sábado, 31 de dezembro de 2011

elucubrações bestas


Finalmente o último dia desse ano purgativo. Já vai tarde. Não vou me despedir dele, quero vê-lo pelas costas. Esse negócio de que se chorei ou se sorri o importante é que emoções eu vivi é bestagem. Esse ano foi a pedra de Sísifo com alguns momentos de alívio e bem-aventurança quando eu descansava um pouco o lombo ao apreciar, da montanha, o vale. O pior é que os astrólogos estão dizendo que o ano que chega hoje será energeticamente ruim por conta de um cinco, falam até em fim de mundo. Ora, se for o fim do mundo é melhor. Pois aí acaba logo tanta problematização humana.
Estou agora numa cidade que não é minha nem nunca será. Dentro de uma casa aconchegante, mas que também não é minha. Com uma vida estável, mas que também não é minha; pertence ao destino, aos deuses, ao que chamam de acaso ou não. O sentimento de propriedade não me pertence, talvez por isso eu não seja de fato uma burguesa; não esteja agora contabilizando dinheiro para comprar uma casa e um carro. Tudo que é meu está no ar. Para forçar uma poesia, sou o próprio ar. Ou seja, mesmo parecendo despretensiosa, sou a própria pretensão. O que é o ser humano senão isso, nesse mundinho besta?
Ora, a despretensão seria não dizer nada. Seria o silêncio. Ou não? Silenciar também é uma pretensão; de sabedoria. O suposto sábio é mudo? Ai, ai, não temos escapatória. Se estamos aqui nessa dimensão de terra, é porque não somos lá essas coisas. Se temos como destino o nosso próprio desaparecimento, não somos coisa que preste. Não se avexe, isso aqui é só elucubração de quem não tem o que fazer no último dia do ano. Jogo agora para os pombos invisíveis, numa praça larga, essas palavras que o vento leva.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

a cantilena de sempre


É verdade que apenas um número é acrescentado no calendário; mas já fizeram tanto fuzuê com isso que a data não é qualquer data. E não é mesmo. E quem diz isso é uma pessoa que já passou muitos reveillons dentro de casa, sozinha, só para mostrar que esse dia é como outro qualquer. Mas infelizmente não é. Nosso imaginário já foi tocado, agora já era. Há uma expectativa, queira ou não, com as contagens de segundos, aquela baboseira toda. Mesmo dormindo, creio que na passagem entramos em expectativa. E sempre dá um friozinho na barriga ao se tentar imaginar o que o "ano novo" nos traz. Já passei duas vezes pela carta do Enforcado, duas vezes pela carta dos Enamorados, uma vez pela Roda da Fortuna. Não sei qual a minha carta desse ano que está chegando, aliás, que começou no dia de meu aniversário, mas precisa ser a Temperança. Já chega, meu Deus, de tanto desespero, de tanto ranger de dentes, de tanta fúria. Preciso aprender a ser suave, a acolher com leveza o universo. Por que não aprendo a lição de Cecília? Oh, minha santa de olhos verdes, ensina-me a acolher as dores com as mesmas mãos que tocam, com amor, os livros.
Parece que não aprendo nada com o passar dos anos, do mesmo modo que dentro de mim parece que continuo com a mesma idade.Incrível como o nosso tempo mais interno é imóvel, perene, impermeável.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"semper parata"


Aos seis anos fui fadinha, designação para o primeiro patamar do bandeirantismo. (Sim, fui bandeirante dos seis aos catorze anos.) E como às fadinhas só era destinado o "trabalho" de brincar de boneca, eis que numa tarde de sol brincava de boneca no casarão das bandeirantes. Os brinquedos pertenciam à associação. O que eu não sabia era que aquela boneca em especial tinha dona: uma menina rica da cidade grande que a emprestou para a casa, na sua estação de férias no interior. Só soube disso depois que, sem querer, quebrei, num carinho exagerado, a cabeça da boneca. Todos os adultos que ali estavam, gritaram em uníssono: "A boneca de Fulana!" Um constrangimento doloroso marcou o ambiente, e eu senti, pela primeira vez, que havia cometido um erro, um grave erro. Fui tomada por um acesso de remorso, espécie de peso que me acompanhou dias e dias. Mesmo chorando aquilo não passava. O que a menina rica da cidade grande iria pensar de mim, eu que quebrei sua linda boneca? Até hoje esse sentimento de fatalidade, como consequência dos exageros de minha ternura diante do que não é meu e nunca será, me acompanha. Continuo quebrando, por causa de meu excesso de amor, as coisas alheias. E, ao quebrar, o formigamento no juízo continua me perseguindo, com a imagem de todos aqueles olhos e bocas me denunciando: "Oh, a boneca de Fulana!"
Eta eco maldito que me faz pedir perdão mil vezes ao mundo, sem qualquer chance de absolvição.


Imagem: símbolo do bandeirantismo."Semper parata", lema das bandeirantes, significa "estar sempre preparada".

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

reverência


Todos os dias um trator passa sobre minha alma. É assim: ele vem, pesado, e me esmaga. Nem no Natal ele deu uma trégua. Disse assim: no Natal não se nasce, se morre. Minha alma é translúcida, o trator é a morte. Imenso como um transatlântico. Diante dele me curvo, obediente, como um elefante de circo.



Imagem: filme "A hora da estrela".

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

a água mais morna


No inventário, trinta diários.
Aos quinze anos, dentro de um aquário,
escrevia com a água mais morna
os dias sem glória.
Nas linhas, o obituário da cidade,
Clamar os dias com sol e sem sol,
com chuva e sem chuva.
Sem saber, fotografava o insípido,
o que não se destrói com as traças,
o que é vivo, nem se curva - para o fim.
Uma menina sem mim, o que eu era.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Canção do dia de sempre


Tinha quinze anos e colei na porta de meu guarda-roupa esse poema. Continua lá.

Canção do dia de sempre
Mario Quintana

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

sábado, 17 de dezembro de 2011

de tudo que não se encontra


Tem momentos em que a literatura não nos acolhe; nem a música; nem o cinema; nem o amigo; nem Deus. Tem um momento em que tudo foge: o vento, o frio, o calor, a fome, a sede, a vontade. Você quer a mão que um dia esteve do seu lado, mas ela não chega. Você quer o escuro, o claro relampeja. Você não quer o Natal, o Natal lhe estampa na cara que esse mundo não é seu, afinal a santa ceia na sua casa nunca existiu. Você tem raiva de ser generosa, você quer estraçalhar sua roupa, você quer ficar nua no espaço, você não quer mais matar ninguém, afinal todos irão morrer. Muito menos você deseja qualquer prato de sopa, nem o abraço do mendigo, nem olhar para o céu, não quer mais crer na humanidade. Você se contorce em dor, seu corpo se decompõe, você é só trecho em branco de um sonho. E você nem desaparece, você continua, e toma pílulas e pílulas para dormir. Você compra seu sono em cápsulas, o que seria de você sem uma farmácia. Você, em calado silêncio arranca os cabelos, grita, uiva, e a noite de sábado, para quê?, não escuta, e nem precisaria. Você se livra do que Pandora não conseguiu, joga a esperança fora, antes de matá-la com perfeição. Você já não mais espera. Apenas olha.


