segunda-feira, 25 de junho de 2012

crônica familiar


Quando chegar o Juízo Final não irei para a fila dos julgamentos. Paguei todos os meus pecados, e adquiri entrada grátis para o céu, o paraíso, o éden. Tudo isso porque ontem o Destino me incumbiu de levar mãe para ver o show de Luan Santana, claro, a pedido dela. Chegando lá, escutei o comando maternal, bem nítido, saindo de sua boca; esse comando foi traduzido assim:  ela queria ficar bem perto do palco. O show estava marcado para as dez, e às nove - hora de nossa chegada -  já tinha gente saindo pelo ladrão. Perto do palco lá fomos nós. Às quinze para as dez as pessoas começaram a enlouquecer, pois o locutor surgiu gritando que Luan Santana já estava vindo, já vinha, já estava lá, mas só daria as caras às dez em ponto. O povo, eriçadíssimo, foi chegando para perto de onde estávamos eu e mãe. Um empurra empurra dos diabos nos levou para mais distante do palco, e os altos tomaram a frente dos baixos. Eu somente não acreditava que amor de filha pudesse ganhar tais proporções: me sentia ridícula ali no meio daquela meninada histérica, e não podia dar no pé, claro, pois que me preocupava com a integridade física de mãe. O pior é que, naquele apertuche, ela, em plena generosidade, abria caminho para o povo. E tome passa gente, passa boi, passa boiada, até passarem uns dez soldados armados com cassetetes; não sei como não atravessaram nosso corpo, tamanha força moral e física. Quando o tal Luan (que mais parecia deus) apareceu, percebi que nossos ouvidos estavam quase que colados na caixa de som. O som fortíssimo bateu dentro dos meus intestinos, cabeça, tronco, costas, dedos, e eu pensei que iria enlouquecer. Olhei para mãe, e constatei que ela estava miudinha, amassada, mas feliz; disse que o som não estava atrapalhando não.O que lhe atrapalhava era o cabelão de uma menina na sua frente. A menina ouviu e retrucou que ela não tinha nada a ver com isso. 
As pessoas empurravam eu e mãe, sem dó nem piedade. Nunca me senti tão humilhada. Mãe só reclamava que não estava conseguindo mais ver Luan Santana (claro, todos os altos do mundo reclamaram seus direitos), porém não achou ruim o destempero do som nos ouvidos não. Eu disse: se ficar aqui enlouqueço. Ao ouvir isso, preocupou-se comigo e aceitou buscar um lugar menos apertado, sem risco de morte. E fomos abrindo caminho na multidão de gente. Nesse esforço desumano, meu cabelo ficou preso no anel enorme de uma moçoila, e eu senti uma dor terrível no meio da cabeça; tive que fazer meia ré para tirar o cabelo do anel da menina, enquanto pegava na mão de mãe para encontrar passagem. Encontramos um lugarzinho mais distante, mas dava pra ver as pernas magrelas de Luan. Mãe, com a cara descontente: agora reclamava que não via mais nada, pois a luta de ombros com as outras pessoas, os altos, continuava, só que com a desvantagem de não ver de mais perto o cantorzinho de sua predileção. A essa altura eu fazia um esforço pungente para ter paciência com mãe. E o tal Luan no palco com pinta de galã, de deus, e aquele mar de moças desvairadas. Só que o repertório dele foi acabando, e de repente começou a cantar música de Teló. Agora só ouvíamos a sua voz, porque o corpo tinha sumido de órbita junto com o palco, tudo isso em virtude do poderio corporal que a avalanche humana possui. Eu dei graças a Deus por essa perda de visão nossa com relação a Luan, e rezava para mãe pedir pra ir embora. Foi nesse momento que ela soltou tal preciosidade:
- Soube que num show, ele teve disenteria no palco.
Eu:
- No palco???
Ela:
- Foi.
Eu:
- Nem pra ele ter disenteria agora.
Ela se acabou de rir, e na boa vontade aceitou ver o tal homem num telão, colocado em lugar mais calmo do bosque. Eu apenas olhava, de soslaio, aquele fenômeno da mídia que agora cantava sentado. As meninas, todas devidamente de botas e sapatos de salto alto, faziam corações com as mãos enquanto ele dizia de lá do alto "beijo no coração de vocês". Uma fã alucinada mandou uma carta, que o locutor leu no início, em que pedia para ser sua nega. Outra fã subiu no palco e começou a dançar tão colada, se esfregando no cantor, que dois homens da produção a tiraram às pressas dali.
Não sei se vale a pena estar contando tudo isso. Afinal o tormento acabou antes da meia noite. E, graças a Iemanjá (é, pedi proteção pra ela na hora mortal do empurra empurra)  chegamos sem um arranhão em casa.

P.S.: Mãe passa agora pela sala, me pergunta o que estou escrevendo e eu digo. Ela ri e constata:
- Quá! Luan é muito frágil; cantou quase todo o tempo sentado.



Imagem: Eu e mãe fazendo pose para o retratista, pós show de Luan Santana

4 comentários:

Denise disse...

Ângela, não pude evitar ouvir de casa e imaginei como voces estariam lá. Ri muito ao ler seu escrito, ainda bem que meu filho disse não gostar mais do tal Luan, pois que te faria companhia, o que não fazemos por esse amor materno e filial!Bjo.

aeronauta disse...

Pois é, Denise, ainda bem que por tão cedo não irei a show de Luan Santana! Bjos

Anônimo disse...

"Amor só de mãe".
Uma ova! Amor só de filha.

Ângela,
Já passei por uma situação parecida. Certa feita, tive que assistir a uma missa inteirinha e, de joelhos, fingir saber rezar com aquela cara de piedade e puritanismo que todos os carolas sabem fazer e, como se não bastasse, ainda degustar a hóstia consagrada, sob o som de um cântico comprido, sombrio e desentoado, puxado por aquelas beatas compenetradas que parecem obrigadas a habitar toda cidade e frequentar todas as missas, com pontualidade e comprometimento incomuns até mesmo nos padres.
Confesso: foi um “Deus, nos acuda”!

Abraços,
Anônimo I

aeronauta disse...

Anônimo I; que sufoco, hein?
Amor só de filho!
Abraços.