domingo, 26 de agosto de 2007

Nunca me esqueci disso

A televisão demorou a chegar à minha cidade. Eu devia ter uns oito, nove anos quando isso aconteceu. Poucas pessoas possuíam o aparelho. Assim, tínhamos platéia todas as noites. As pessoas chegavam às seis e saíam às dez. Na época passava a novela "Maria Maria", em preto e branco, uma imagem enorme pois que a televisão que pai comprou era gigante. Mãe tratou logo de fazer uma capa de feltro verde para a digníssima da casa: desenhou um galo também gigante e escreveu com letras caprichadas: "TV Aratu Canal 4". Mãe sempre foi adepta do rádio, e demorou muito para assumir o seu amor pela televisão. Todos os anos, antes da televisão chegar, ela fazia questão de comprar um rádio novo. Colocava na cozinha, ligava pela manhã e só desligava à noite. A voz de Valdir Vieira ecoa até hoje, quando vejo o velho rádio sobre o guarda-louça de sua cozinha. Pois bem, encurtando a história: nunca me esqueci de uma conversa que ouvi de mãe com sua amiga, logo que pai comprou a famosa televisão. Ela dizia para a amiga que jamais trocaria o rádio por "aquilo". A outra ficou espantadíssima e perguntou o motivo de tal despautério. Ela argumentou que a televisão exigia sua presença na sala o tempo todo, enquanto que o rádio não - era só aumentar o volume e ela podia cozinhar, lavar pratos, ir ao quintal, fazer tudo. Minha mãe, sem saber, falava talvez sobre a liberdade... Ou sobre tantas outras coisas... Nunca me esqueci disso.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Jogo perverso

Esse homem é incorpóreo, já atravessei seu corpo como se atravessasse o corpo dos ventos. Ele foi algo que inventei desde menina quando, insone, insistia em criar rosto de gente nas formas esquisitas do telhado de lá de casa. Ele insistiu em me acompanhar, em todos esses anos. Desde que saí de casa, invento seu rosto ao relento, sob as nuvens. O que é ainda lúdico, na maioria das vezes se transforma em jogo perverso, pois que as formas das nuvens não têm a estabilidade das formas do telhado...

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

... para a lua, num foguete

Num dos posts de Renata Belmonte, há um elenco de medos. Muito corajosa, Renata, gritar ao mundo os seus medos. Hoje à tarde, olhando uns retratos meus de quando era criança, me lembrei desse post de Renata. Em todas as fotos tenho um ar assustado. De que tinha medo essa pequena Macabéa?
- "Tinha medo de soldado". Como a própria Macabéa, eu talvez pensasse: "será que ele vai me matar"? Brincadeiras à parte, essa pequena tinha medo de homem fardado, até de guarda da Sucam ela tinha medo.
- "Tinha medo de desgrudar da mãe". Mesmo apanhando, eu não queria me desgrudar dela. (Lembro de uma cena clássica: acordei de manhã e ela não estava. Saí pela rua, pela chuva, chorando e gritando seu nome, até cair numa poça d'água.)
- "Tinha medo de sua irmã". A menina era do outro mundo, me batia e não queria graça comigo. Era do time das fortes da escola, da rua, da galáxia.
- "Tinha medo de retratista". Aquele clique amarelo que saía do "aparelho"(eta palavra antiga) não era nada confiável.
- "Tinha medo de 'João da Jega'". Este morava numa loca e me disse, aos seis anos, que me levaria para a lua, num foguete.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

O vento e sua "incorpórea música"

Que coisa misteriosa o vento! Os mais pragmáticos diriam: oh, que coisa óbvia o vento!
Coisa aparentemente mais óbvia e ao mesmo tempo mais misteriosa... Não vemos o vento e temos a certeza que ele existe. Há comprovação maior do mundo sensível?
O vento é, pois, uma das provas mais contundentes da existência do invisível.
Só um poeta de grande sensibilidade poderia chegar tão perto desse ser - o vento - e saber de sua mais recôndita vida. Emily Dickinson, nos seus colóquios com as coisas do mundo, nos legou essa preciosidade:

"À noite, como deve sentir-se solitário o vento
Quando todos apagam a luz
E quem possui um abrigo
Fecha a janela e vai dormir.

Ao meio-dia, como deve sentir-se imponente o vento
Ao pisar em incorpórea música,
Corrigindo erros do firmamento
E limpando a cena.

Pela manhã, como deve sentir-se poderoso o vento
Ao se deter em mil auroras,
Desposando cada uma, rejeitando todas
E voando para seu esguio templo, depois."


(In: DICKINSON, Emily. Poemas escolhidos. Trad. Ivo Bender. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 39.)

sábado, 18 de agosto de 2007

O amor e suas pérolas lingüísticas

O amor nos faz bobos. Improdutivos. Sem linguagem. Ou com linguagem verbosa. Diante da pessoa amada, há braços demais, e uma falta de assunto então... Daí nascem pérolas, como aquelas que a literatura trouxe para nós, inesquecíveis:

* Macabéa, coitada, diante de seu amado Olímpico de Jesus, não tinha lá muito o que dizer; aliás, ela não tinha, de nascença, palavras. Num certo passeio sob a chuva (ele dizia que ela só sabia chover), pararam diante de uma loja de ferragem "onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos". E Macabéa, com medo do silêncio grande que se formava entre ela e o seu amor, tratou logo de puxar assunto:

"- Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?"

* Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, nos seus dois metros de altura, enfrentador de tudo que é bicho do mato, de cobra a lobisomem, verboso que só ele, mesmo sendo famoso "mulherista" queria por queria encontrar amor, pois que descobriu que seu viver "vivia a pedir costela". E afinal encontrou: Dona Isabel. Desejoso de "amamentar" conversa com a senhorinha, professora da cidade grande, o coronel Ponciano entrou numa "inquirição desgovernada":

"- Vossa Mercê já foi mordida de cobra?"
"- Dona Isabel já viu a pessoa de um boitatá?"
E etc, etc, etc.

Ah, o amor e sua terrível subordinação à linguagem. Sabemos bem sobre tudo isso. E a literatura mais do que nós. Está tudo lá, nas suas devidas páginas, principalmente o que vem nesse texto sob os auspícios das aspas: em "A hora da estrela" de Clarice Lispector, e "O coronel e o lobisomem", do maravilhoso José Cândido de Carvalho.

Sou uma aeronauta

Nunca consegui me achar dentro deste mundo. Sou uma aeronauta. O nome pode não ser lá muito bonito, mas é o que sou. O que me deram de batismo é somente um adendo. Não precisam saber que outro nome é esse. Com o nome que me deram muitos pensam que sabem quem eu sou. Que nada, não sou essa que tem o nome que todos pensam conhecer. Sou outra. Minha mãe, meu pai, minha irmã, meus colegas na escola, a professora, sempre diziam que eu vivia no mundo da lua: era a única coisa que sabiam, verdadeiramente, de mim.
Sempre tive embrulhos terríveis no estômago; por isso o blog de Personagem Principal, Júlia, Viviane, Clarice, Mansfield, despontou em mim a vontade de fazer igual: não dizer meu nome de batismo e escrever ao léu, escrever de uma aeronave distante, longe do mundo, e com uma furtiva esperança: ser amada.

terça-feira, 14 de agosto de 2007

O verdadeiro retrato

Retrato - eis uma palavra que adoro. Outra: retratista.
Tirei muitos retratos na minha infância. Era preciso fazer pose, vestir a melhor roupa, dar o melhor sorriso. Minha memória guarda retratos ornamentais, como aquele que mãe ostentava na parede da sala: a família toda, impecavelmente sorrindo...
Minha memória guarda também retratistas inesquecíveis. "Zé Lópe", por exemplo, que falava cantando porque teve a língua cortada pelo doido da cidade. Esse tirava fotos 3X4, para a escola. Cismava que tínhamos que soltar os cabelos, e se déssemos uma risadinha qualquer o homem ficava brabo. Com a fala cantante, dizia que tínhamos cabelos que baratas roeram, que com aqueles cabelos não saíria nunca retrato que prestasse; e que retrato para documento com gente rindo ele não tirava. A fala dele nos fazia rir, rir, rir. O homem se destemperava, saía pela rua para dar queixa a pai.
Numa das revelações dessas fotos, caí de perplexidade. Simplesmente não era eu. Fui dizer para ele que houve um engano. Ele bateu pé firme, era eu sim. Não sei por que razão a boca daquela menina do retrato estava torta, o cabelo assanhado, e exibia uma cara de fuinha que nunca tive na vida... Ele dizia que era eu sim, eu dizia que não era eu não. Até hoje tenho dúvidas a respeito disso. Até que ponto um retratista conhece nosso verdadeiro retrato?

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

A leveza de uma alma

Hoje rezo esses versos de Raul de Leoni (1895-1926)... Versos tão leves que quase não existem...

"Tua alma é tão leve, tua alma é tão fina
Alma em perfume - alma em surdina
Que essência fluida, e que graça recolhida
Tua alma passa tão de leve sobre a Vida...

A leveza de uma "alma em perfume" é a mais sensível oração que já ouvi.

sábado, 11 de agosto de 2007

Saudade, flor arbitrária

... Estavam mesmo me esperando com flores e beijos. Um aéreo mundo construído para minha chegada. Os amigos todos vestidos à antiga: homens de fraque, mulheres com longos vestidos, crianças com casaquinhos bordados, amarelecidos. Balões coloridos ensaiavam com os ventos uma profunda música de silêncio; enquanto que o tempo era uma espécie de resquício de um passado denso e de um futuro sonhado... Em tudo, tudo, se manifestavam as emanações da saudade, planta rara que só ali prosperava. Só ali prosperava, saudade - flor arbitrária.

domingo, 5 de agosto de 2007

Meus amigos de vento e nuvem

Caros amigos:

Adorei dividir o meu aéreo mundo com vocês. Mas já estou indo. Em algum lugar me esperam com flores e beijos: meus outros amigos de vento e nuvem, como aqueles que Cecília Meireles teve:

MEUS AMIGOS DE VENTO E NUVEM

Meus amigos de vento e nuvem,
meus amigos sem rosto algum,
abrem caminhos, mudam casas,
estendem paredes sem fim.

Meus fluidos amigos, num mundo
que existe apenas para mim.

Que longas escadas tão belas,
que luzes sem chama, que amável
cena para uma vida eterna
em cor de amizade e jardim.

Meus amigos estão construindo
um mundo aéreo para mim.

Mãos tão frágeis levantam muros,
corpos voantes transportam ruas,
todos num silêncio conjunto
e gestos de anjo e volantim.

Ah, meus invisíveis amigos
que entre os céus trabalhais por mim!