Imagem: Cena do filme "Flores partidas" (2005), direção Jim Jarmusch.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

de novo


É mesmo perseguição, Noel está vindo de novo. Um monte deles, todos gorduchos e felizes, pregados em portas de doces lares e de prósperas lojas. Junto com ele, milhares de árvores cheias de bolas coloridas, e o azáfama de pessoas comprando sapatos e roupas. Natal para mim sempre foi sinônimo de solidão. Só quando criança, embalada pelo interesse nos presentes do velho Noel, me animava; me animava até receber o que queria; no dia seguinte voltava a ser tudo igual de novo. Natal é solidão, e Jesus Cristo soube profundamente dessa verdade. No interior da década de sessenta nascer merecia fogos de artifício. Quando nasci pai soltou milhares. Talvez vem daí minha aversão a festas, a bombas, a alegrias destemperadas. Com certeza me assustei com aquela estupidez na porta de casa, com o entra e sai de vizinhas curiosas em conhecerem minha cara, com tanta euforia sobre algo tão rotineiro e solitário. Nascer é profundamente solitário, assim como viver e morrer, e isso que estou falando é puro truísmo, todo mundo sabe, mas não custa nada repetir. Não custa nada repetir quando o Natal de novo se aproxima, quando todo mundo se apruma num vestido novo e num sapato da moda; quando as pessoas se apegam tristemente à repetição das festas para se sentirem, coitadas, um pouco felizes, soterrando para o mais fundo de si a verdade mais dolorosa e íntima, a que estão inapelavamente sozinhas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

planeta vazio


Tudo é distante, inalcançável. Estico meu braço e não te alcanço. Meu braço se quebra nessa busca. Meus dois braços estão quebrados. Aquieto-me num movimento contrário: sob a chuva, numa casa sem telhado, sento-me em sete cadeiras, rodeada por uma mesa grande, uma mesa redonda, uma mesa parecida com a terra. Nesse planeta vazio me instalo, para sempre.


Imagem: Cena do filme "Melancholia" (2011), de Lars von Trier.

domingo, 4 de dezembro de 2011

"Este livro"


Sim, fiz de minha vida literatura. Tudo o que vivi e vivo vem de algum livro. Por isso nota-se em transparência nebulosa essa minha contínua propensão ao sonho, a suspender sempre e sempre a incredulidade, a ir de olhos fechados. Tudo, até uma cadeira amarela que ponho na sala vem de uma lembrança esquecida, lembrada de uma página. Tudo, tudo o que sou, não é o que sou, é o que li; por isso essa dificuldade em aceitar a verdade, a verdade do que eu poderia ser. Sou de fato o que li nos romances, nos contos, nos poemas. As pessoas que de mim se aproximam, se adensam em cores e perfumes fortes, em madeleines, em imagens, em sinestesias mentirosas, tudo criado por meu corpo simbólico, reverberando no mundo.

descoberta do mundo


Os finais de tarde de domingo são reflexos de um mar vazio: as águas foram para os lagos, para os rios distantes; ficou no lugar um vasto oco, profundo, profundo, e o mundo inteiro caberia nele, numa espécie de naufrágio coletivo. Mas há gente feliz nesse momento: saindo do cinema, tomando um guaraná, uma coca zero, uma coca litro. Enquanto que do lá de cá a vida é besta mesmo. A vida é besta, meu Deus, e esse crepúsculo confirma que tudo existe em estado de suspensão, tudo flutua, mas não se denuncia; somente as nuvens são sinceras: somente elas jamais disseram o contrário.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

uma sombra


A impressão é que eu sempre chego tarde. Quando eu chego, todos já se foram. O salão está vazio, e não há nenhuma cadeira. O salão é amplo, e meu eco não se repete para fora. A impressão é que chego por último, e todos foram embora. A casa é imensa, abandonada, e faz pouco me esperavam na cozinha. Tilintavam panelas, à minha espera. Não, nunca chego na hora. E andando, pelos vácuos que escapam, abraço o que não se encontra, na forma nítida de uma sombra.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

os amantes


A arte vive dos relacionamentos humanos. Sempre em desencontro, os casais na maioria das vezes são "dois inimigos", como bem disse Drummond sobre os "dois amantes". Por que é tão difícil conviver, por que é quase impossível amar, por que as relações sempre acabam, por que... Paro por aqui com medo de me aprofundar ainda mais no clichê. Há esperança? Não sei, embora acredite que amor. A dificuldade está na possibilidade de viver o amor. Porque os homens ainda não sabem como conviver com a falta da hipocrisia, porque a hipocrisia se estabelece nas relações como algo que faz parte de suas entranhas, algo natural. E porque a não hipocrisia não consegue estabelecer diálogo profícuo com o amor. Este idealiza, sempre. Aí o que sustenta a idealização, para quase todos os casais, é a hipocrisia. Mas viver o outro no cru, na sua crueza de ser vivente no mundo, sem polimentos, é quase que impraticável. Com essa impraticabilidade é que a arte dialoga; quem sabe um dia a possibilidade de amar ganhe sobre as hipocrisias, e o amor, em seu estado totalmente natural, sobreviva às convenções e às desistências. E, como no final do filme "Manhattan", de Woody Allen, possamos acreditar que ainda existem no mundo seres que não se corrompem.


Imagem: Cena do filme "Manhattan"(1979), de Woody Allen.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Série "vazios"


Acredito que muitos procuram um psicanalista, ou psicólogo, com o desejo inconsciente de ter um amigo perfeito. Aquele amigo que vai lhe escutar sem emitir julgamento. Que vai se eximir de opinar sobre o que você fez (pois o que você fez está sempre em eterna falta), dizendo-lhe a seguir o que deve ser feito, apontando seus mais míseros pontos fracos. Pois é isso que os amigos, na maioria das vezes, fazem. Eles não sabem quando é melhor ficar em silêncio. Eles quase sempre têm a miserável autoridade do amigo: diz o que "é melhor para você", "para o seu bem", justamente "por que é seu amigo". Enquanto o que você só quer mesmo é colo e silêncio. Compreensão sem palavras. Você não quer um manual, quer um amigo. Essa palavra está, como todas as outras, desgastada. O que é, meu Deus, um amigo? Não sei. Aos seis anos tinha uma amiga, de minha idade; íamos à escola juntas, andávamos juntas, mas a solidão nos permeava, como chicote, pois ela tinha a autoridade de amiga, e essa se exercia através do abandono, sempre assíduo e perverso. Hoje, depois de muito buscar o que se denomina, de maneira complexa,"amizade", vejo-me mais uma vez, de novo, infelizmente, em busca do psicanalista, o homem sem julgamentos, o "amigo" que silencia.


