sábado, 28 de março de 2009

Para Ulisses


Tenho um amigo chamado Ulisses. É, o Ulisses de Homero, o herói grego que ouviu o canto das sereias sem precisar perder a vida. Por isso, por ter 'ouvidos para ouvir', e ter escutado o que há de mais belo e inimaginável, ele conhece bem os mistérios desse canto. A generosidade e o lirismo de sua alma provêm de tal conhecimento - algo que foi concedido somente a ele, a mais ninguém.
Vim de sua casa agora (http://naugrafias.blogspot.com): lá ele conta sua odisséia, valente e tenaz guerreiro, menino com "punhos de aço"! Fiquei tão enternecida com sua 'valentia' infantil, seu texto terno, lírico, docemente humano...
Oh, Ulisses, sua história me fez lembrar da minha. A coisa que eu mais tinha medo na vida era de apanhar! Aí me recordo de um conselho que pai dava a mim e a minha irmã. Ele dizia: "Meninas, se alguém na escola quiser brigar com vocês, CORRAMMMM!" Esse "corram", tão imperativo, pra mim não significava covardia: era, na verdade, a senha pra que eu pudesse, sempre, me livrar de todo perigo que há na vida. Correr! Pernas pra que te quero!
Mas pra mãe e pra minha irmã essa senha era vergonhosa. Mãe replicava: "Nada disso. Se quiserem brigar com vocês, enfrentem. Se chegarem apanhadas da rua apanham em casa!" Pra minha irmã essas palavras significavam a redenção, propensa como sempre foi a uma boa e grande briga, forte que era. Ela dizia para pai: "Eu correr? Pra me chamarem de galinha choca?"
Oh, Ulisses, eu era uma galinha choca, pois assumia corajosamente minha "saída pela porta dos fundos": "Eu apanhar? Vou é correr", pensava assim quando via um colega com cara de bicho querendo me pegar na saída. E corria, corria; com pernas trôpegas e desajeitadas corria. Corria para, ainda, não morrer na panela, tal qual a famosa galinha clariceana. Corro até hoje.


Imagem: O barco de Ulisses. In: www.google.com.br

quarta-feira, 25 de março de 2009

perguntas ao Tempo


O primeiro poema que conheci na vida, e que declamei na escola no dia das mães, foi o batatinha quando nasce, esparrama pelo chão..., etc, etc. Aquele negócio de levar o pai no bolso e a mão no coração é maldade das muitas. E que fez todo mundo rir: uma menininha de seis anos, gordinha, pequetitita, falando lá na frente os versos todos certinho, sem errar uma vírgula, foi um espetáculo.(A maldade do poema está mesmo é no final, pois além de levar o pai no bolso, o bolso fura, e papai caiu no chão, e mamãe que era mais bonita ficou no coração.)
Não sei se pai estava presente nesse dia e se ele riu, se achou graça nessa cena e nesse descaso poético e filial. Não me lembro. Só me lembro do salão cheio, pessoas altíssimas (claro, eu estava lá embaixo) se acabando de rir; era um riso de ternura, não de sarcasmo. A maldade humana pode ser terna... Que coisa!
Oh, como gostaria de lembrar minha voz naquele dia! As entonações rítmicas, a dicção, minha boca se mexendo a cada palavra: como foi mesmo? Só me lembro do que mencionei acima, e de um vestido branco que eu usava, bem curto. Não sei se minhas pernas estavam raladas, ou cinzentas. Se o sapato que calçava era branco também, ou se meu cabelo estava lustrando banha de galinha que mãe insistia em passar. Esses detalhes dificilmente a memória guarda. Se o principal - a presença de pai - a memória não guardou...
Era isso o que mais gostaria de saber: se pai estava lá naquela tarde no Grupo Escolar Luis Viana Filho. Se ele riu, se achou graça como todo mundo; se sentiu uma tristeza terna, um ressentimento disfarçado em ternura.


Imagem: "Quando eu for grande", por nuno alegria.
(www.flick.com)

sonhos, parte 2


Poema do silêncio


Meus dedos buscam no teclado
o som do fado mais triste,
mais desesperado.

De onde estás nem me escutas,
ó Vida, cálida e surda.
Decerto travaste meus dedos.




