sexta-feira, 29 de julho de 2011

fúria


Acordo cedo, faz frio, e pego na estante uma antologia da poesia de Ana Cristina Cesar. O que impede meu total deleite são as notas de rodapé, explicativas, de tão incomensurável poesia. Havia me deleitado com esses versos...

"........................
a gente sempre acha que é
Fernando Pessoa"

...quando vem de lá o "professor explicativo" no rodapé, e diz:
"Ana Cristina emprega o nome do poeta português Fernando Pessoa como sinônimo de "um grande poeta".
Imediatamente recuo: não, não foi assim que entendi. Entendi outra coisa. Não cabe aqui dizer o que entendi, senão matará o poema e interpretações outras. Mas o quero dizer é que senti vontades de engarguelar o "professor explicativo", que deve ser o coordenador da antologia. Senti vontades de matar essa criatura, assim como tenho vontades de matar quem faz coisas assim com todo e qualquer material artístico.
Esses seres corruptos deveriam ser banidos do espaço relacionado à arte, à literatura. Conheço vários professores que agem assim. Todos deveriam ser presos, expulsos desse mundo. Não, não há remissão para esse tipo de pecado.


Imagem: Ana C. Cesar.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

tudo pode desaparecer


Nas vezes em que tenho uma imensa saudade de mim, saio a folhear as páginas desse blogue. São muitos textos, todos suspensos, pois que nunca gravei sequer um deles em pendraive. Primeiro porque nunca usei um pendraive (não tenho vergonha de confessar isso); segundo porque não tenho paciência suficiente para ir colando os textos no word. Enfim, meu blogue existe como existe minha vida: no ar. Já tentei buscar alguém que entendesse de informática, com a mais doce paciência, a fim de fazer esse trabalho, assim como já busquei alguém que entendesse da vida, com a mais doce sabedoria, para me ajudar a viver em terra firme. Nunca encontrei. Eu e o meu blogue estamos condenados à ilusão fantasmática da existência. Tenho diversos números que registram a minha vida, assim como existem diversos textos que ratificam a existência desse blogue. Mas, de repente, com um sopro do blogspot, assim como com um sopro do cosmos, tudo pode desaparecer.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

madrugadas


Tenho a asa torta, sou guache, mas me lanço com tanta dedicação ao amor, que mais ainda sinto suas agulhas, finas. Sou uma menina da roça, nunca usei ou usarei um tailleur, mas das coisas que sei fazer é vestir esse corpo: cubro-o com um manto azul, um manto azul desperdiçado, desses que cobrem altares. Tenho o espírito materno, e fico velando o tempo todo pelo que desaparece, sem afagos. Não sei fazer outra coisa na vida, amar é minha destinação. Amo as pessoas mais do que ao mundo, e com elas me preocupo mesmo quando dizem que é comigo que eu devo me preocupar. Não consigo o tempo todo estar em mim, não consigo. Em casas alheias, passo madrugadas. Não sou nenhuma madre, ou algo que o valha. Muito pelo contrário, sou frágil, e qualquer dizer mal dito em muito me perturba, e atrapalha. Mas continuo indo, é fatalidade.

domingo, 24 de julho de 2011

"clube dos 27"


Incrível como a década de sessenta continua a influenciar os jovens de todos os tempos. Tive vinte e vinte e sete, respectivamente, entre o final da década de 80 e final da década de 90 e fui influenciada por eles. Hoje conheço muitos jovens de vinte e poucos anos fortemente influenciados. Parecem íntimos de Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison. A complexidade dessa influência não é só a admiração pela música, pelo talento de todos esses seres diferenciados, mas por suas vidas. Eles querem também morrer aos 27 anos. Eles querem o mundo das drogas químicas, eles querem a overdose. Meu Deus, a arte e os artistas são emissários de uma seita que pode salvar e matar. Isso é assustador, e tremi quando abri a internet hoje e me deparei com a morte de mais uma de 27. Já tive 27, passei pela crise hamletiana, passei pela crise pinkfloydiana, passei pela crise da pedra drummondiana, e estou aqui. Confesso que em muitos momentos me pergunto se foi bom ter sobrevivido. Mas a vida, o sol, a sensação de plenitude que a arte traz, tudo isso dá gozo, felicidade, ainda que instável, duvidosa, complexa, dúbia, coleção de adjetivos ambivalentes que, na pior das hipóteses, nos instiga a continuarmos a viver a fim de sabermos a que será que se destina tudo isso. Talvez nunca tenhamos uma resposta, e o instigante mesmo é continuarmos a procurar; pois que dessa procura é que existe a arte, e ela é uma das únicas possibilidades de vencer a vida e a morte.


