segunda-feira, 30 de junho de 2008

Infância

Eu já achei que era preguiça. Hoje sei que é mais do que isso. É o seguinte: não consigo lavar os pratos, não consigo cuidar logo dos meus afazeres. Vou juntando, juntando, juntando... até não dar mais. Aí saio louca para fazer tudo de vez. Todos os dias, pois, é uma luta atuar na vida. A minha vontade mesmo é de ficar com a cara para o ar, só sentindo, só lembrando, só imaginando... ou dormindo um sono largo, um sono com o som da chuva caindo no telhado...

domingo, 29 de junho de 2008

Agapito

Dona Zuleica deu à minha irmã um boneco desengonçado. Pai batizou-lhe de Agapito. Agapito era o amor e a dor de minha irmã, coitada. Isso tudo porque o dito cujo era de segunda mão, e tinha os braços e as pernas que não conseguiam ficar nos seus devidos lugares. A brincadeira de minha irmã nunca começava, pois ao pegar no boneco um braço caía. Quando ela voltava com o braço, o outro caía. Depois, enfim: os dois braços nos seus devidos lugares! Porém, quem tratava agora de cair era a perna esquerda. E depois a direita. Ao conseguir armar o boneco todo, para finalmente niná-lo, pernas e braços se desmantelavam. Ela, furiosa, jogava o resto do boneco no chão e ia chorar. Cinco minutos depois, enxugava as lágrimas e recomeçava a infeliz tarefa... De novo braços e pernas nos seus devidos lugares, e etc...
Ah, minha irmã, Agapito foi sua primeira amostra.

sábado, 28 de junho de 2008

As almas mortas de Gógol

Evidentemente que a literatura sabe muito mais dos homens de que a psicanálise.
Vejam como Gógol conheceu o humano na sua mais profunda caricatura, com ironia e piedade:

"(...) Apesar de já haverem transcorrido oito anos desde as suas bodas, cada um deles ainda trazia para o outro, todos os dias, ora um pedacinho de maçã, ora uma balinha, ou uma avelãzinha, e dizia em tom comovente e terno, expressando um amor total: "Abre, benzinho, a boquinha, que eu te darei este bocadinho". É evidente que nestes casos a boquinha se abria com muita graça. (...) Em suma, o par era, como se costuma dizer, um casal feliz".

(In: Almas mortas)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Com chapéu e vestido azul

Não, não é tempo de ler Hilda Hilst e seus poemas devotos. Não é tempo de ler poemas de amor. É o tempo em que as rosas secas, esturricadas, enchem a casa de um perfume adulterado, intenso, dolorido. E tudo que é tocado parece que vai desmanchar: paredes mal se equilibram, armários evaporam, comidas estragam. É tempo sim, de tentar ouvir silêncios, notas soltas no espaço invisível. E que se ouça essa música profunda, muda, em paz. E que nesse concerto do acolhimento dos males, da costura lírica dos vazios, eu me arrume para a festa dos séculos: com chapéu e vestido azul, metros e metros de véu, sapatilhas de outra cor, eu me inaugure para o mundo, para a morte, para, novamente, amor.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Noite de São João

