quarta-feira, 27 de junho de 2012
meu, nosso e vosso Destino
Primeiro eu percebi uma coisa estranha na minha bochecha esquerda. Ela estava meio rasa. Achei estranho; e a partir daquele momento, toda vez que ia ao banheiro verificava o rosto no espelho da pia. Depois, com aqueles espelhinhos de bolsa, numa tarde em que me espreguiçava tentando encontrar espinhas e cravos, vi que meu rosto caía quando eu abaixava mais a cara. Na mesma época, minha amiga de infância me ligou só pra dizer que fazia ginástica em casa quando, na hora de deitar-se com o rosto para o chão, incidentalmente viu um espelho por perto. Ao descer e subir e, por último, descer, ela viu muito mais! Viu, claro, no espelho, seu rosto descendo também. E me ligou pra comunicar isso e pra pedir que eu fizesse o teste. Ri, desconsiderei e não fiz. Portanto, foi com grande assombro que constatei em mim também naquela hora a minha cara caída. Descobri, de quebra, outra coisa: os famigerados pés de galinha plantados no canto dos olhos.
Desse tempo longínquo (mais de dez anos) até hoje, diariamente há uma sucessão de descobertas, de surpresas. Lembro quando percebi um esgar em minha boca. Pensei: não; estou feliz hoje, não estou desdenhando a vida. Mas o esgar estava lá: os cantos da boca caíam. É impressão minha ou meus lábios estão mais finos?, perguntei ao Nada, e ele não respondeu. Fui a uma foto antiga minha e verifiquei perplexa essa nova transformação. Perguntei de novo ao Nada: cadê eu? Agora ele respondeu: não sei.
A cada dia desaparece uma parte do que fui. Agora é a vez das orelhas. Ao trocar um brinco, ontem, notei o inevitável: minhas orelhas pendendo para baixo. Retirei imediatamente os brincos e examinei bem perto do espelho: é, elas estão indo, considerei com tristeza.
No seu livro sobre a velhice, Simone de Beauvoir o introduz trazendo a história da descoberta da velhice feita por Buda quando este ainda era jovem. Por estar sempre fechado em seu palácio, Buda não sabia que existia a velhice. Um dia escapou pelos arredores e o que primeiro encontrou foi um homem velho, alquebrado, apoiado em uma bengala. Ele ficou perplexo, sem entender o que era aquilo. Quando o cocheiro lhe explicou que ali se tratava de um velho, Buda disse:
"Que desgraça é não enxergarem a velhice os seres fracos e ignorantes, ébrios do orgulho da juventude! Voltemos depressa para casa. De que valem folguedos e alegria se a velhice vindoura já habita em mim?"
Não sou e nunca fui iluminada, obviamente. Por isso só descubro agora, na maturidade, a velhice me espreitando, com seus olhos fundos. Jovem, nunca me interessei pelo assunto, não queria descobrir naquele tempo minha "velhice vindoura" já habitando em mim. Sou, como todo mundo, ignorante de meu Destino.
Sarcástico Destino: um dia marcarei uma audiência contigo. De fotografia em fotografia me dirás a que vim ao mundo. Aqui, dirás, para chorar, ali para rir, ali para escrever, acolá para descobrir. "Descobrir é a inteira revelação", reiterarás com solenidade. E nada mais dirás. Eu sei.
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14 comentários:
Aérea Persona, grande escritora, parabéns pelo maravilhoso texto. Garanto que seu texto não está envelhecendo: fica a cada dia mais poderoso pelo tanto ver, tanto sentir, tanto descobrir. Abraços (carlos barbosa)
Obrigada, Carlos. Ler tais palavras suas me emociona. Abraços.
"Quando olho no espelho estou ficando velho e acabado"... Assim dizia uma antiga canção.
Mas Caetano Veloso, noutra canção, nos dá um certo conforto: ..."O homem velho é o rei dos animais".
Sigo em frente, compulsoriamente envelhecendo, já que este destino também é meu, pensando na canção de Caetano e à espera do meu reinado.
Abraços, Aero, minha velha amiga.
Anônimo I
"(...) e à espera do meu reinado". Adorei! Você construiu um texto maravilhoso.
Também vou ficar aguardando minha coroa (rs).
Sempre bom receber sua visita.
Abraços.