Imagem: "Série Vazios", de Adriana Rocha. In: www.google.com.br

sábado, 19 de novembro de 2011

quando uma mãe conhecida morre


Para Mayrant Gallo

As mães nunca deveriam morrer. Drummond disse algo assim, mas de uma maneira linda. Eu digo aqui, à minha maneira, como uma dor prenunciada, ensaiada, dolorida. Não, Deus, não permita que minha mãe vá embora, e de novo parafraseio tristemente Drummond. Toda vez que uma mãe conhecida morre, morro num soterramento plano.
Em maio de 2010 senti um grande abalo. Em maio de 2010 morreu a mãe de minha amiga de infância, uma segunda mãe, e que se dava tão bem com a minha, de muitas e longas datas; ambas viram as duas meninas, eu e minha amiga, cresceram. Ambas conversavam sobre rádio e novela. Quando essa mãe querida, e tão parecida com a minha, morreu, eu sofri muito; era como se, Deus livre e guarde, morresse um pedaço de minha mãe, como se fosse um pré-ensaio de sua morte. Chorei de maneira multiplicada.
Ontem morreu a mãe de um amigo. Uma mãe conhecida, que exercia, igualzinho à minha, o papel de mãe. Ambas foram apresentadas num Natal de dois mil e cinco, e estavam vestidas com um vestido parecido; logo se identificaram. Deram-se tão bem, e no mesmo instante já estavam trocando a receita de rabanada. Ontem soube de sua morte, e de repente senti a pontada da dor, o anúncio de uma dor ingrata, pérfida. Passei vários emails para o meu amigo, imaginava que a dor que ele sentia era imensa, pois que repercutia em mim de uma maneira terrivelmente incômoda e cruel.
Disse Jorge Luis Borges, sabiamente, que devemos olhar para todas as pessoas como se elas já estivessem mortas. Faço esse exercício desde que li tal frase. E olho para mãe sempre com lágrimas nos olhos. E nem posso pedir a Deus para eu ir antes dela; não posso, pois de todas as saudades e dores que uma mãe pode sentir, essa deve ser a mais inimaginável e perversa.


Imagem: Cena do filme "Roma, um nome de mulher" (2004), de Adolfo Aristarain.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

"ensinar" literatura


A cada dia de meu trabalho como professora de literatura, sinto como é deleitosa e ao mesmo tempo dramática tal profissão. O que nos espera na universidade são, na grande maioria, alunos desamparados por não terem tido a oportunidade anterior de conhecer a literatura. Nós, professores, temos o desafio enorme de provocar a iniciação: em muitos alunos isso ocorre rápido, como alumbramento de sua própria vida, em outros tal coisa demora a ocorrer e, em alguns, infelizmente, a tarefa se transforma em algo doloroso, difícil, para ambos os lados.
O primeiro grande desafio é a desautomatização. Desvestir a literatura como disciplina é outro. E, a mais difícil, tocar o aluno, incitá-lo a ler, ele que leu pouco ou quase nenhum livro.
Literatura é alma, ou não é nada.
Literatura é uma "disciplina"? Dizem as grades curriculares que sim. Para mim, não. A burocracia dita as ordens do mundo: preciso preencher cadernetas e nestas, as notas. Mas, inicialmente, o que preciso mesmo é desautomatizar os alunos e encontrarmos, juntos, uma terceira via. Infelizmente, nesse momento não poderei ser Bartleby, por isso preencherei sim as cadernetas, eles terão a famigerada nota, mas isso é besteira; apenas uma necessária encenação para o seu posterior currículo.
O mais importante será a experiência que viveremos juntos ao longo de todo o semestre, no qual a nota será mero acessório. O mais importante, de fato, é outra coisa. Uma delas a nossa relação firmada num pacto sem dogmas, livre, como é a própria literatura. Nesse pacto desautorizaremos a autoridade e seremos amigos. No processo de busca de alumbramento para a vida, seremos companheiros procurando sentidos, ou a falta deles. Os livros intermediarão, como grandes protagonistas, esse encontro. Os livros nos transformarão. Nada, nada será obrigatório. Motivos para fazer chamada ou passar lista de frequência? Para quê, se ali engendramos a liberdade?
Literatura é alma, comunhão, humanidade, ou não é nada.

sábado, 12 de novembro de 2011

canção dos desesperados


Uma angústia sem asas. Um não sei que fazer de sua figuração no mundo. As encenações repetidas. Uma desordem. O que se diz e o que não se entende. Impossibilidade de abraçar. Livros esparramados pela mesa, fechados. Tudo, tudo se distanciando. O colarinho lhe apertando o gogó. A dor de barriga que chega na hora errada. A falta de toda e qualquer palavra. O cansaço da poesia. A falta de paciência com os poetas que têm carteirinha. O clube lotado, o clube vazio. Orides Fontela lhe olhando da cozinha, lhe acusando do roubo de sua miséria. Hilda Hilst de novo sozinha. Você, você, vocezinha, estúpida como um capim. Os cabelos brancos fazendo-lhe coroa num castelo sem reino. Essa boca em eterno esgar, essa cara severa onde dentro há tanta ternura. É preciso, escute logo, que você se acolha em seu próprio ventre. É preciso dobrar-se, como uma cobra, na própria solidão; contorcer-se sem grito, extasiar-se sem medo, talvez morrer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

abandono


Esta casa está sendo, aos poucos, abandonada. Dizem que é necessário mudarmos de casa, de preferência de três em três anos. Já tive vários convites para deixar esta e me mudar para o facebook. Mas sou por demais apegada a casas antigas, com cheiro de abandono; com teias de aranha pelas paredes, copos empoeirados na cristaleira, e roupas envelhecidas. Esta é, pois, uma casa antiga. As janelas emperraram-se e acredito que terei de ter bastante força para conseguir abri-las. O mato tomou a varanda que antes era diáfana, com cheiro de jasmim. Os jasmins morreram, um a um, perante o desconsolo do silêncio. Nunca, ninguém mais veio aqui: só um ou outro, desses que insistem em manter dentro do corpo essa coisa longínqua que é a memória, passam e jogam, pelo alto, um bilhete preso a uma pedra. Há muito cheiro de tempo, e, dentro dos armários, fitas amarelecidas amarram caixas sonâmbulas. Daria tudo, meu Deus, tudo, para que essa casa voltasse a ser habitada. Por isso fico rondando-a, em dias de frio como esse, em dias de chuva, buscando a chave esquecida por mim em algum lugar.

sábado, 29 de outubro de 2011

espiões de Deus


Prisioneiro absoluto, Rei Lear, completamente enlouquecido, grita para sua filha Cordélia e para nossas filhas, as mais íntimas:
"Não, não, não, não! Vem, vamos para a prisão. Nós dois sozinhos cantaremos como pássaros na gaiola. Quando me pedires a bênção eu me ajoelharei e te pedirei perdão. E assim viveremos, rezando e cantando, lembrando histórias antigas, rindo enquanto ouvimos os pobres vagabundos contarem as novidades sobre as borboletas douradas da corte. E também vamos conversar com eles: de quem perde e de quem ganha; de quem vai e de quem fica; e penetraremos o mistério das coisas como se fôssemos espiões de Deus; e entre os muros da prisão sobreviveremos às seitas e partidos dos poderosos, que sobem e descem como a maré debaixo da lua."*
Há tanta coisa nesse parágrafo! Mas calemos, calemos, apenas escutemos várias vezes o que foi dito. Não é necessário perguntar quais serão "as novidades sobre as borboletas dourados da corte". E quem são "os pobres vagabundos".
Apenas possamos nos permitir também penetrar "o mistério das coisas como se fôssemos espiões de Deus."
Não é isso o que os artistas fazem?
Espiões de Deus, eles olham dentro do buraco da fechadura do mundo e murmura para nós os mais diáfanos segredos vistos.


