quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

no melhor do mau humor

Enquanto Ivan Ilitch arrumava sua nova casa, esquecia-se da miserável e medíocre vida. Vida medíocre e miserável que nos acorda e nos impõe viver, de qualquer maneira. O que faço todo dia é arrumar uma nova casa, comprar um dvd, um livro novo, dar uma vassourada no quarto, sei lá, para ir vivendo sem pensar em cordas, facas, giletes, ou seja, todo o arsenal de guerra contra a existência. Enquanto isso, a geladeira continua com aquele zunidozinho de continuidade ininterrupta, o ventilador idem, e a rua escurecendo e a rua clareando, e eu tomando banho, e comendo, e dormindo. Pra que peste é isso? Pergunto no melhor do meu mau humor. Pra que peste é isso? Acendem a luz, por favor! O filme que passa é como uma cápsula de remédio na veia, me acalma, e eu até acredito numa espécie de felicidade possível. Mas a burocracia está batendo na porta, tal qual o chefe de Samsa, só porque me atrasei um pouco arrastando minha asa de inseto no chão.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

elefante de circo


Sou uma pessoa nervosa, muito nervosa. Por isso saio sempre uma hora de casa antes de algum compromisso. Vai que acontece algo e eu chegue atrasada. Não gosto de chegar atrasada, nunca gosto, pois o meu nervoso aumenta. Pois bem, eis o início do que vou contar. Saí meia hora antes, e não uma hora, como de costume. Estava indo para o cinema. O filme começaria às dezoito. Fui andando, e ao olhar no relógio comecei a me agoniar: percebi que andando chegaria em cima da hora, e tenho horror a chegar em cima da hora no cinema. Fico suada, nervosa só em pensar em entrar na sala de projeção em completo escuro. Ao notar que estava atrasada, apressei o passo. Ia pelos arredores do campo grande, e o filme passaria na sala da Ufba, no vale do canela. Quando já pensava em pegar um táxi, sinto algo folgado no meu pé. Olho imediatamente. E vejo. A sandália com a tira soltando. Ando mais um pouco e acontece o inevitável: tira levantada do lugar, para sempre, sandália quebrada. Equação que resultou no seguinte: pé esquerdo com sandália e pé direito sem sandália. Não dava nem pra ir arrastando até o táxi, que estava a uns três metros. Tive mesmo que abraçar minha humildade e ir andando pé calçado outro não, pé calçado outro não. Aí a pessoa que me acompanhava disse: tire o outro pé, ou seja, a outra sandália. Não!, gritei nervosíssima, assim é menos vergonhoso. Lá vai eu desse jeito até o táxi. Todo mundo que passava olhava. Carros quase paravam para me ver melhor. Cheguei ao táxi, e o taxista não viu minha situação. Entrei no carro e disse: hiper do canela. Claro, para comprar outra sandália. E, pelo jeito, havaiana. Ao perceber que faltavam vinte minutos para as dezoito, hora do filme, me desesperei. Pedi ao motorista que acelerasse: coorre, corre, corre! Ele deu uma volta dos diabos, procurando não-engarrafamento. Acabou passando em frente à Ufba, no vale do canela. Faltavam agora dez minutos para as dezoito. Eu, desesperada, ao passar em frente ao meu destino e não poder parar, pedi mais carreira ao motorista. Foi no meio desse desespero que gritei implorando pra ele parar em qualquer sapataria que visse, e não no hiper como tinha combinado, pois olhe, minha sandália quebrou e eu preciso chegar rápido no cinema!!! Aí ele disse que pela urgência pensava que era caso de hospital. É urgente, moço! Foi aí que ele me deixou na porta do hiper, indicando uma loja de sapatos anexa. Acabei comprando uma sandália horrorosa por setenta reais. A essa altura nem olhava mais no relógio, só xingava a lerdeza da moça que tinha ido lá em cima buscar um pé com meu número. Ela chegando, botei a sandália quebrada na caixa e a nova no pé. Horrorosa, a nova: cor verde cana cheguei. Saí estraçalhada, correndo pela rua a fim de pegar o filme ainda no começo. Desci as escadas da reitoria bufando, demorei uns vinte minutos para atravessar aquele sinal da rua lá embaixo e aí finalmente entrei no cinema. O filme havia começado. Suava, em estado de morte, e trôpega tive que enfrentar a sala de projeção escura. Ao encontrar uma cadeira e sentar, mais parecia um elefante de circo completamente esmagado.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