Imagem: "tudo isso é fado", por mineke reinders.
(www.flickr.com)

domingo, 22 de março de 2009

Uma carta, nesse domingo


Oi, Renata, terminei de ler seu livro. Ele me levou para dentro de mim mesma, na minha cama que foi abandonada; no vestido que o tempo não destruiu e que continua num cabide imaginário; na ausência de um pai presente; na dureza de nunca ter sido escolhida no baleado (era sempre minha irmã quem escolhia o time, juntamente com outra "forte"); na certeza de ter uma irmã cheia de poder e uma mãe com posionamentos ambíguos de afeto.
Creio ser uma postura corajosa, essa de o escritor optar por confissões em algo que é batizado de ficção. Ou, por ficção onde a tessitura é a confissão. Afinal as duas coisas são uma só: vida. E a vida é essa coisa nossa que não é, propriedade falsa, que deixa como vestígios as dores no nosso corpo - "objeto" tristemente perecível.
Desde pequena convivo com o sentimento de culpa. E aquela menina, banida do meio dos adultos e das crianças, existe em mim também. "Nosso primeiro passado nunca cicatriza" (p. 13): eis a sentença. Tenho uma maldade dentro de mim que foi definitivamente abortada; pena que não tive o poder de desejar que minha coleguinha malvada fosse queimada e isso acontecesse.
"Terrível e longa é a espera pela legitimação do amor" (p.16), frases assim anunciam, no seu livro, resultados de buscas. Se a senhorita R. sofreu pelos seus "cabelos lisos e bonitos" (p.19), essa leitora aqui sofreu por ter cabelos crespos e trançados. Oh, é tudo o mesmo destino: o sofrimento, o castigo. E estamos sempre em busca de justiça; talvez tenha sido esse um dos motivos do livro: a autora/narradora quer fazer justiça, buscar a outra que fugiu, desapareceu, ter um acerto de contas consigo e com os outros que construíram a personagem, as personagens.
À pergunta, inscrita na página 27: "Pode alguém que já leu Dostoievski e Machado de Assis ainda se espantar tanto com o relevo acidentado da alma humana?" A minha resposta é positiva. "Para que serve a literatura, então?"(p.27) Oh, para saber que o amor real é uma 'violência cotidiana imprescindível'(p.28). Soube disso nesse domingo, ao abrir e fechar seu livro.
Gostei demais da técnica de repetição utilizada, das imagens, da diagramação, da prosa poética; da vertiginosa forma de se confessar em forma de ficção; de fazer ficção com a confissão. E de, principalmente, mostrar ao leitor suas outras faces, perdidas num mundo pleno de vestígios.
Parabéns.
Um grande abraço,

Aeronauta.

Imagem: capa do livro de Renata. Desculpem, não sei mesmo escanear.
BELMONTE, Renata. Vestígios da Senhorita B. Salvador: P55 Edições, 2009.

A menina de Minas


Meu ódio e meu amor têm a mesma proporção: às vezes amo Guimarães Rosa às vezes o odeio. A mesma coisa se dá com Clarice Lispector. São os dois escritores que mais modificam os meus sentimentos de gosto. Tem contos de Guimarães, como "Seqüência" - aquela da vaquinha que sai correndo e faz com que o rapaz encontre seu grande amor -, que são de pura magia; em contrapartida, contos que já gostei hoje detesto. Como "A menina de lá". Atualmente não consigo ler esse conto pra não ter raiva de Rosa. "Ele xurugou?" - essa falinha ridícula de Nhinhinha me irrita. É, podem me mandar pra fogueira, porque hoje estou com a macaca. Então, me deixem falar mal de Rosa. Ou melhor, da menininha santinha coisa nenhuma. Fiz uma nova leitura desse conto e vi que ele não é nada fantástico. Nhinhinha nunca fez milagres, e o próprio narrador é quem sugere isso em muitos momentos. Vejam: "O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado". Sem contar que a mãe da dita cuja "nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas".(Grifos meus.) Essa nova leitura até o engrandece, modéstia à parte. E talvez seja este mesmo o grande segredo do conto, e que poderá salvá-lo um dia (como estou metida hoje).
Me lembrei agora da apresentação de tal narrativa por um grupo de alunos. Claro, normal, todo mundo foi buscar o fantástico. Ouvi com generosidade, e com muito enfado também. Antes da apresentação, perguntei bestialmente, de propósito, à classe: "Esse título, A menina de lá, sugere que essa menina é de onde"? Um aluno, que não havia lido o conto, respondeu prontamente: "de Minas Gerais". Todo mundo riu. Só que na errância o desgramado do aluno acabou acertando. Seria muito besta Guimarães escrever um conto e colocar um título tão óbvio ("Lá"? Do outro mundo? Oh!"). Principalmente ele, que escreveu "A terceira margem do rio", etc.
É, gente, essa menina é de Minas Gerais mesmo, não é de outro mundo não. Posso provar. Ou melhor, comprovar. Outro dia, que agora estou com preguiça.