Trad. de Millor Fernandes. In: SHAKESPEARE, William. Rei Lear. Porto Alegre:L&PM, 2010, pp. 127-128.
Imagem: William Shakespeare. In: www.google.com.br

terça-feira, 25 de outubro de 2011

inventário


Deixamos tudo, desde que saímos.
A roupa no varal lá continuou, nesses anos todos.
Nossos vestidos, com o tempo, encurtaram
E as blusas, ensandecidas, continuaram
a balançar, a balançar, sem vento algum.
No batente da porta nossos chinelos
nem tão velhos eram, mas envelheceram.
E as botas que pai não teve
deram para andar, sem qualquer destino.



Imagem: "O que se perde no azul". In: www.google.com.br

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

série romances preferidos


"- Você também tem uma explicação para o amor?
- Como não? O desejo de posse em alguns, como a avareza. O desejo de submissão em outros, a vontade de perder o senso da responsabilidade, de ser admirado. Às vezes, o simples desejo de desabafar com alguém que se interesse, encontrar novamente uma mãe ou um pai. (...)"

GREENE, Graham. O crepúsculo de um romance. Trad. de Branca Maria de Queiroz Costa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960, pp 120-121.

domingo, 23 de outubro de 2011

espeleologia


Seu corpo é todo em rabiscos, como as cavernas para os primitivos.
E eu, curiosa, revisto tudo buscando coisas:
um livro nele escrito, por exemplo.

sábado, 22 de outubro de 2011

o cão


Dizem que no Renascimento a memória era representada pela figura de um cão. Um cão fiel e melancólico. É sabido que o destino desse cão sempre foi nos acompanhar, para sempre e até depois do fim, mesmo que não gostemos nem um pouco de cães. Nossa memória é uma raiz insepulta, fincada num chão móvel e, paradoxalmente, fixo. O que fazer dela? Os artistas sabem bem: desmaterializam-na em imagens,recriam-na, fazem dela o que foi e o que não foi possível um dia. De nós sobrevivemos, teimosos. Ainda hoje, por exemplo, sobrevivo de uma dor que senti no meio do pé, aos dois anos de idade, com a fisgada de um prego. Também de um sol queimando meu rosto em meio a um milharal: sinto o queimor na minha face, como se não houvesse cronologia possível no mundo. Como posso negar a visibilidade nítida das mãos de pai? Uns dedos longos, uma mão nervosa e suada, uma aliança grossa no dedo. E o cheiro forte de seus pés quando saíam, no final da tarde, de seus sapatos, num ritual cotidiano no mesmo canto da sala? A memória gruda principalmente nossos sentidos naquilo que perdemos, de fato. Mas, que bom, os cabelos anelados de mãe, antes das tinturas para fugirem dos fios brancos, ainda se movimentam nas minhas mãos, no também ritual do cata-piolho pago a alguns centavos. E, a despeito das indestrutíveis marcas na minha cara (aquilo que Augusto dos Anjos batizou de “a miséria anatômica da ruga”), meu rosto infantil pulula sobre o espelho, vencendo-o.
Oh, meu Deus, o que fazer desse cão fiel e perdigueiro, melancólico e teimoso, que não insiste em morrer?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

amor


Como é que você sente que está na contramão? É quando você diz uma coisa e a maioria diz outra. Aí você fica ali com cara de besta, se perguntando se é um etê. Ou se está obsoleta, ou se é tabaroa, ou se é velha; enfim, você fica se perguntando coisas. O que você disse, incrível, ninguém ouviu, ninguém considerou; no entanto você tem plena convicção de que o que disse é sensato; aliás, mais do que sensato, é empírico, é vital. Vital. Essa palavra vem de vida, vísceras, estar vivo. Ué, mas tanta coisa está viva. O que há de errado no mundo? Respondo, com total convicção: a idiotia dos pseudo intelectuais e professores mestres e doutorores, e médicos e dentistas, enfim, todo o poder que reina nos que se consideram superiores em questões práticas do conhecimento. Amor é palavra de luxo, atestou num poema Adélia Prado. Atesto hoje: amor é palavra que tem a mesma conotação de lixo. Não vale mais nada. Não tem nenhum crédito na praça, muito menos como valor científico para formar pessoas humanas. Ninguém mais a considera como "recurso" indestrutível; se transformou em peça ordinária jogada no monturo, como pneu velho furado.

domingo, 9 de outubro de 2011

a quem?



Para Paulo, Evandro e Jailson


Que a poesia e a literatura interessam a poucos, sempre soube. Ainda mais num sábado à noite. Sempre soube, sempre soubemos. Os livros são tantos, a vida tão pouca, tão pequena, os livros são tantos e vivemos tão pouco, poderia cantar essa cantiga o domingo inteiro, mas quem me ouvirá?, quem me ouvirá?
A quem interessará saber que Otacílio Mendes não se matou, mas saiu do quarto vestido com uma roupa nova? Que Santa Maria Egipcíaca "chegou/ à beira de um grande rio" ? Que Nelson Rodrigues disse considerar-se "um fracasso"? Que Jorge Luis Borges encontrou-se, aos setenta, com ele jovem? A quem? A quem?


Imagem: fotos de nosso sarau; ontem, 08/10/2011.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

uma canção para gritar


Tem dias em que não epifania, sol que doira, conversação que salva. Tem dias em que encarnamos o triste príncipe perturbado da Dinamarca, e andamos de um lado para o outro com um livro aberto: palavras, palavras, palavras... Tem dias, oh, como este, que pensamos em degolar, matar o primeiro vivente que não tocar a campainha, ou que tocar. E presumir cenas das mais torpes para dar um fim à humanidade. Nossa cabeleira aos assombros, nossas camisolas amarfanhadas, mal queremos deixar o ninho macabro das cobertas. E quando o deixamos, zanzamos pela casa na ilusão fantasmática de continuar a dormir, sonâmbulos de todos os horrores presenciados. Tudo nos conclama à destruição, nossas mãos adquirem tentáculos horripilantes, tendo todos os oráculos ao nosso lado a sussurrar destinos inelutáveis. Talvez saibamos, nesses dias, e saber disso é decifrar cruéis mistérios, que somos de fato herdeiros de Édipo, e por isso condenados, vivos e cegos, a suportar o tempo que nos resta.


