sábado, 29 de outubro de 2011

espiões de Deus


Prisioneiro absoluto, Rei Lear, completamente enlouquecido, grita para sua filha Cordélia e para nossas filhas, as mais íntimas:
"Não, não, não, não! Vem, vamos para a prisão. Nós dois sozinhos cantaremos como pássaros na gaiola. Quando me pedires a bênção eu me ajoelharei e te pedirei perdão. E assim viveremos, rezando e cantando, lembrando histórias antigas, rindo enquanto ouvimos os pobres vagabundos contarem as novidades sobre as borboletas douradas da corte. E também vamos conversar com eles: de quem perde e de quem ganha; de quem vai e de quem fica; e penetraremos o mistério das coisas como se fôssemos espiões de Deus; e entre os muros da prisão sobreviveremos às seitas e partidos dos poderosos, que sobem e descem como a maré debaixo da lua."*
Há tanta coisa nesse parágrafo! Mas calemos, calemos, apenas escutemos várias vezes o que foi dito. Não é necessário perguntar quais serão "as novidades sobre as borboletas dourados da corte". E quem são "os pobres vagabundos".
Apenas possamos nos permitir também penetrar "o mistério das coisas como se fôssemos espiões de Deus."
Não é isso o que os artistas fazem?
Espiões de Deus, eles olham dentro do buraco da fechadura do mundo e murmura para nós os mais diáfanos segredos vistos.


Trad. de Millor Fernandes. In: SHAKESPEARE, William. Rei Lear. Porto Alegre:L&PM, 2010, pp. 127-128.
Imagem: William Shakespeare. In: www.google.com.br

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