Depois que pai morreu, o São João deixou de existir. Pai era o responsável pela fogueira. Era ele quem, pontualmente, às sete horas da noite, saía na porta, já arrumado, para acender a fogueira feita no final da tarde.
Agora, nesse momento, são quase cinco horas: pai já estaria na porta de casa, com as lenhas ao lado, a fim de construir uma fogueira alta, grandiosa. A rua nossa, pequena e estreita, ficava explodindo com milhares delas. Enquanto juntava artesanalmente as lenhas, pai conversava com o vizinho, dono da fogueira em frente, que também armava a sua: seo Landulfo. Não sei o que eles conversavam, talvez sobre as lembranças que ambos traziam dessas festas tão sinceras. As pessoas passavam de lá para cá, animadas, e os menininhos já iniciavam a sua soltação de traques. Havia concurso de ruas, e nessa hora os moradores arrumavam as bandeirolas, pregavam os retratos de São João nas portas, colando flores, muitas flores de papel crepom, em cada janela. Tudo muito colorido, tudo muito feliz. Mãe nos arrumava com roupas de chita, fazia pontinhos pretos na nossa bochecha e punha batom na nossa boca. Enquanto isso, depois de armada a fogueira, pai ia tomar banho. Vestia-se todo, se perfumava, e às sete, pontualmente, estava na porta com muitos fósforos e álcool, a fim de fazer nascer dali, daquela fogueira tão linda, uma grande festa. Vejo agora, de uma distância tão grande, a primeira fagulha que, animada, ia se propagando com uma força extraordinária: aquela que fazia pai dar um sorriso de satisfação e orgulho. Trazíamos para a calçada um saquinho amarelo com nossas caixas de traques. Ah, o barulho era uma catarse, para toda criança. As maiores, as mais afoitas, soltavam bombas e vibravam com o estrondo. E as chuvinhas? Eu adorava. Haja chuvinha para dar conta de uma noite de São João. Pai, animado, recebia as visitas; visitas que vinham de casa-em-casa, uma tradição do lugar. A mesa da sala as esperava com muito bolo de milho, avoador, pamonha, rosquinhas, amendoim, licor e quentão. Elas chegavam, comiam, bebiam, dançavam e depois seguiam adiante, para a casa em frente. "São João de porta-em-porta", era esse o nome dos grupos. Pai sempre muito feliz; afinal como ele dizia, "aquela era uma festa de roça", ele que nunca se acostumou a morar na cidade, mesmo pequena. E rindo, recebia seus amigos, falando de política e contando casos antigos. Era assim o nosso São João.
Depois que pai morreu, mãe não quis mais, de jeito nenhum, que armássemos fogueira. Na nossa porta ficou um grande vazio. Seo Landulfo, em frente, armava a sua fogueira sozinho, sem um amigo para conversar. E nós, adultas e tristes, andávamos para lá e para cá, sem nenhum traque nas mãos.

sábado, 21 de junho de 2008

Salvação

Tem pessoas que escrevem como quem nunca sofreu uma dor. Uma dor de dente lancinante. Uma dor de barriga daquelas de ver relâmpagos. Uma dor. Isso: uma dor. Dessas que a gente quer se livrar senão enlouquece. Aí vai e escreve. Na maioria das vezes escrevi para tocar a minha dor com ternura, ou com agressividade, a fim de que ela me deixasse ir vivendo, a fim de que eu pudesse rir, pudesse ser navegadora do ar. Nunca escrevi por acréscimo, mas por infinita necessidade de salvação, a todo custo. E se tem valor ou não o que escrevo não me interessa. Interessa apenas que eu me salve.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Boletim de ocorrência

Já falei sobre tantas coisas nesse blogue, que a impressão que dá é que tudo acabou. Não há mais o que dizer. Já desisti até de amar, vejam só. O que destila dentro de mim ultimamente é um ódio grosso, parecendo óleo de carro, grosso e preto. E o que surge é uma menina que nunca fui: com vontades de pregar peças: colocar rabo de papel nas pessoas e tocar fogo; roubar frutas no quintal alheio; beliscar menino pequeno; matar todas as casas de formigas que encontrar; matar pinto (minha irmã matou um aos quatro anos); matar gato e cachorro; matar gente.
É, tomem cuidado comigo: um ódio que nunca vi antes quer sair daqui de dentro. Quer acabar com o mundo. Puxar cabelo de pessoas, torturar, bater, beliscar, pintar o diabo. E nem meu superego está interferindo, eis o perigo. Ele está quieto, só observando para ver até onde posso ir. Não, não vou morder meu braço - como eu fazia quando era adolescente e ficava com raiva. Quero mais é morder braço alheio, deixar marcas sangrando. Tocar fogo numa casa! Ah, deve ser maravilhoso... ver as cinzas, Shiva, Shiva, Shiva...
Acho que de todas as maldades, a melhor mesmo deve ser aquela de dar um grande beliscão. Eu recebi muitos no braço, quando era criança. Minha mãe fazia isso para que eu comesse. O dedo dela retorcia minha pele, e a unha grande terminava o serviço. Deve ser bom mesmo pegar uma pessoa e torcer nela um beliscão, um beliscão bem dado. Não só um, mas dois, três, quatro... Deixar um monte de marcas no braço.
Ah, maldade, o que fazer contigo? Abraçar-te, como a um amigo? Apaziguar-te, livrando-me de todo o perigo? Pois se o perigo nunca acaba, para que apaziguar-te? Ah, maldade, vai ver nem és tão má assim... És uma máscara patética de ti mesma, pathos incendiando meu peito, pobre e só.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Retirado de um diário