Imagem: cena Ofélia enloquecida. Do filme "Hamlet"; direção Laurence Olivier (1948).

terça-feira, 4 de outubro de 2011

exercícios de ausência


Para Naiana, que, com seu comentário no post anterior, me fez pensar nessas coisas

Pareço mesmo não fazer parte do mundo. Um pluft de desaparecimento meu e tudo continuará como dantes. A casa em que moro será entregue ao dono, e os meus pertences doados aos parentes - que não saberão o que fazer com tanta inutilidade. Li em algum lugar que a gente sofre pelo passado, não pelo futuro. Eu sofro sim pelo futuro. Nele vislumbro minha morte. Quem mora na filosofia e na arte tem sempre sua morte vislumbrada: não há como escapar desse fascínio, desse ímã, dessa fatalidade. Por isso a gente pisa nos dias com muita dor; saber-se mortal é saber-se menor, insignificante, perecível, sem muita validade. Em contrapartida, o que fazer de uma vida eterna? A sensação estável de uma vida infinita talvez nos cause somente uma vontade imensa de dormir. Enfim, não há solução, tudo é estranhamento e dessa estranheza saímos ou deprimidos - com alguns momentos de beatitude - ou imbecis, não sentindo conscientemente qualquer estranheza. Por que insisto nesse assunto? Acredito que todo esse diário resume-se a isso: minha quase completa ausência do mundo, mesmo ainda estando nele. O lugar onde mais me sinto ausente do mundo é numa reunião. Nela geralmente apenas apareço enquanto vulto, em total neblina, mortificada como se esperasse o momento exato de cair na chama inquisitorial da fogueira. É nesse momento que percebo não existir, de fato: ali onde estou sentada há uma lacuna, uma cadeira vazia, antecipando minha ausência que um dia será, claro, definitiva.


Imagem: www.google.com.br

domingo, 2 de outubro de 2011

manifesto diante da travessia


Digo aqui que sou uma pessoa triste; e, acreditem, não é para pedir que se compadeçam disso, muito menos para me vitimizar. É apenas simples confidência. E para dizer que o que me salva nesse mundo é a arte, nada mais. Nem o amor me salva. Nele há sempre uma ânsia, uma ânsia sem sucesso, sem saciedade, uma agonia, sempre uma falta de ar. Só a arte, a poesia, a literatura, a música, o cinema me acalmam: são, portanto, os motivos de eu não morrer antes da hora, e de suportar a vida. Nem falo do magistério, pois se ele também me salva é por conta da arte. Eu não me salvaria de jeito nenhum se fosse ministrar aulas de língua portuguesa, ou linguística, ou latim. Muito pelo contrário, eu sucumbiria. É verdade, tudo que não é arte - literatura, música, poesia, cinema - me aborrece, me dá raiva, me dá tédio, me dá embotamento dos sentidos. Suportar a falta de poesia nas pessoas, suportar a mediocridade, é algo que me aniquila. E nessa confissão não há pedantismo, há desolação. Há sim pessoas sem o menor vestígio de a poesia chegar perto. Há pessoas condenadas a aridez e à estúpida arrogância, e nisso não há salvação, doutrinação, meiguice, tolerância, generosidade. Há pessoas sem chance. Quando constato isso, murcho, envelheço, fico mais triste do que realmente sou. E choro um choro revoltado, cheio de uma náusea vagabunda, e me pergunto o porquê de tudo. É terrível, e a arte só sobrevive por conta das sociedades, infelizmente com poucos sócios. Esses sempre mal vistos, sempre mal ouvidos, sempre marginalizados e estigmatizados. Isso é antigo demais, clichê, provando o quanto o ser humano nasceu predestinado à imbecilidade, que se repete como doença hereditária numa epidemia idiota. Eles são muitos, são tantos. Não sou melhor que eles, estamos no mesmo barco, no rio Aqueronte. Faremos a travessia, mas dá raiva vê-los, pois, ainda que em tais condições, continuam presos ao lattes, ao salto, à retórica, à falta de educação: não notam que, a despeito do mau humor de Caronte, nessa travessia difícil, lemos poesia? Calem a boca, malditos.

sábado, 1 de outubro de 2011

à distância


Pai teve várias fuscas, de muitas cores, e em todos eles um toca-fita pendurado. Nele se ouvia, como me lembro e dói, Olhe, olhe o trem, vem surgindo detrás das montanhas azuis, olhe o trem..., de Raul Seixas. Sinto ainda hoje o cheiro das fitas cassetes, assim como da poeira que revestia os bancos de trás do fusquinha, onde eu me instalava. Pai pendurava-se ao volante, tão nervoso, via-se que não havia nascido para dirigir. Nasceu mesmo foi para amar. Ele também teve um fiat branco. O último carro seu foi um passat, que vendeu a fim de pagar os tratamentos que lhe deram a mais dolorosa sobrevida. Hoje estou com muitas saudades dele. E de uma pátria que fica a cada dia mais longe, mais longe, quase não mais a alcanço. Nela, sei, ainda há pontes, e aquelas enchentes bravias que as dominavam, tal como se domina uma criança. Mas não chegam até aqui, onde estou. Onde estou chove muito, mas as águas desaparecem.


Imagem: www.google.com.br

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

sobre o inquilino e a dona da casa


Desde a primeira vez em que escrevi um verso, na sala de aula (aos doze anos), ganhei o epíteto de poetisa. Fui poeta municipal por anos a fio, e mesmo saindo de minha cidade continuo poeta municipal. Fui para Feira de Santana, e lá a poetisa ganhou ares universitários, fez até oficina de criação literária - o que lhe amargou um ano sem pegar na pena. Como se ensina a escrever poesia? Nas oficinas há alguns macetes, dicas boas, mas também há o perigo e a salvação de a autoestima ou baixar de vez ou cair na real. Pra mim foram as duas coisas: caí na real, não era essa poetisa toda que diziam na minha terra; ao mesmo tempo meu superego foi cruel: me jogou no poço mais fundo, que é lá onde deve ficar quem escreve literatice. Consegui, depois de muitos anos, ir subindo esse poço, mas ainda não cheguei na metade, vejo que falta muito para o cume dele, e nunca chegarei lá. Ainda bem que não chegarei. Meu superego é guarda que não cochila, e nesse caso somos amigos. É bom que ele não cochile, é bom. Não quero me transformar nesses seres que andam por aí com roupa de poeta, pasta de poeta, palavra de poeta. E mesmo porque a poesia só nos busca quando ela quer: tem mais de nove meses que não escrevo um verso; então, cadê a poetisa? A poesia dormita, a poesia é temperamental, a poesia escolhe o seu momento de aparecer. Nós, que vez ou outra escrevemos poesia, apenas somos seus míseros inquilinos. Um dia, quem sabe, depois de anos sem dar as caras, ela chega e comete o ato justo de nos colocar para fora de sua casa.

sábado, 17 de setembro de 2011

Ofélia


Em mim a vida não é ininterrupta. Ela pára, ela pára. Às vezes isso acontece nos momentos mais inapropriados. Já aconteceu isso em plena sala de aula, em meio à felicidade. Outras, na extrema infelicidade: no enfrentamento de uma fila cruel. Quando isso acontece eu deixo de ser eu, perco a identidade, fico flutuando no universo; partes de mim se desintegram e o ar não as absorve - permaneço em peso. Uma matéria obtusa ocupando a destreza do mundo; é, porque o mundo é movimento, capacidade, agilidade de mão e contramão. Enquanto que eu apenas rodo em círculos, parando, a morrer, cantando a música de Ofélia e não o sentimento de Hamlet.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A beleza dos versos de Lívia Natália


Na última terça-feira houve o lançamento do livro de Lívia, minha amiga querida, poetisa iluminada das águas; livro belíssimo, que ganhou o Prêmio Banco Capital 2011, e que se inscreve no universo como mais um presente precioso doado a nós, seres que trafegam pelas "rotas insondáveis". Leiam abaixo uma pequena amostra da beleza dos versos de Lívia.


