sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

pela porta da esquerda


É sempre histórico escrever algo abaixo da data acima. Mesmo que o dia não seja extraordinário. Aliás, não há dia extraordinário. Aliás, não há nada, só expectativas bobas diante do grande mistério. Expectativas que nunca se cumprirão. Fernando Pessoa tem uma 'sentença' que bem ilustra isso que digo agora:
"Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho."
O que quero dizer é que sempre existirá a porta da esquerda. E que a dificuldade é aceitá-la como parte integrante de um outro tipo de sonho: esse que se impõe, e que batizamos com o nome infeliz de "realidade". Ora, se pudéssemos enxergar a realidade de maneira não pragmática, mas surreal, talvez atuássemos com maior nobreza nesse espetáculo desgraçadamente piegas que é a vida. Encaramos a realidade de maneira pragmática, querendo que ela seja a concretização de um sonho. Ora, sonho não se realiza, se vive da maneira que se nos apresenta. Sonho aleijado, eu diria, mas vivo, podendo ser tocado. E sonho aleijado é sonho surreal, felliniano.
Talvez eu tenha finalmente aprendido a sonhar aleijado. Em todo último dia do ano eu fazia uma lista do que queria para o ano vindouro. Bestagem. Hoje não perco tempo com isso, portanto, não desejo mais nada. Quero que as coisas me encontrem sem que as chame. Quero o inevitável, e, dentro disso tudo, talvez venha um riso completo. Se não, deitarei na cama e suspenderei o tempo, chorando. Vestir calcinha rosa na passagem do ano? Besteira. Pisar sete ondas? Para que esse trabalho todo? Prefiro assistir a um filme e ler aquele último livro de Baudelaire que comprei.
Chega um tempo em que descobrimos que tudo é inútil, menos a arte. E com ela podemos sonhar aleijado de uma maneira sossegada. Com ela aprendemos a ficar sozinhos, sem gritaria e apelo público. Entramos no mais fundo de nós e lá nos encolhemos, aguardando, quem sabe, se for possível, um vizinho.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

conversa de comadres


Minha irmã, inconformada com as malvadezas que o tempo fez na minha cara, marcou um dermatologista pra mim. Eu não queria ir, já me conformei com todas as malvadezas, e sou pacífica com relação ao tempo, apesar de achar tudo muito dramático. Ela fez questão de me levar de carro, numa manhã de segunda, sete e meia. Só muito amor a uma irmã, destinada mais dos que os outros ao envelhecimento, para fazer tamanho sacrifício, acordando cedo e enfrentando engarrafamento. Ela exibia um rosto maravilhoso: macio e sem manchas, sem espinhas e sem cravos: ali estava a propaganda do médico, O Milagroso. Você vai ver, você vai ver, e a gente não pode entregar os pontos, você precisa dar um jeito nesse rosto, dizia ela, enquanto estacionava o carro, já em frente ao consultório médico. Entramos, ela sempre à frente, me levando pelo elevador. Chegando, encaminhou-me à secretária. Olhei para cada rosto que estava sentado na sala de espera. Uns jovens, outros nem tanto, mas todos em busca da tão fácil esperança. Eu não tinha esperança alguma, e estava ali apenas para agradar à minha irmã. Ora, se não usei filtro solar aos vinte anos, eu queria mais o quê? Ora, se em todas as épocas eu enfrentei o solzão da estrada, para trabalhar, sem nenhuma proteção, eu queria mais o quê? Deus seja louvado. Ela entrou primeiro, iria ser atendida, o médico estava empolgadíssimo com o resultado das fórmulas que lhe medicou: rosto de bebê. Ela lá dentro adiantou a minha chegada para ele. Entrei. O médico, muito educado e gentil, me saudou com a mão, sentou-se e começou a rabiscar no papel. Sem olhar para mim me perguntou: e aí, dona Ângela? Eu disse logo a verdade, sem maiores pudores: envelheci, doutor. E ele: vamos ver esse rosto. Me levou para uma sala à parte, e constatou o que eu disse, acrescentando apenas que havia muitas manchas no meu rosto. Sério, profissional, gentil, disse que ainda tinha jeito. O homem vive também de esperanças, pensei. Prescreveu inúmeras fórmulas, saí e minha irmã me levou à farmácia. Desembolsei um dinheiro enorme, que daria para comprar vários livros e filmes. Senti remorso, mas sempre me inquietei com a esperança alheia: é bom dar crédito a ela. O pior é ter que usar todos aqueles cremes, com disciplina, coisa que nunca tive. Usei ontem e hoje amanheci com a cara grossa, vermelha e triste. Minha irmã me pediu o prazo de quinze dias. Com quinze dias minha pele vai virar outra. Oh, como minha irmã é doce, humana, demasiadamente humana.