Imagem: "A menina de lá", por DiCésar.
(www.flickr.com)

sábado, 21 de março de 2009

sonhos, parte I


CRIAÇÃO


E tu nem eras nada
mas comprei aquela calça
e aquela camisa larga
e vesti em ti.
Já eras tudo:
alma e corpo vestidos.

Queria-te humano
e duas mãos magras te dei,
para que, enfim, me tocasses
mas nunca por inteiro,
somente nas ilhargas,
nas margens, com medo.

Criei casas, criei mundos
Fiz de ti dono de tudo.
Dos domingos, dos outonos,
dos odores, dos perfumes.
Dos campos altos, das planícies,

de minha alma triste.


Imagem: epifaniasvirtuais. In: www.google.com.br

quinta-feira, 19 de março de 2009

vestígios...


Não, não pude ir ao lançamento do Vestígios da Senhorita B. Não poderia ir. Estou condenada, como a própria Senhorita B., ao desaparecimento. Vocês nunca poderão me conhecer, porque simplesmente não sou aquela que vocês lêem. Estou condenada a viver dentro das mãos de alguém que usa um teclado como se fosse piano. O como se me define. Só vivo nesse espaço, entre as teclas. Aqui tenho rosto, corpo e superfície.
Não fui, no entanto lá estive. Não, não sou onipresente, onisciente; porém, como a própria Senhorita B., deixo vestígios. No lançamento esses estavam em minha irmã e em meu sobrinho: deles exalavam a minha presença invisível. Através deles conversei muito com Maria Sampaio, apertei as mãos de Bernardo, de Nilson e de Marcus. Conheci Marta, tão bela. E Miro, tão enigmático. Abracei Renata, feliz. E comemoramos juntos.


Imagem: Desculpe, Bernardo, o roubo da foto sem pedido prévio.

domingo, 15 de março de 2009

ao Eleito


Poema da Ternura*

Cecília Meireles

Se Tu fosses humano,
as minhas mãos
viveriam tecendo
carinhos e sedas,
para te darem trajes prodigiosos
de lenda...
Se Tu fosses humano,
os meus olhos andariam acesos,
noite e dia,
e tão postos em Ti
que brilharias todo,
como quem se houvera coroado
com o sol...
Se Tu fosses humano,
a minha boca seria
fruto para a tua sede,
música de amor para o teu sono,
festa da Consolação
para a tua tristeza...
Se Tu fosses humano,
eu seria o teu brinquedo
de criança,
as tuas armas
de guerreiro,
a flauta em que a tua velhice
louvasse o próximo cerimonial
da Morte...
Se Tu fosses humano,
ó Eleito,
eu seria tudo, na tua vida...
Mas eu não sou nada...
Eu não sou nada mais
que esta ansiedade impossível de ser...
...........................................
Oh! pensar que, se Tu fosses humano,
as minhas mãos
viveriam tecendo
carinhos e sedas,
para te darem trajes de lenda,
prodigiosos...


*MEIRELES, Cecília. Poesias complestas de Cecília Meireles. Vol. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, pp. 74/75.
Imagem: tentativa minha (trôpega) de escanear sobrecapa do cd de Renato Braz.

Delicadezas


Vou a Ti
como quem vai,
antes e depois da Morte,
para onde lhe ordena o Destino...