Relicário

Lívia Natália

Meu corpo é das delicadezas,
enxovais completos,
toalhas brocadas,
iniciais maiúsculas no tapete do chão.

Meu corpo é um antiquário -
memória fina do inútil,
seara do translúcido.

Meu corpo é das delicadezas,
asas de transparente voar,
périplo de rotas insondáveis.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

fragmentos circenses


Minha irmã sempre me diz: "Você nunca perderá essa cara de pobre". Mas se eu sou pobre?, respondo. "Pobre da roça", replica ela. "Pobre da roça tem cara de pobre da roça onde ele for, mesmo vestido de cetim na entrega do oscar", diz ela. É a herança congênita de Macabéa, digo eu. Quem leva para sempre na vida a cara de pobre da roça terá panos na cara, mesmo que esteja fazendo tratamento de pele com o melhor dermatologista da cidade grande. Panos enormes na cara, e esse jeito de tabaroa, que nunca perderá. Esse jeito acanhado de quem busca a parede, sempre a parede do canto para se apoiar, livrando-se do restante do mundo. Jeito de quem não quer ser visto. Jeito de quem quer passar despercebido, de uma vez por todas.
Quando eu tinha dez anos de idade o retratista chegou lá em casa, numa noite de são joão, e eu, quando o vi, me escondi debaixo do sofá. Só que sempre fui desajeitada, me escondi mas deixei os pés de fora. O retratista mandou brasa e tirou o retrato dos pés do lado de fora. Para todo mundo que chegava lá em casa mãe prontamente ia buscar o retrato com fins de exibição: virei atração de circo de péssima categoria. Só que certa tarde chegou lá em casa uma professora, uma professora delicada, que talvez tenha lido Clarice Lispector, e se interessou muito pelo retrato. Interessou-se tanto que pediu aquela foto de presente. Claro, na mesma hora o retrato estava nas suas mãos; afinal, para que mãe queria guardar aquilo? Todo mundo já riu o suficiente com ele, e o circo, como já disse, era de péssima categoria.


Imagem: www.google.com.br

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

marcha, soldado


Sair do senso comum sempre foi ambição da literatura, dos escritores. Mas não houve quem mais conseguiu isso que Kafka. Flaubert conseguiu delatar o senso comum com "Bouvard e Pécuchet", e Kafka conseguiu driblar o senso comum com toda a sua obra, e no próprio corpo da linguagem; uma linguagem estranha, em que o homem é posto em exílio perpétuo, e onde há possível esperança ou redenção, ou não: nenhuma esperança, nenhuma redenção. Tudo cabe dentro da interpretação da obra de Kafka, ao mesmo tempo em que nada cabe. Quem diz bem, e belamente, sobre ela é Maurice Blanchot, num livro magnífico: "A parte do fogo".
Devia ser essa a ambição de todo homem, em toda e qualquer instância: sair do senso comum. Tentar não se repetir, tentar dizer e fazer coisas diferentes, livrar-se de uma vez por todas desse legado medíocre e estúpido que é o convencionalismo humano; livrar-se, enfim, de uma certa voz de comando que sempre ecoa nas nossas costas. Uma voz de comando que se diz individual ("a voz do povo... etc"), mas que de individual não tem nada. Aliás, há algo individual no mundo? Existe algo individual em mim? Estou contaminada pelo discurso alheio, não há nada de novo em mim a não ser a repetida estupidez. É preciso ser vigilante de si, em extrema e lúcida clarividência. Vigiar a si para só depois vigiar a dita e conclamada "sociedade", e não o contrário. Vigiar a tal "sociedade" sem se vigiar é a repetição da estupidez, é ser boneco de engonço, balançando a cabeça e marchando - porque todos marcham.

salve a pátria


Sempre quis ser baliza no sete de setembro. Baliza é aquela menina dançando, fazendo acrobacias na frente do desfile. De saia curta, com uma varinha na mão, ela dava ritmo e luz àquela coisa anódina chamado desfile; ela abria a fanfarra, toda fardada com esmero, doando festa às ruas. As pessoas acudiam à janela, prestigiando tudo, mas quem chamava a atenção mesmo era a baliza.
... Meu lugar no desfile era no fundão, como aluna anônima, segurando uma bandeirinha medíocre e marchando ridiculamente, sem ouvir o som da fanfarra, que ia lá frente, looonge. Eu era um triste fantochezinho da pátria. Nunca, nunca fui baliza, talvez o serei em outra vida, puxando o desfile anódino que também deve haver no outro mundo.



Imagem: Foto de uma menina chamada Naíra, que, evidentemente, um dia foi baliza; retirada do www.google.com.br

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

in natura


Adoro o cheiro de suor dele, o chamado suor vencido, que vem de suas axilas sem desodorante. Gosto de seus pés sujos de andar pelo mato, seus pés grossos e calosos, endurecidos como seixos graúdos. Me apego demais a seu hálito fresco de dentes não escovados, sua mania de comer com a boca aberta dando a ver a decomposição da carne. Desde que o conheci, perdi a mania de assepsia e grandeza. Eu que já não tinha qualquer ambição, depois que o conheci entreguei ao mundo meus bens, e que são quase nada: duas dezenas de livros, três vinténs de melancolia, e uma espécie de felicidade sem teto.