Imagem: Janis Joplin no Festival de Woodstock.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

a flor amarela e mórbida


Meu querido Brás Cubas:

Sou assumidamente hipocondríaca: herdei a flor amarela e mórbida, a Incurável, a Terrível, a maior doença de todos os séculos. Não tenho sequer teu humor ácido, inteligente, e mesmo estando na quarta edição de vida, minhas erratas foram todas inúteis. Não aprendi absolutamente nada, sou rude e inepta. Assusta-me a mediocridade dos homens, na qual me instalo, grotesca e só. Meus amores sequer dariam páginas como as tuas, tão belas de poesia e escárnio. Meus amores foram todos inventados, saídos de uma imaginação parva, ingênua. E quando eu chegar aos cinquenta, sei que não terei a tua nobreza de entrar para alguma Ordem caridosa. Sou egoísta, preguiçosa, e completamente triste. Ou seja, assumidamente hipocondríaca: nem teu emplasto daria jeito a essa melancolia insistente que brota, dia a dia, no jardim seco e sem proveito que trago em mim.

domingo, 17 de julho de 2011


Consolo Na Praia

Carlos Drummond de Andrade


Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

sobre as correntes


Sou tenazmente supersticiosa, mas sempre quebrei corrente. Tenho uma profunda compaixão pelas pessoas que mandam correntes, e digo que fico tentada a fazê-las continuar, mas a preguiça é muita. Na época da máquina de datilografia recebia milhares delas, em casa, datilografadas e com o cheiro e a cor rosa do saudoso mimeógrafo. Era só abrir a janela e lá estava um papel misterioso, à espera de minha alma diligente. Ao abrir o papel, ler e constatar a ameaça no final, os danos que em minha vida ocorreriam caso quebrasse aquela corrente milagrosa, eu dizia a mim mesma que iria fazer mais nove ou vinte cópias daquelas e jogá-las de janela em janela. Mas que nada: a preguiça sempre foi maior que o medo. Agora, no tempo do computador, continuo recebendo correntes, só que por email. Fico com tanta dó de quem manda! Dó por que ali se registra a promessa de, se for reenviado aquele texto para mais quinze pessoas, em cinco minutos o pedido ser realizado. Oh, como temos pedidos, como temos dores, esperanças, anseios! Um dia eu fiquei tentada, e reenviei. Depois coloquei o relógio perto de mim e comecei a contabilizar os minutos. Após três minutos, nada aconteceu. Após três anos, também não. Talvez até após três séculos nada acontecerá. Tudo é tão triste, tão triste.
Tenha, Grandioso e Onipotente Deus de Misericórdia, piedade de todos nós que pedimos...

terça-feira, 12 de julho de 2011

horóscopo do dia


O leonino não é nem um pouco humilde, não é à toa que carrega uma juba enorme loira, espalhafatosa, querendo chamar a atenção do sol. Se você quiser viver bem com um desses seres é preciso o tempo todo deixar claro que é ele o rei, que você é só a plebe. Pois o que o digníssimo quer é brilhar, brilhar, brilhar. E para isso ele vai buscar plateia nos lugares em que o próprio possa se destacar como nunca. Não gosta de controvérsias, ele é o dono da palavra, da última, batida no martelo. Pode até gostar de algumas coisas que você diz, mas sempre vai demonstrar o contrário, e ruge grosso querendo sempre lhe atacar. Ele é o senhor da situação, é o que tem o couro mais brilhoso, o cabelo mais cor de ouro, afinal, é o rei da criação do mundo. Deixe, deixe ele acreditar em tudo isso, afinal o peste é inteligente, deixa, deixa, dê uma de a menina de lá roseana. Você muitas vezes percebe que teriam tanto a debater, aquele filme então, mas ele prefere ir debater na taberna: lá terá público grande, orador das grandes massas. Um leonino é um ser de sol, de luz, de fogo, de erupção: por onde ele passa as pessoas são atraídas, todas a admirá-lo. Já vi muita gente puxando o saco de um ser nascido sob a aura do leão, a despeito de sua arrogância nata. Quando isso acontece, ele estufa a juba, dá um arroto fenomenal, ratificando sua majestade para sempre indubitável. Se você quer conviver com um ser insuportável e adorável desse, deixe-o de preferência fora da jaula, mas sempre dentro do zoológico, sob interminável apreciação pública.