("Poema da Fascinação", de Cecília Meireles)


Como gostaria de ser Cecília! Em um só movimento de lábios dizer tudo, dizer a alma inteira, "suavíssima", com todas as tristezas e resignações que a compõem.
Se hoje, num só segundo, eu fosse Cecília, conseguiria ser leve, como "qualquer coisa infinita..." Seria "silenciosa. Imprecisa. Etérea taça/ em que adormece luar... Delicadeza..." Eu poderia trazer a Ti, a ti - ser que nunca aparece para compor a cena - do limbo de todas as ausências.


Imagem: "ausências", por holanegra.
(www.flickr.com)

sábado, 14 de março de 2009

maravilha de remédio


Tenho uma herança clara e benfazeja de mãe: loucura por remédios. O lugar onde mãe mais gosta de ir é numa farmácia. Fica doidinha quando dá de cara com uma. Entra e carrega tudo. Ninguém passa mal lá em casa, porque ela acode.
O lugar que mais gosto de ir é numa livraria, outro tipo de farmácia. Pois herdei, de fato, a mania de tentar me curar e curar os outros. Um perigo, sei disso: o remédio que me faz bem pode não fazer bem para o outro. Mas levo, dentro de minha bolsa, um kit de emergência: lá dentro tem remédio pra tudo: enjôo, dor de barriga, dor de cabeça, insônia, dor no corpo,etc. Chego no trabalho e ofereço-os aos meus colegas e amigos. Adulo para que alguém aceite ao menos um. Fico tão feliz quando consigo! É perigoso, eu sei, mas tudo é perigoso mesmo.
Ah, ontem minha amiga, colega de trabalho, que tem na alma o belo canto da sereia, resolveu aviar minha receita. Vejam que maravilha de remédio: wwwcantodasereia.blogspot.com


Imagem: "Pequenos prazeres", por Cláudia Dias.
(www.flicker.com)

quinta-feira, 12 de março de 2009

Destruição


Em nossa casa existia uma palavra proibida: "Desgraça!" Palavrão que destruía a nossa alma, deliberadamente proibido por mãe. Quem falasse apanhava. Pai - algumas vezes - no auge do desespero, quando perdia sua agenda, a dizia. O sentimento de todas nós, ao ouvi-la, era de uma desordem no mundo, um mal-estar; e mãe logo tratava de ordenar a ele que parasse de dizer aquilo. Tal palavra - evito repeti-la aqui - tinha aos meus ouvidos um som de rasga-mortalha, rasga-roupa, rasga-gente. Até hoje não sei ouvi-la direito, mesmo quando não passa de uma simples menção miserável ao destino humano.
Portanto, posso dizer, com felicidade, que não fui criada com palavras que destroem. Que ofendem. Que dilaceram. Que nos fazem chorar desesperadamente. Se chorei na minha infância foi por coisas de outra categoria: uma perseguiçãozinha de mãe, uma pirracinha e surrinha de minha irmã, uma indiferençazinha de minha melhor amiga Sílvia... Nada que trovejasse brabo na minha alma, que me fizesse ter soluços num choro cortado, que me deixasse prostrada diante da d..... humana. (Não, não pronunciarei novamente essa palavra aqui.)
Na terça-feira à noite essa palavra foi ouvida por mim com suas sinuosidades de desvios e gritos. A palavra não foi proferida literalmente, mas através de seus substitutos, igualmente miseráveis. E veio acompanhada de onomatopéias, de movimentos de cabelo e de corpo, de toda uma cenografia da destruição e da desordem afetiva. (Oh, mãe estava tão longe, não poderia tapar os meus ouvidos.)
Quem a disse pra mim foi uma disfarçada amiga.


Imagem: "Medusa".
(www.flickr.com)