Imagem: "in natura": www.google.com.br

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

de novo, Clarice


Desdigo o que um dia disse aqui, e afirmo: o conto Amor não está esgotado. (É, de novo, Clarice.) Acho que quem estava esgotada era eu, de tanto ouvir falar nesse conto, de as pessoas ficarem falando dele pra cima e pra baixo, e com uma superficialidade doentia. Também estava de saco cheio de usarem tanto a palavra de Clarice em vão; acho que a própria, do seu túmulo, vivia bastante insatisfeita. Sem falar na legião de imitadores baratos, neles, claro, eu incluída.
Pois bem. O conto Amor é um dos mais belos contos escritos em língua portuguesa. De uma sensível genialidade; de uma delicadeza de quem sabe fazer renda naqueles bilros antigos, jogando os bilros para lá e para cá, num movimento sutil de mestre, e sempre cantarolando uma cantiga. Enfim, só quem sabe as delicadezas de um bordado, de uma renda, sabe o que é esse conto clariceano.
Não é tão somente a história de uma dona de casa, é mais do que é isso. É a história da apelação da existência: a existência a todo momento nos chama, clama para que nós a escutemos. A existência está lá fora: no cego mascando chicletes e sua intensa existência de coisa viva, saída do lugar comum a que nos prega a vida prática - essa que nos impede de enxergar tudo. O contingente, disse Sartre, é o absoluto. Tudo o que existe é pleno de gratuidade, portanto de plenitude: eis o perigo. Precisamos, isso sim, é acordar. Sentir o frenesi do vento batendo no rosto. E, diferentemente de Ana no conto em questão, não retornarmos à ordem, não apagarmos "a flama do dia", a inquietante e prazerosa (e perigosa) descoberta de estarmos vivos.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

um quilo de açúcar


Casimiro de Abreu é a cara de pai. Este fazia um tom melódico, quase cantando em falsete, para declamar com muita solenidade: Oh que saudades que tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida/ que os anos não trazem mais. Repetia esse trecho sempre, sempre, como se fosse a primeira vez. E ria no finalzinho com uma emoção inteira. Na encenação desse rotineiro poema era de sua alma que ele dizia, era de sua infância, do menino que ele foi com o seu sonho megalomaníaco de comer um quilo de açúcar. Menino obstinado que trabalhou duro na roça plantando mamona, vendendo, e indo, finalmente, à venda próxima, comprar o seu quilão de açúcar. Menino obstinado em busca do mistério da realização: foi correndo pro fundo do quintal, no mais escondido da sombra de uma árvore, e lá se pôs à feliz e triste tarefa de finalmente comer o sonho. No terceiro punhado, com a mão cheia do que é mais doce no mundo, começou a ver tudo rodar; a seguir o vômito saiu forte - talvez como alerta para tantas outras ambições futuras, muito mais doces e perigosas. Ora, comer um quilo de açúcar, engolir a doçura ao quilo é ambição por demais temerária, terna, embriagada, enjoativa.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

sobre Clarice e os calmantes


Estou lendo a biografia de Clarice escrita por Benjamin Moser. Desde ontem. E prestes a acabar. São setecentas e poucas páginas. Ando a engolir o livro. Vendo defeitos, mas gostando demais, sem conseguir largar. Tive que o deixar para ir dar aula, mas voltando para casa sei que não irei dormir enquanto não terminá-lo. É Clarice, a sempre Clarice, demoníaca, bruxa de minha vida, que tanto amo e tanto odeio. Já escrevi aqui sobre isso: sobre esse complexo sentimento que me une a ela. Nós duas, oh, nós duas, como somos parecidas. Ambas têm insônia, ambas tomam remédio para dormir, ambas são ansiosas, ambas se dividem entre o animal e o polido. Por isso a tentação grande que tive no passado de imitá-la; por isso a contínua imitação inconsciente, pois que há traços de sua escrita na minha percepção de mundo. Por isso esse agudo desespero de viver e não viver. Não tenho dela a genialidade, a beleza, a vaidade. Não tenho dela quase nada, só esse feitiço, essa coisa de perseguição. Quando me livrarei dessa mulher? Como destituí-la de ser o tal monstro sagrado? Afinal alguns textos seus não sobrevivem mais à minha leitura. Fico com raiva de alguns livros dela, tanta raiva. De outros, levo um susto. Como naquele em que ela fala dos comprimidinhos para dormir, os calmantes: nele estou eu, euzinha, devoradora de sonhos artificiais, gritando sem ouvir o próprio grito:

"Ah, disse ela com simplicidade, é assim: vamos dizer que uma pessoa estivesse gritando e então a outra pessoa punha um travesseiro na boca da outra para não se ouvir o grito. Pois quando eu tomo calmante, eu não ouço o meu grito, sei que estou gritando mas não ouço, é assim, disse ela ajeitando a saia." (In: "A maçã no escuro")

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Penélope às avessas


Mas será que na intimidade tiramos verdadeiramente a roupa? Os namorados e os psicanalistas nunca terão a resposta fidedigna. Eles são capazes de garantir terem visto nossa nudez, mas o que viram foi o nosso grande manto; o manto transparente. Usamos essa indumentária para os íntimos; e, para os estranhos, usamos a roupa mais impermeável. Esse manto transparente é feito de tecido iluminado, por isso tanto engana. Ele tem bordados delicados nas pontas, ele parece sagrado. Nosso corpo se delineia perfeito dentro dele; e nosso espírito, ali bem acalentado, se desenrola etéreo e farto. Os namorados e os psicanalistas dão garantia do que vêem: a possível nudez. Mas só nós sabemos das perspicácias desse manto, só nós. Pois que o costuramos, bordando-o noite a noite na escuridão dos abismos, feito Penélope às avessas, à espera inconciliável de nós mesmas.



Imagem: "Mulher em azul transparente". In: www.google.com.br

terça-feira, 23 de agosto de 2011

meditação da terça-feira


Não sei distinguir o que é verdadeiro ou falso, o que é real e o que é simulacro; na verdade acho que tudo é encenação. Encenamos e não nos damos conta. E tem muita coisa de moda nisso aí. Quem não quer morrer aos vinte levante a mão. Virou clichê o suicídio, querer morrer para descansar de vez. Tudo é uma repetição exaustiva, a própria dor, o próprio esvaziamento, tudo é tédio, isso sim. O ser humano é um carrossel de imbecilidade, ainda mais por apostar numa autenticidade do "si mesmo". Tudo o que sentimos (ou acreditamos sentir) já foi sentido, e já foi dito, e repetimos nossos pais e avós em sensações e coisas realizadas. O inconsciente coletivo é um grande abismo de símbolos gregários. Por isso talvez não se distingue o que existe e o que é criado, o que é criado e o que existe. O que existe? Tente ao menos uma vez sentar-se na pedra mais alta do mundo e olhar lá embaixo: são mortos ou vivos que caminham pelas ruas? Quem sabe? O que sabemos, de fato? Essas perguntas também não se salvam do lugar comum, do clichê, e parece que não há saída não.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

das coisas raras


É difícil continuar a viver, digo isso, e não é a primeira vez que digo; por aqui são mais de mil palavras como essa. Na minha inocência estúpida, gostaria de ser amada, mas amor não há. Todos estão ocupados. Os braços tolhidos, aleijados, pela plena convicção de que essa é a melhor verdade. Todos estão na sua, como eu diria se fosse jovem. Não sou mais. E nessa idade em que cheguei não há mais vontade para contendas, só para descanso. Quero apenas descansar meu corpo; acordar com cheiro de chocolate na cozinha, um rangido de porta que abre, uma mão tocando meu ombro sob o edredom largo.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

assanharol


Sempre prefiro lembrar o que fui: menina da roça, com medo de homem fardado. Esse medo continua, essa menina é insistente. Fico tremendo de medo ao ver um soldado com aquele revolvão na cintura. A menina que continuo sendo é fidelíssima. Nunca usará um rímel, que Deus lhe guarde. Nunca usará um blush, que Deus lhe proteja. Nunca usará salto alto de bico fino, que Deus é misericordioso. Jamais fará a tal chapinha, jamais quer ter cabelo liso, jamais quer viver em salão de beleza. A menina que continuo sendo é preguiçosa dessas coisas, e prefere o assanharol no cabelo, dá menos trabalho, é mais leve, é melhor. Essa menina não se esquece do dia em que foi compor, como professora convidada, uma banca de defesa de mestrado. Ela chegou cedo, e ficou por ali esperando a porta abrir. Só que ela teve sede, e foi pedir à servente um copo d'água. A servente lhe tratou mal, e disse que só tinha água de torneira. Depois, mais tarde, a servente foi se desculpar, pois pensou tratar-se de uma estudante. Nesse dia a menina regozijou-se pela descoberta incomum de não pertencer àquela tribo. Livre, solta no milharal, selvagem como sempre foi.