"Hoje, 12 de junho de 2007, estou agora sentada frente ao computador, dentro de um apartamento revirado, com uma pia cheia de prato sujo, com uma sala abarrotada de sapatos, mantas fora do lugar, livros desarrumados nas estantes... No quarto um monte de roupa para passar, um verdadeiro caos. E hoje eu só lembrei que dia é hoje porque, na famigerada manhã burocrática que tive, datei várias e várias vezes. Datei várias e várias vezes, preenchi diversos formulários, anotando números e números que me identificam para o mundo. Claro que paguei vários micos, errei muitas coisas, não me lembrava (ou não atinava mesmo) que carteira profissional era a mesma coisa que carteira de trabalho. Claro que o povo lá da sala burocrática ficou pensando que eu era ou burra demais ou muito doida. Puxa, uma mulher que preencheu o item do formulário como uma doutora em literatura não sabia interpretar aquelas perguntinhas... Saí me sentindo uma anta, pior, uma anta suada, fedida, com o cabelo nos mundos e com a cara amassada. Também, depois de ficar de sete da manhã às duas da tarde resolvendo essas coisas práticas que me entristecem e me cansam e me humilham, não era para estar mesmo com uma cara boa.
Ah, esqueci de dizer: a sala era apertadíssima. Onde eu estava sentada tinha um monte de caixa por todos os lados, inclusive perto dos meus pés. E toda hora vinha uma funcionária puxar uma caixa. Haja concentração! Nessa sala kafkiana estavam sentados eu, duas funcionárias, dois professores e outros que chegavam. Um converseiro horroroso! Os professores que recebiam os formulários e começavam a preencher também erravam, e perguntavam e erravam, e uma das funcionárias (a que me atendia) era nervosa, respondia com má vontade e escárnio, principalmente comigo.
............................................................................
Voltando à sala. Depois que preenchi um dos formulários, entreguei feliz à secretária zangada. Ela olhou e com riso zombeteiro, perguntou: “professora, a senhora não sabe o seu cpf?” E eu, olhando para o papel onde eu me esqueci de preencher o número do cpf, disse: “Ah, eu nem vi isso aí”. Ela murmurou: “Esses professores...” com impaciência. O pior é que quanto mais papel vinha mais eu errava. Fiquei nervosa demais, me sentindo burraldíssima. Saí e acabei esquecendo lá o livro que eu levava, de Sterne. Liguei e vou ter que voltar amanhã para pegar o livro. Quem manda não ser desse mundo..."

domingo, 15 de junho de 2008

Mais nada

Há dias em que não há lugar para a eloqüência. Há lugar sim, para as frases curtas. Para o silêncio absoluto. Para olhar e continuar. Me dê sua mão, vamos caminhar pelo escuro; pelo claro não. A claridade é cega, é vesga, é surda. Vamos entrar no milharal, às duas horas da madrugada. Será que lá no alto do barranco, naquela casa dos anos setenta, ainda toca Amada Amante? E minha mão, estará gelada? Vá, pegue na minha mão, preciso usar meus sentidos, como antes. Sua mão é áspera, e não me acolhe como deveria. Sua mão é simulacro, vácuo, onde toco o nada. Veja: ela é pesada, e não se abre sobre a minha palma. Sua mão tem medo da madrugada. O que adianta esse rádio antigo, no alto, continuar cantando Amante Amante? O que adianta? Não, não há lugar mesmo para a eloqüência. Há uma encruzilhada, um silêncio imenso... e uma infância. Mais nada.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A bela e implacável poesia de Orides Fontela

NOTÍCIA

Não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão.

FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)


A ESTRELA PRÓXIMA

A poesia é
impossível

o amor é mais
que impossível

a vida, a morte loucamente
impossíveis.

Só a estrela, só a
estrela
existe

- só existe o impossível.


*Poemas extraídos da bela edição Orides Fontela - Poesia reunida [1969-1996]. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Recado

O único sentido que encontro na vida é a literatura. É ela que me conduz a fim de que eu não desista. Sempre achei o mundo um tédio, sempre quis estar em outro lugar. Nunca fui alegrinha, saltitante e linda. Pelo contrário. Sempre fui incontestavelmente triste, eis a grande verdade. Incontestavelmente triste. É uma sentença isso: seguir triste pelo mundo. E, que, por favor, diante do espetáculo do "ser alegre", me deixem com minha tristeza, em paz; tenho todo o direito. Não estou fazendo terapia para ficar alegre, de jeito nenhum. Faço terapia para descobrir todos os meus abismos, e andar por eles sem nenhum medo. Não é para andar por eles dançante e fagueira. Mas para entrar neles e saber o tamanho de suas paredes; a cor de seu chão; as imagens dos seus pesadelos. Nesses caminhos não há espaço para a alegria: há apenas para o senso de humor. Eis a grande diferença, fiquem sabendo. Meu terapeuta principalmente: fique sabendo que quero ser triste, tá? Entenda isso. Você não vai me converter. E se eu não publico em papel impresso os meus versos não quer dizer que sou mais triste. A tristeza em mim é direção, não é um recalque. A literatura me acolhe; só ela até hoje me entendeu; só ela impede que eu mate alguém, mesmo tendo lido como se faz isso, direitinho, em Os irmãos Karamazovi. Dostoievski é sábio, Dostoievski é santo: ensina a matar para que a gente não mate. Só a literatura me entende: ela atua por outras vias... através da dor, da lágrima, da carne.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Quadrilha

São João: eu amava tanto quando era criança... Vestir roupa de chita, dançar quadrilha, comer rosquinhas, pamonha, bolo, avoador, soltar traque... Olhar para o céu e adorar ver balões - sem se preocupar nem um pouco se ele iria incendiar alguma casa, ou alguma mata. Lembro de todos os São Joões de minha infância. Todos. E a trilha sonora da lembrança é sempre aquele clássico "olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo..." Na escola, esperava a quadrilha com a mesma expectativa que esperava o par, aquele que iria me conduzir, vestido de camisa quadriculada e calça de xadrez, pela dança, ao ar livre. Era a diretora quem escolhia. Lembro de uma grande rebeldia minha, e que só a festa de São João pode explicar, vindo de uma menina tão tímida e resignada como sempre fui. A diretora reuniu todos os alunos para anunciar os pares da quadrilha. Fiquei gelada quando ela gritou: "Aeronauta e... Peu". Ah, que nome horroroso, e que menino feioso. Cismei, e falei na frente de todo mundo que não iria dançar com Peu não. Coitado de Peu. Ficou lá, com a cara para cima, rejeitadíssimo. A diretora me perguntou quem eu queria e eu disse que era Alan. Assim, com a maior naturalidade. Sem temer ser rejeitada também. Ah, essa coragem que tive diante da diretora eu precisaria ter hoje, diante do destino.

domingo, 8 de junho de 2008


Oh meu querido Mario Quintana, povoe essa noite de domingo com um pouco de seus "Apontamentos de História Sobrenatural" ...