Belo texto, amiga alada, sobre o que é inevitável. Bjs, saudades.
fico impressionada com a tua destreza e sensibilidade para a escrita. teus textos vibram de dentro. que coisa mais celebrável, querida. bjos
Eu ainda tenho vinte e poucos anos, você pode dizer, mas desde sempre o novo já nasce velho como diria a canção; eu sempre fui um observador e na maioria das vezes permaneço sério; o seu texto mostra muito essa mudança que já não é do ideal estipulado, o que é vendido, pois a ideia que devem passar é da vida eterna, da beleza, da alegria, da felicidade, esse mundo de ilusão sem final, ou melhor, mascarado por vinte quilos de maquiagem como Norma Desmond - na ilusão de que foi colocada: da beleza, do glamour, na mentira de que seu rosto não iria envelhecer. Nem Dorian Gray com seu retrato conseguiu fugir dela, a lei natural das coisas. Há muito tempo sei que envelheço, sei que fui bebê, tive dez anos, quatorze, e que antes do quatorze ainda não tinha pelos pubianos; antes dos vinte não tinha nem fiapo de cabelo no rosto denominado barba, ou posso dizer que sou um barbudo, a velhice é necessária. Vou morrer com 87 anos e nem um dia a mais nem a menos; quero morrer velho com a pele desgrudando do rosto; só vou me achar o máximo, vou pensar "sou o velho mais underground que conheço" rs . E quero dizer que gostei muito do seu texto; e nada disso faz você menos linda, você é linda em verdade e em espírito, por dentro e por fora, difícil nos dias de hoje encontrar uma alma tão bela como a tua. Te amo, datinha.
M.: Obrigada. O tema é mesmo inevitável, mas é sempre tabu, nós sabemos.
Tatiana: Obrigada por suas palavras viscerais.
Anikulapo: "linda em verdade e em espírito"? (rs) Obrigada.
Lindo texto, como tudo que escreves.
Já que o tempo castiga, vivamos intensamente o que nos resta.
"Tempo Tempo Tempo Tempo
És um dos deuses mais lindos"
Como lindamente escreveu e canta Caetano Ângela...o tempo é sim um dos deuses mais lindos. Quiça, o mais lindo! O maravilhoso desse passar tão ritmado das horas é percebermos com o passar delas o que estamos construindo e o que foi construído. O modificar do meu rosto, como de todo o meu corpo, quando tenho essa delicadeza sábia de olhar para "mim" só me alegram e envaidessem. Respeito cada "vinco", cada marca, cada registro deixado pelos bem vividos anos de minha vida. E quem venham os próximos!!!! Belíssimo escrito Ângela! Grande abraço!
Anônimo I,
percebo pelos seus comentários que és muito musical. É quase uma relação biunívoca: Você - Música...rs. Eu também sou..e tenho certeza...estamos em excelente companhia. Abraço!
Sandra: Anônimo I é mesmo um homem música, uma pessoa linda.
Grande abraço; grata pela visita.
Anikulapo: obrigada por me achar linda por dentro e por fora (rs).
Anônimo: está certo - o bom mesmo é viver conscientemente tais transformações. Grata.
Ângela, gostei muito de seu texto, belíssimo!! E, como a velhice já se adentra em minha morada, em mim, digo que me sinto curiosamente mais jovem, a despeito da aparência, e isso é que é estranho. Não corresponder ao estereótipo que a maioria das pessoas nos cobram, creio que principalmente das mulheres, do que seja ser velha ou estar envelhecendo, nos cobram certos comportamentos, gostos, modo de vestir, escolhas amorosas (ou não mais direito a escolhas neste terreno, de preferência). Pois é Anikulapo, gostei muito do seu comentário, eu, que vou morrer aos 90 e aceito uns anos a mais, não a menos, digo que envelhecer e ser si mesmo nessa sociedade que busca o tempo todo nos impor modelos a serem seguidos, é transgredir , é desobedecer o tempo todo e ir se acostumando com os olhares de perplexidade ou reprovação, pois que até uma tatuagem que resolvi colocar agora, beirando os 50, foi recebida por alguns “jovens de idade” como uma afronta, uma vez uma jovem me disse, com um tom de revoltada ao vê-la: “nunca pensei que a senhora colocaria tatuagem!!!), paciência...
Abraços,
Pois é, Denise, por isso não gosto da sociedade e seus esquemas, e faço o possível para não acolhê-la em minha casa (rs). Também já implicaram com meu cabelo grande, com meus vestidos ("quer ser menina, é?", já me disseram). O bom é tentarmos ser o mais próximo de nós mesmos, isso sim.
Grande abraço.
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