Imagem: litoral do Piauí.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

FALSETE



Eu continuo
Com minha guitarra invisível no ombro.
O carro para,
Seguindo o horizonte de dias e noites.
Sem você é triste
Mas, mesmo assim, sigo
Mesmo assim.


(Miguel Gonzaga, heterônimo de Paulo Ricardo)

sábado, 13 de agosto de 2011

amplidões


- Você quer alugar a casa?
- Quero.
- Mas você sabe que é grande.
- Sei.
- Você tem filhos?
- Não.
- Marido?
- Não.
- Não tem ninguém?
- Não.
- Coitada! Ninguém?
- Não.
- Coitada, meu Deus, ela não tem ninguém!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

deserto


Queria entender os mecanismos maquiavélicos que formam cada osso da cara de um ser. As invejas nutridas em cada ponto de uma face branca de pó, aquelas unhas grandes e afiadas de quem quer pegar, de soslaio, sua presa. Meu Deus, como eu queria entender esse povo. Esse povo metido a besta. Gente que traz uma energia miasmática, cruzada, na qual uma boa prosa não flui, e que você precisa a todo tempo estar atento para não desmaiar. Gente que nos dá morredeira, cansaço, tédio, desesperança, raiva. Meu corpo não consegue, meu corpo crispa, adoece. E me recolho, inerte, deitada na minha cama, expulsa do mundo. Como deixar de ser estrangeira, e habitar essa mesma terra, em estado de comunhão? O que quero, muitas vezes, é dar uma de louca, e quebrar de porrada a cara de um. Meu Deus, eu sou doce, não sei pronunciar palavrão, não consigo rebater uma indelicadeza, não vou ter coragem de quebrar a cara de um, de unhar até sangrar uma face branca de pó. O que fazer, meu Deus, senhor da Justiça? Tua balança oscila, oscila, cai.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

o retorno de Salvo


Salvo. Sempre vestia uma camisa azul marca volta ao mundo, bem fininha, uma calça de tergal e levava um classificador amarelo ensebado debaixo do braço. Era alto, um pouco roliço, negro, e quando eu o avistava no início da rua meu coração batia acelerado. Batia mais acelerado ainda quando eu estava lá no fundo da casa e ouvia suas palmas na janela e o som do classificador zunindo no parapeito com estardalhaço, junto com seu grito ecoando forte. Era ele chegando! Meu coração pulava junto com minhas pernas correndo casa afora para ver o que Salvo trazia. Salvo sempre trazia boas coisas. Emissário dos envelopes lacrados, com meu nome escrito atrás precedido pelos dizeres: "Para a jovem..." Na verdade eu amava demais esse homem, que tinha a cara cheia de verrugas e que gostava de andar pelas ruas com o passo solene e arrastado de quem sabe o que veio fazer no mundo.
Quando Salvo morreu, o carteiro que o substituiu não tinha a menor parcela de poesia. Exibia aquela fardinha amarela e azul, entregando cartas não a pé, mas montado numa bicicleta metida a besta. Foi desse tempo pra cá que as cartas começaram a desaparecer, e no lugar delas chegarem apenas faturas para pagamento de alguma coisa. O que me pergunto, desde a ida de Salvo para o céu dos carteiros perfeitos, era se ainda seria possível sentir aquela emoção tão antiga. Isso porque morando em apartamento, e pegando correspondência dentro de uma caixa parecida com cova emparedada de cemitério, nunca mais tinha visto um carteiro de verdade.
Porém, ontem um bateu no portão daqui de casa. Saí correndo, como só corri aos quinze. Vi que ele trazia um envelope médio, era um pacote, o livro. De repente não era mais um carteiro comum, fardado, que ali estava, bem próximo a mim. Salvo tomava seu posto e me entregava rindo, com a felicidade cúmplice da minha, o livro "A chuva de Maria", de minha amiga Martha Galrão. E ainda me disse assim, gritando, como sempre fazia todas as vezes em que batia na minha janela: "Menina, você é a pessoa que mais recebe cartas nessa cidade!"

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

descarada e inútil


Toda perdição está na linguagem. O que vou falar? É sempre um perigo o que vou falar. Palavra é armadilha, é caricatura, é gregarismo. Meu Deus, dai-me o poder de me livrar da língua, dai-me a invisibilidade pura, o silêncio sem signos. É ridículo o ser humano falando, feito papagaio iludido, cantando o hino. Muitos são os que não se dão conta de que tudo que falam é perdido, sonoro desperdício do que chamam razão. Deixai-me Deus, com minha estupidez, deixai-me, sei não. Sei não se canto, se harmonizo o caos falido que transforma a língua em riso, não estado de tensão. Falam como caminham, como suam, como tomam banho. Palavra é sabão passando na pele, pratos lavados na pia, com a precisão lívida das mãos. Sabão que é vendido em vários lugares, na solidão igual do que se reproduz.
Língua que não vale mais nada no mercado, linguagem descarada e inútil, eu te persigo com a força vã dos desesperados.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

canção rotineira para o dia primeiro


É uma intensa e contínua sensação de estrangeirismo. Levar o corpo para lá e para cá, acordar, lavar a cara, pagar as contas do mês que se extinguiu, mostrar para os meus congêneres que estou viva e apta para exercer as funções de gente no mundo... É difícil isso; como ter que entrar num avião, num navio, numa aeronave, ou saber que vai morrer. Dizem os entendidos em espiritismo que essa sensação incômoda se dá em decorrência de uma saudade incurável do nosso corpo etéreo, sem carne, de nosso espírito livre, voando pelo espaço. Dá-se tudo isso, pois, em decorrência dessa nostalgia absurda de um voo esquecido, pois que nos plantaram no espírito leve essa matéria obesa, pesada, compacta. Resta-nos, portanto, essa vontade imensa, como cantou Cecília, de morar no último andar, e de lá olhar, em perspectiva tridimensional, a labuta de corpos se arrastando, tristes, continuamente, pelas filas dos bancos e ruas do mundo. Resta-nos o sonho de poder alcançar o ar, em toque íntimo, num encontro impossível.