conversa de divã


Tenho esse nariz brabo que boi pisou, um nariz esparrachado, numa cara que já foi redonda, hoje está mais pra retangular. Não gosto muito de me olhar no espelho, eis a grande verdade; nunca fui desse negócio de me amar em primeiro lugar por que senão os outros não me amarão, conversa fiada isso, chega de besteira, meu Deus, acho que nunca me amei de fato, me tolero, que se danem os psicanalistas de plantão. E se os outros me amam? Acredito que alguns me amam um pouco, algum têm um pouco de simpatia por essa minha pessoa esquiva, tímida. Afinal, quem não é um pouco admirado nesse mundo idiota? Talvez quem sabe (eta esperançazinha maldita) admiram tudo isso que abomino em mim. Como por exemplo, uns quadris meio engraçados, herdados de mãe. Minha irmã também tem esses quadris, herança burlesca, cômica. A natureza é uma poeta satírica, Gregório de Matos perde para ela. A natureza é uma artista desgramada: pinta e borda com os seres - primeiro na juventude e depois na velhice, desenhando caricaturas tenebrosas onde antes foi gente até distinta. Na verdade tudo é uma porcaria só; um absurdo, fora algumas alegriazinhas tão rápidas, meu Deus, tão rápidas, parecidas com aquela fumacinha de nuvem que o avião a jato deixa no céu. Quando criança acreditava que o mundo acabaria num eclipse, que o mundo acabaria primeiro no céu. Qualquer zoadinha de avião pra mim já era prenúncio de mundo acabando; saía na porta queimando pestana, olhando para o céu e esperando o estrondo. Nunca veio o estrondo, talvez nunca virá, é essa a condenação desse mundo; desse e daqueles que a gente traz por dentro.

sábado, 9 de julho de 2011

mães queridas


Sinto falta de tuas águas, mães queridas. Cuidem do meu ori, que anda sempre quente, pegando fogo: minha cabeça precisa de tuas mãos, mães queridas. Molhem com água fria as pedras estéreis dessa rua, esse asfalto que não afaga meus pés. São outras as paragens, outra a vida que começa, sem cachoeira ou ondas revoltas. Aqui a brisa é vento frio, esmagando minha alma insone que peleja com o dia que chega. Aqui até que há beleza nas casas, mas as almas que nelas vivem são duras, com as portas e as janelas sempre fechadas. Aqui, sou de novo uma criança desamparada, quase amarga não fosse essa força de filha que não me desabita, mães queridas.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

São João no Capão


Há muita bestagem nesse mundo, e uma delas foi a minha resolução de passar o São João no Capão. Rima caricata essa, assim como se tornou tal vilazinha, invadida por seres extraterrestres. Havia exatos dezenove anos de minha última ida àquele lugar, e de lá eu trazia uma lembrança neblinada, de névoa caindo na serra numa manhã de junho. Ora, uma imagem dessa não sai com facilidade de nossa cabeça. E nem sei por que esperei tanto tempo para lá voltar. Mas voltei. E no São João. O susto foi grande demais. Primeiro porque logo na entrada da vila peguei um engarrafamento parecidíssimo com o que gente só pega no Bonocô às dezoito horas. Segundo porque ao finalmente livrar-me do engarrafamento e botar os pés no chão, o que vi não tinha a menor graça. Vi muita gente parecida, aliás, iguaizinhas; todas cabeludas, com barbas enormes e rouponas longas. Todas vendendo produtos "hippies", comidas pitorescas, chapéus de crochê, anéis, pulseiras, objetos de decoração (claro, de casa "hippie"), e comida, muita comida, inclusive vendiam fatias de pizza na calçada. Ali na verdade era um shopping center a céu aberto; e caríssimo. Outra coisa: o que antes era antiga casa de morador se tornou loja. Lojas com plaquinhas de madeira na porta pra enganarem turista tirado a cult. Sem contar os trilhões de pousadas, também tiradas a cult, espalhadas por ali. O que não consegui mais ver, incrível, foi nativo. Será que todos os nativos foram expulsos? O Capão virou o Pelourinho, gente. Casinhas pintadas por fora e bugigangas "artesanais" por dentro. Mas o mais engraçado são os extraterrestres. Todos vindo de um pseudo woodstock. Hippies sofisticados, limpos e cheirosos. Cada cabelo dando na bunda, mulheres com saionas coloridas, homens com batas espalhafatosas, além de dredes bem comportados nos cabelos. E carro, muito carro. É, de turistas chegando, querendo passar o São João no Capão. Carros de luxo, jogando poeira na cara dos desautomobilizados, como eu, que inventaram de ir tomar banho no Riachinho, a pé. Uma caminhada longa, regada a poeira na cara de um em um minuto, pois todos os turistas tiveram a mesma ideia que eu. Quando finalmente cheguei lá - no Riachinho - depois de mais de duas horas de caminhada, aqueles automóveis que passaram por mim já lá estavam estacionados. Ao descer a ponte me choquei com um monte de gente que ia também descendo a ponte. Na cachoeira milhões de viventes brancos, loiros, passando protetor solar e estirando-se ao sol. Não havia lugar para eu me sentar: todas as pedras estavam ocupadas. Nem tive raiva dessa turistada metida a besta não, mas de mim. De mim que aos quarenta e alguns anos resolveu acampar num camping no Capão, em pleno São João. Um camping abarrotado de jovenzinho burguês e falastrão. Estava tão cheio que as barracas se colavam uma nas outras. No segundo dia de horror, arrumei minhas trouxas e zarpei.