quantas vezes terei que deixar que ela puxe meus já perdidos dentes de leite? Ainda tenho o mesmo tamanho, mas meus cabelos embranquecem. A natureza perversa me faz tão velha quanto ela, ancestralmente velha, e ela não acredita, não acredita, e é nítida sua descrença.
Enquanto isso, minha infância se prolonga no tempo mítico de seu ventre.