Imagem: ato de envelhecer. In: www.google.com.br

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

canção para fechar a década


E vou terminando esse ano de maneira lírica. Enfrentei antes do Natal a doença que me escolheu: ela veio, e, por não conseguir mais confrontá-la, a abracei. Ficamos juntas, ela me beliscando por dentro, ela pinçando alfinetes na minha cabeça, ela brincando de madrasta de branca de neve, de amiga de infância, maldita e sardenta. Às vezes, num sadismo infantil, suspendia a brincadeira, eu tinha um alívio, depois ela voltava, sarcástica, com um ferro quente na mão. Ela queria porque queria me marcar a ferro com seu nome, batismo fatal. Fugi, me escondi debaixo da cama, e me sujei de poeira, nunca se limpa direito essa parte da casa, e a poeira tomou-me e ela me puxou pelo braço e vi que o ferro em brasa tinha se apagado. Depois ela me envolveu com aquela coberta de retalhos tão pequena de quando eu tinha seis anos, a coberta apenas cobriu minhas pernas, e eu me senti mergulhar na praça mais deserta do mundo.
O que muda, sussurra calado meu coração, é a folhinha, o calendário que jogo fora. Enterro 2010 com a ponta dos dedos, na areia mais densa do rio Paraguaçu. Enterro-o e depois me ajoelho, fazendo uma oração. Merecia tanto? Cada pedaço de ouro colhido jogo na água escura, gelada, água de minha infância, belamente escura como são as noites sem luz, sem poste de iluminação, sem lamparina. Mergulho nessa água deserta, fria, molho a cabeça e os alfinetes vão caindo, um por um, na correnteza silenciosa.
O que vale, de fato? Não sei. Sei que gosto demais de um abraço, um abraço inteiro, sem recalques. Gosto de encostar minha cabeça no seu peito, assim como fazia com meu travesseiro, quando criança. E de um beijo estalado no rosto, molhado, nunca nunca aquele beijo simulado que nem os lábios encostam na face. E deste silêncio gosto mais ainda, silêncio de quem convalesce, e nada sabe das festas, nada, nada; apenas adormece, calma e desaparecida.


Imagem:"Janela bailando". In: www.google.com.br

sábado, 25 de dezembro de 2010

Bilhete no criado-mudo


"... seus olhos puros, melancólicos, presos em uma tela de certo artista, instigado a produzir a obra-prima."


Imagem: "Portrait of Mrs Paley", 1936, de Henri Matisse.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

então é natal


As vidas bem organizadas. As vidas com panetone e amigo-secreto. Com ceia de Natal. Talvez a maioria das vidas seja assim: tudo no lugar, sem sobras, sem transgressão. Tudo nos conformes. Badaladas da meia-noite e abraços de confraternização. Música de Simone "então é natal, o ano termina" tocando na sala e a família com cara de beatitude, riso traduzindo uma felicidade singular, dessas condicionadas o máximo possível. Há, sim, vidas assim. E muitas. Será que os padres sabem? Sim, os que ministram a Missa do Galo? Será que os padres sabem? O que eles verdadeiramente acreditam depois de tantos e tantos anos de repetição? O que se pode trazer de genuíno diante do desgaste, do terrível desgaste da repetição?
Não sei e não quero saber. O que me intriga mesmo é que todas as vidas pretensamente organizadas se organizam mais ainda nessa época. É um tal de corre corre para pegar o shopping ainda aberto e comprar o presente de fulano, oh fulano como pude me esquecer?, ou então o enfeite da árvore, aquela bolinha vermelha que achou de quebrar antes da festa. Lojas há milênios se enchem de gente comprando sapatos, num azáfama de primeira vez. Lojas há milênios se enchem de gente comprando roupa, num azáfama de primeira vez. Repete-se, repete-se, repete-se. São as vidas bem organizadas; tudo nos conformes, pai e mãe abraçando filhos sadios e limpos e bem-arrumados. Cabelos cortados no cabeleireiro, vestidos comprados naquelas alamedas cheirando a um perfume do outro mundo do shopping salvador. Tudo tão certo, tudo tão certo. Casais nascidos um para o outro, rindo felizes entre um pitoque e outro no meio do jingle bell. Suor? Quem foi doido de não tomar um banho antes do abraço? Ainda mais na noite de Natal? Não, não, está todo mundo cheirosinho, não se admite fedor em reinos perfeitos.
E assim prospera a humanidade em mais um ano que se prenuncia.