canção para as alturas


Tudo que sou é infância perdida. Anel de noivado doado ao centro; anel de casamento guardado na caixa, dedos vazios. E se a hora de morrer for a mesma coisa que uma cócega, uma grande cócega nos pés? E se eu rir demais nessa hora? Ah meu amor, que posso eu fazer com o tempo, que corre em direção oposta? E com essa música, que insiste em tocar tão rápido? E com essa navalha, sempre indo goela abaixo? Que posso eu fazer com essa vida metida a besta, que traz o nariz empinado, olhando sempre para o alto? Para o alto, sim, amor, onde estão todos os mortos.


Imagem: castillo nas alturas. site: kokuaportugal.com

epígrafe tardia

Tempo de madureza, em que despencamos de árvores altas e tristes, e carregadas de frutos. Essa foi a última frase que me restou de um texto enorme que acabei de escrever e a internet fez sumir no vazio. Não consegui salvar e o que escrevi desapareceu. Restou essa última frase, que talvez eu possa reaproveitar num tempo próximo; tempo em que memória e queda são uma única coisa.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

o punhal


Talvez um dia não seja preciso, finalmente, dizer qualquer coisa. Aí tudo será somente silêncio. Livros fechados, bocas mudas, mundo sem sinais. Para que dizer? O mundo morre de tanto falatório. Há muitas placas, direcionamentos, letreiros, mas ninguém consegue atinar para nada: não há sentido, e todos, sem saber, caem no chão. Há um atoleiro de gente no mundo, todos atolados, sem se darem conta. Ô mundo besta, que fazes nesse dia de domingo? Exibes um sol forte, arrogante, uma vida estúpida, uma felicidade cara e barata, um tapa na cara, um punhal no peito. É esse o inventário que me concedes, e o que vou deixar, na casa vazia. Um punhal no peito. Tenho que herdar mesmo essa imagem clichê, brega, atordoante, derramadamente melosa: a peste desse punhal no peito, pois que outra mais verdadeira e cruel jamais encontrarão para salvar a estética da dor. Venha, gente, dê-me uma imagem diferente dessa, mas que possa ser forte o suficiente para nela concentrar toda a impotência do corpo. E que seja uma imagem nova, capaz de renovar também a morte por ela causada, a morte que virá somente no dia em que o punhal envelhecer lá dentro como envelhecem todas as coisas do mundo. Porém, ninguém na verdade sabe o que é morte. O que é morte, você sabe? Me conte então. Vou continuar a viver depois de tombar morta no chão? Meu espírito sairá flanando como uma besta? Quero uma resposta precisa, sem senão, sem metáfora, sem doutrinação. Quero saber a verdade. Quero saber a verdade, meu Deus, e me libertar para sempre desse punhal, imagem desgastada e sangrenta.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

oração



No rio vermelho, hoje, minha mãe, cometi o ato mais humano do mundo: furei a fila. O sol estava quente, pegando fogo, e eu não tinha chapéu nem boné e queria também fazer algo errado. Então fiquei com a cara mais abstunta do mundo e entrei no meio da fila quilométrica, na frente de milhões de pessoas que chegaram bem mais cedo que eu. Ainda bem que fiz isso, porque num instantim cheguei aos balaios, realizando logo o trabalho maravilhoso de enviar o perfume alfazema e as quatro rosas brancas que eu levava pra ti. Mais quatro rosas brancas eu já havia, de sobreaviso, colocado ontem, no teu altar, quando eu o arrumei para esse dia...
De peditório, minha mãe, quero a brisa que mandas à tarde pelo vento, a fim de que eu possa refrescar essa quentura que me invade o juízo em noites perdidas. Peço também um pedaço de teu manto, para que eu aprenda a bailar sobre as águas com a coragem decidida dos náufragos.