domingo, 8 de março de 2009

mulher,


Sou do signo de escorpião, com ascendente em libra e lua em peixes: mulher, infinitamente. Meus gestos, meu choro e meus vestidos; minha alma, meus gemidos, meu destino: tudo converge para o feminino. Não sei fritar um ovo, meu arroz e meu macarrão são defeituosos; mas sei ver-te ainda moço, tocar as linhas de tua mão e as raízes de teu corpo, plantadas num tempo anterior.
Se eu te dissesse que não lavo roupa direito, que comprei uma máquina de lavar mas não sei manuseá-la; que não consigo abrir um pacote de bolacha sem que todas caiam; que minha casa se equilibra entre uma nuvem e um rio; que em tempo de estio vivo a dormir na varanda invisível, de um tempo que para sempre se acaba...?
Se eu te dissesse que tudo em minha casa parece em ordem, mas dentro dos armários roupas tropeçam umas nas outras; dentro da geladeira comidas antigas se mortificam; dentro dos livros rosas esquecidas despontam soltas...?
Sou, no horóscopo chinês, "cabra" : não sei declarar imposto de renda. Não sei dirigir carro, nem bicicleta. Não sei assoviar, muito menos nadar. Não sei andar de salto alto, nem passar sombras nas pálpebras: meus olhos são nus, exageradamente, sem nenhum rímel; meus cabelos crespos enfrentam, ao vivo, o vento mais inóspito, sem nenhum charme, sem nenhuma esperança; mas meu corpo - mesmo sem filhos - perpetua minha espécie, feita de leite, germe, heranças.


Imagem: "Mulher de vermelho", Rosi Osir.
(www.flickr.com)

sábado, 7 de março de 2009

Mundo, Mundo


A casa de minha avó era grande, tinha quartos enormes e um quarto especial, dela, com colchão de mola e uma penteadeira. Apesar dos móveis estarem deteriorados pelo vento da roça, pelo tempo, era uma casa que gostávamos de ir. Nesse quarto sabíamos, com certeza, que não haveria fantasmas: dormíamos tranqüilas à luz do candeeiro de querosene. Nunca me esqueço que na penteadeira, próxima à janela que, às beiradinhas, o dia espreitava rindo, nessa penteadeira tinha, além de um vaso de perfume, o retrato de Raimundinho. Raimundo, vulgo Raimundinho, primo nosso, neto criado pela minha avó como filho, e chamado carinhosamente por ela de "Mundo". O retrato parecia feito a bico de pena, com tons verde claro e escuro, ilustrando a carona gorda daquele menino mimado, vestido de paletó e gravata. Devia ter, à época, uns quatro pra cinco anos.
Raimundinho foi criado no dengo, ficou gordo de tanto comer doce, e quando cresceu deu pra ruim, o que não poderia ser diferente. Brigávamos todas as vezes em que nos víamos; parece que eu já pressentia que dali não iria sair coisa que prestasse. Ele gostava muito era de minha irmã, e fazia questão de deixar isso bem claro, escolhia a ela, e não a mim.
Minha avó dava razão a todas as suas malcriações, meu avô ria diante de suas diabruras. E foi com seus onze pra doze anos que o capetinha fez sua primeira patifaria: vendeu, de má fé pra pai, uma bicicleta quebrada. Daí em diante começou a tomar gosto, e num belo dia fugiu pra São Paulo. De lá não mandou nem duas linhas escritas para minha avó, quanto mais um sabonete. E ela sempre o defendendo, com força e pureza: Coitado, não tem nem tempo, trabalhando... Trabalhando? Oh, Raimundinho, Raimundo, Mundo, virou em São Paulo - isso sim -, uma má rima drummondiana. De seu retrato restou apenas o espanto, na casa que não mais existe.


Imagem: "Casa da avó", por Fernando Gomes Semedo.
(www.flickr.com)

domingo, 1 de março de 2009

Que o universo me escute


Que o universo me escute, tangível ou não, entre espumas de um rio distante, serpenteando, inclemente, seu destino. Que o universo me escute. Que não se ensurdeça, nem passe adiante, com ouvidos moucos. Senão eu grito. E de dentro de mim ele verá sair dentes e vísceras de mil anos, ferozes fêmeas queimando o mundo. Que o universo saiba disso. E não me interrogue. E finalmente me escute. Com seus olhos de fundo do mar, largos e curtos. Com suas faces continuamente mortas. Ora, que acorde, e assuma seu vulto! Sua forma indelével, perniciosa e muda. Eu estou viva. Minhas mãos tremulam ao toque das coisas; meu corpo ensaia movimentos no ar; meus cabelos insistem em crescer, crescer; e minhas mãos abertas são nítidas espécies de ervas, que proliferam.


Imagem: "A cigana". Carta do baralho cigano.
*Leiam o lindo poema de Marta, no qual foi inspirado esse texto: www.mariamuadie.blogspot.com