sábado, 18 de dezembro de 2010

À FLOR DA PELE


**Paulo R. B. Silva


Chegou em casa, retirou a chave do bolso, encaixou girando a maçaneta. Entrou, retirou, e com o pé empurrou, fechando a porta. Colocou as sacolas na mesa. Tirou o sapato e a meia, deixando os pés nus em contato com o azulejo branco e frio. Dirige-se para a cozinha, abre a geladeira. Morde uma banana, pega no cabelo, deixa-o solto, tocando nas costas. Coloca leite no copo, brinca com o gato. Alisa-o com o dedão do pé, agacha e toca suas costas peludas. Arrepia-se, fica ouriçado, seu instinto animal foi acordado. Observa parado. Tira a calça apertada. Passeia de calcinha cor de rosa pela casa. Segue-a. Para na sala, liga, uma música é ouvida. Dança, acende, relaxa, respira, traga. Solta fumaça. Retira a blusa deixa cair a calcinha. Segue nua para o quarto. Ouve um miado, olha-se, chega mais perto, um reflexo nu em frente a ela. Toca o lábio, percebe o sinal perto do queixo, alisa o seio, aperta o mamilo, ri das suas formas, acha engraçada a sua chana. Uma abertura em meio às suas pernas, enfia o dedo. Sente o seu gosto, acaricia-a fazendo-a lubrificar-se. Molhada vira, suas costas, sua bunda. Imita o gato ficando de quatro. Dá mais um trago, levanta apaga, senta na beirada da cama de pernas abertas, ele caminha erguendo-se em duas patas, apóia-se na cama. E como se tivesse lambendo o próprio corpo, passa a língua na sua rata. Ela estremece, levanta as pernas no ar, de forma que só a flor se veja, delicada e deliciada. Gemia cada vez mais alto, ele permanecia como se estivesse banhando um filho. A língua ia a lingua vinha, ela se contorcia. Ele para, olha-a admirado. Passa ainda a língua mais uma vez, vendo-a delirar e gozar. Ele nessa hora parecia se alimentar. Ele sobe pra cima dela e a penetra, revelando seu corpo de pantera.
Ela acorda do seu sonho louco
Ele está ao seu lado
Observa-o
Ele vira-se
Ela sobe em cima dele
Ele encaixa
Começa a dança
Cavalga-a
Noite e estrelas
Abraça-o, levanta-o, recebe-o com mais força, arranha-lhe as costas, começam os gritos e os gemidos, a troca de fluidos, trovões, raios cortando o céu, flutuavam em cima do nada, na imensidão das galáxias. Unidos, um só corpo, um só espírito em igual proporção.


**Paulo R. B. Silva é poeta e contista. Aluno do primeiro semestre de Letras da UFRB.
Imagem: www.google.com.br

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

o baile de fim de ano


Com a idade chegando, se você prestar atenção, além de um insistente fio de cabelo branco que surge a segundo segundo, ao acordar verá que a madrugada fez um novo serviço no seu rosto, além das bolsas de carne embaixo de seus olhos. Tenha coragem, e olhe-se no espelho sempre ao acordar. Verá um Tempo bordador que faz coisas criativas na sua face, lhe transformando numa caricatura. Esse Tempo é bastante bem-humorado, e lhe estraga, com desvelo, a rosto e o corpo a cada dia. Prepare-se para o grande encontro de fim de ano com os amigos que não vê há vinte, e depois tente descrever esse encontro talvez como Proust o fez num de seus volumes de Em busca do tempo perdido. Um detalhe: não se atente apenas para os outros, seja cruel consigo: desenha sua nova figura. E também não vale o botox; encontre os outros, de preferência, com a cara limpa, um mero batom nos lábios, que caíram um pouco, já notou isso? Não tem problemas, seu sorriso talvez ainda se sustente, belo e maduro e triste e sábio. O cabelo, sempre longo, a despeito dos amigos dos vinte anos continuarem achando que cabelo grande não é para mulher de quarenta, pois a envelhece mais ainda. Se você quiser chocá-los, não o hidrate, deixe-o como o cabelo da medusa. Meu conselho: assombre esse povo besta. Você sabe, né, que eles irão para esse encontro com bastante capricho. E muitos exclamarão como fulana está bem, apesar dos três filhos; outros não dirão nada e cravarão os olhos nos seus pés de galinha com imensa dó, e dirão, no mais autêntico clichê, que o tempo passa. Para compensar o constrangimento, peça aquela velha música da década de 80; e saia bailando sozinha, sozinha pelo salão que desmorona, com seus cabelos assombrosos de medusa e suas mãos de Sísifo.


