sábado, 16 de junho de 2012

sábado, no confessionário

Cedo aprendi a amar: desde a coitada da formiga que poderia morrer com um pisão de pé meu, e que eu resolvia salvar, até os cabelos alheios.
Aos oito, nove anos eu me sentava na porta de casa com um pente na mão e ia chamando todos que passavam na rua, indistintamente, para pentear-lhes os cabelos. Alguns acediam, eu caprichava nos penteados, e não sei como não foi desse modo que peguei piolho.
Na escola minha prática de amar era absurda: eu entrava na fila da merenda duas vezes para alimentar minha colega mais gulosa e malvada. Em troca ganhava cascudos.
Muita gente chamava isso de bestagem, de idiotice, de ingenuidade.
Digo que continuo sofrendo disso aí.
E que fui assistir "Noites de Cabíria" e, tal como a protagonista, acreditei na conversa bonita do contador; e, tal qual Cabíria, me vi perto do rio descobrindo que ele iria me matar. Deitei na grama, tal Cabíria, morrendo de chorar, me descabelando; também descobrindo que eu era ela, como fui Gelsomina, como sou Macabéa.
Minha educação sentimental é por demais dolorosa.
Os livros não conseguiram me livrar dessa culpa infernal de ser eu, nessa carteira de identidade antiga, feita quando ainda estava no colégio.
No colégio eu era gorda e sem jeito. Vejo bem isso nas fotografias daquela época. Sempre fui sem jeito, não sei estar na vida como todos estão, confortáveis como numa festa. Na festa é onde me sinto mais desconfortável: lá a alegria é o mais cruel imperativo.
Em toda festa que vou me lembro de Guilherme Arantes gritando querer o escuro de seu quarto à meia noite, à meia luz.
Acho que são essas mãos que não ficam bem no bolso, nem soltas. O olhar que não sabe onde se fixa. É sempre tão melhor não ter obrigação de falar. Por isso meu repúdio às reuniões, ao namoro sem interlocução, ao médico diante da consulta.


Imagem: Fotografia de Robert Parkeherrison. In: www.google.com.br

8 comentários:

PAULO ESTEVES disse...

Minha amiga:
Quanto tempo! Ler esta postagem me fez lembrar dos passarinhos, tão simples e tão sensíveis e por isso mesmo Deus lhes deu a capacidade de dialogar com a profundez do espaço. Só os céus lhes dão limite, Ângela. Bjo.

M. disse...

Eu, amiga alada, parece que nasci torta. Bjs

aeronauta disse...

Que bonito seu comentário, Paulo, e que saudades de você e de nossas prosas! Bjos.
M., parece que todos nós, seres estranhos, nascemos tortos. Bjos.

Bípede Falante disse...

Tão luminosa aero, moça nuvem de céu azul e de céu de luas, contemplar sua escrita é contemplar harmonia.
Beijoss :)

Lidi disse...

Ângela, minha amiga, eu me identifiquei totalmente. Acho que sou mesmo "essas mãos que não ficam bem no bolso, nem soltas". Bjs

Anônimo disse...

Calma, amiga!
Você não está sozinha.
Eu, tabaréu convicto, sei bem desses sentimentos, desses desajeitos de, a depender da ocasião, não saber sequer onde por as mãos, onde fixar o olhar, se senta, se levanta e até mesmo de uma certa dislexia, uma falta de assunto incomum até no
mais bobo dos bobos.
Quando da minha adolescência, o limite de minha desenvoltura era a ponte do fertém. Passando dali eu era mais um retardado nesse mundão de meu Deus.
Não se espante!
Melhorei um pouquinho.

Abraços,
Anônimo I

aeronauta disse...

Anônimo I: adorei! Morri de rir com "a ponte do fertém".
Lidi: que bom, amiga, que não estou sozinha nessa "festa".
Bípede: gosto muito de suas visitas, seus comentários.
Bjos a todos.

Sandra disse...

Quando terminei de ler esse escrito seu Ângela tive que engolir um ar seco dos que afirmam sem palavras o que acabaram de ouvir(ler). São tristes esses momentos em que temos de nos violentar em prol de "uma postura" aceitavelmente sociável, para parecer "normal"!!! Ainda bem que descobrimos a tempo...que não fazemos parte disso...ufa!!! Agora podemos nos entender melhor, nos aceitar de fato e quem quiser que faça o mesmo...kkkkkk. Caso contrário, existirão sempre pessoas especiais(e bem mais interessantes) como as que visitam você sempre, ou que por presente de um destino "torto" cruzam o nosso caminho. Abraço!