"Um elevador lento e de ferragens Belle Époque
me leva ao antepenúltimo andar do céu,
cheio de espelhos baços e de poltronas como o hall
de qualquer um antigo Grande Hotel,"


Ah, meu querido amigo, só você me ouve nessa noite deserta, longa, longa, sem nenhuma pressa de ir embora...
Me escute, e sua tia Élida, como vai? Ainda lhe irrita com aquela história de você sempre deixar a lâmpada acesa? Oh, meu querido, como é estar aí nesse outro mundo? É possível daí passear em todos os tempos? Ler todos os livros de poesia que já existiram? Ah, sei... a biblioteca daí é sortida, e o ócio é melhor ainda. Conheço suas facetas escondidas de anjo que só gosta de brincar. Brincar com as palavras - vida que nunca termina, como a das crianças. Daqui aguardo suas notícias. Daqui, dessa noite de domingo, sem esperanças...

terça-feira, 3 de junho de 2008

Página de um diário

Não estou em nenhum lugar da casa. Nem na fotografia de propagandas antigas que mandei emoldurar. Muito menos nos movéis comprados, no sofá novo, na cadeira de balanço... Hoje pela manhã fui trocar a água, foi um desastre: foi água para todo canto da cozinha. No banheiro quando fui pegar o papel higiênico percebi que tinha comprado papel-toalha. Como se aprende a viver sem você? Aliás, como encontrar a moça que deixei lá atrás, sempre avoada, mas que conseguia sobreviver sozinha? Procuro por ela. Ela era triste, como ainda sou. E gostava de ler livros grossos, como ainda gosto. E sempre sonhou ter uma cadeira de balanço. Agora a dita cuja está aqui. Só falta ela, a moça que fui, com seu longo olhar triste, mas determinado, sentar-se nessa cadeira e encontrar líricas companhias.
A casa silencia. Nunca mais ouvirei suas onomatopéias, seus risos contidos, seu passo lento andando para lá e para cá, me acordando cedo. Nunca mais. Ouvirei apenas os meus, sempre apressados, ou calados, murmurando ecos escondidos. Para quem contar meus sonhos, ao acordar? E, ao chegar de viagem, para quem relatar coisas que vivi? Não, não é preciso, diz a moça que um dia fui, estou aqui. Vamos ouvir alguma música, ler Mario Quintana, Manuel Bandeira... A moça é destemida, livre, tem os cabelos soltos, e grita por mim...

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Divindade alegre

Aos oito anos experimentei o corpo e o sangue de Cristo na primeira comunhão, e fiquei hilariamente decepcionada. Vi que a hóstia era uma coisa sem gosto e que grudou logo no céu da boca e ficou por lá distraída. E o sangue? Ah, era um suco de uva, ou um vinho amargo, não sei direito. Sei apenas que fiquei admirada com as coisas dos adultos, não de Cristo, pois que este não tinha nada a ver com aquela encenação-armadilha-engraçada para pegar as crianças.
Morávamos na mesma rua onde havia a Casa Paroquial, e esta era uma extensão de lá de casa. Mãe nos mandava para lá para que ela pudesse ter um pouco de sossego. Daí surgiu nossa relação assídua com a igreja: cantávamos no coral, pregávamos o catecismo, conhecíamos todos os padres italianos que chegavam, comandávamos as primeiras comunhões das outras crianças... É, aquelas que iriam sentir logo logo, como sentimos, o "gosto" que tinha a hóstia...
O episódio da primeira comunhão funcionou como se uma Mão Maior resolvesse, na hora certa, descortinar a vida, para que eu finalmente pudesse ver as grandes comédias que os personagens do mundo faziam. Nasceu desse momento, pois, a minha fase hilária de criança-beata. Agora eu e minha irmã só íamos à missa para rir. Rir dos penteados das velhas. Rir de todos os rituais. O nosso senso de humor começava a aflorar, demasiadamente.

... As mangueiras da Casa Paroquial; os gibis em italiano; a doçura de Frei Luís; a beleza do Padre Eugênio; a gulodice do gordo Vitório comendo, de uma só vez, um tomate inteiro; os slides bíblicos; a casa enorme, a grande escada que dava para o sótão, a imensa sala de jantar; e na igreja o belo nicho de pedra de Nossa Senhora das Graças... O sino chamando para a missa, a criançada toda sentada na primeira fila... Ah, tudo isso povoou a minha infância com o cheiro eterno de divindade alegre!