Imagem: "Medusa". In: www.google.com.br

domingo, 5 de dezembro de 2010

conversa de professora


Amo a minha profissão. Isso é definitivo. O que não amo são todas as coisas que a ligam à famigerada burocracia. Tudo seria mais fácil se não houvesse reuniões, salas administrativas, cadernetas, notas, e um arsenal de guerra que faz da educação um combate condicionado a quem perde e a quem ganha. Tudo seria mais verdadeiro e prazeroso se não houvesse burocracia no ensino. O aluno chega à escola já preparado para a guerra; e tem que se munir com seus instrumentos: mão em riste para assinar a folha de frequência; decoreba no juízo para responder à prova e, consequentemente, tirar uma nota para passar; traquejo no corpo para sair da aula à francesa, por não suportar mais as grades de uma sala compacta, branca, preparada para o seu aprisionamento diário... Oh, por que não podemos dar aula embaixo de uma árvore, numa esquina da rua, na praça do bosque? Oh, e para que a miserável da prova, quando tudo seria mais espontâneo e fácil com uma conversa sem algemas, uma interlocução de ideias, uma troca? E para que a miserável da nota, que faz do aluno um soldado de guerra, pronto para tentar sobreviver? Como, pergunto a vocês, como mudar tudo isso, descondicionar o que está condicionado, permitir o relaxamento dos alunos sem que eles debandem e lhe deixem sozinho? E quanto a mim, como livrar-me das reuniões, das salas administrativas, das cadernetas? Como, meu Deus, poder amar sem registros burocráticos, e abraçar meus alunos como pessoas humanas, lindas e tristes? E bailar com eles, destruindo os corredores frios das instituições e, ainda, essa terrível humilhação de ter que obedecer o que nos é imposto?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

só isso


Não se entende o fato de Gregor Samsa acordar inteiramente transformado num inseto monstruoso. E todos nós estamos carecas de saber que isso - a transformação de homem em inseto - não se trata de nenhuma metáfora. Que também não foi sonho do personagem nem nosso. E que não ter o significado pleno disso tudo é que faz de A metamorfose uma obra clássica, imortal, incomodativa. Lembro de mim, na chamada flor da idade, lendo esse livro. Senti-me terrivelmente incomodada, mas acreditava que no final teria um alívio. Não, não tive alívio no final. E constatei, desde cedo, que para ler Kafka eu necessitaria firmar esse pacto: de jamais ter alívio em hora alguma. Com isso a gente aprende o que é a vida. Aprender o que é a vida já é um grande prêmio, para nós que sequer sabemos o óbvio. Nem me pergunte o que é o óbvio, que eu, imbecilmente, também não sei. Marchas de imbecis, andamos para cima e para baixo, vergando nosso corpo que envelhece a olhos vistos e não vistos. É, porque nem todo mundo sabe que está envelhecendo; algumas pessoas têm um espelho tão fiel, mas tão fiel que lhes esconde esse dado quase que definitivo. Um espelho hipócrita, que esconde ruga por ruga, e lhes ajuda a retocar a maquiagem: lápis ao redor dos olhos para que eles vejam, e bem, o envelhecimento alheio. E como essas lindas e jovens criaturas riem das rugas alheias! Ah, dizem muito sobre como fulano envelheceu e como sicrano está com a cara caída.
Não, não me pergunte o óbvio, que eu também não sei; assim como não sei, voltando ao início de nossa conversa, por que horrores Gregor Samsa foi acordar metamorfoseado num inseto. O que apenas sei, de tudo que há na vida, é que fui criança, dado indiscutível. Uma criança com o rosto redondo, nascida em dia de lua cheia. E que usava vestidinhos curtos, e tinha medo dos castigos do Purgatório.