terça-feira, 19 de junho de 2012

a verdade âmago


Não tenho dúvidas que o grande livro de Clarice Lispector é A Hora da Estrela. O meu exemplar, presente de uma pessoa querida, traz a data: "17.11.90". De lá pra cá já o percorri muito, e possui rabiscos feitos a lápis, anotações de vários tempos, várias leituras. A cada nova leitura o livro se ergue, cada vez mais. A cada nova leitura, percebo mais a genialidade de quem o escreveu. Tenho minhas conhecidas brigas e implicâncias com Clarice, mas nesse livro ela consegue a unção absoluta, o momento divino da iluminação; e tal  iluminação nos pega em golpe, como um soco no estômago e uma felicidade. O livro - sabe disso quem o leu, claro - é a construção do livro; Macabéa e Rodrigo S.M., seu autor, são personagens, e Clarice é Deus - aquele que cria destinos, faz nascer e faz morrer.
Hoje mais uma vez percorri A Hora da Estrela inteiramente, me deliciando ao constatar tamanha genialidade ali inscrita. Na página 78 parei e fiquei pensando muito, ao ler esse trecho:

"Sim, estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém.Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse:

- Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém, todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha." (grifo meu)

Como não se deter diante desse grito?
Como não emudecer o corpo e pensar?
Aliás, como não roubar para nós essas palavras que o autor queria que Macabéa pronunciasse?
Ora, somos sozinhos no mundo, e todos mentem.
Cadê e o que é a verdade?
Nenhum ser, de fato, fala com o outro?
É mesmo: a verdade só me vem quando estou sozinha (não, não vou aspear).
Sozinha, vejo todas as mentiras. As minhas, as suas, as vossas, as de todos. Vejo os hiatos que nos distanciam. Somos péssimos atores, canastrões. E burros: achamos que não somos vistos.
Oh vejo sim sua mentira, é doce e eu acredito nela, minha amiga. Vês? Acreditas também nas minhas.
Meu amor, te vejo nu, todos os dias; não adianta vestir-se.
Mãe, jurei sempre dizer a verdade quando me ensinaste o pai nosso. Mas só digo a verdade dentro de mim: ela vem enorme, principalmente antes de dormir. A verdade inteira, sem palavras, sem imagens, sem signos: nem literatura nem cinema; a verdade âmago, como diria Clarice.


Imagem: capa do meu exemplar. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 9a edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

6 comentários:

Anônimo disse...

Talvez seja por isso mesmo que a solidão seja um grande perigo; um promissor abismo. Sozinhos somos verdadeiros a ponto de não suportarmos este fardo: "a verdade âmago".
Lindo isso, Ângela: "Sozinha, (...) Vejo os hiatos que nos distanciam"...
Diria mais: às vezes, sozinhos, nos enojamos de nós mesmos. A verdade é essa! Sem querer botar lenha na fogueira (rs).

Abraços,
Anônimo I

aeronauta disse...

É mesmo, Anônimo I: é um perigo estar só. Estar só leva ao endoidamento (rs). É difícil aturarmos nossa própria presença em nós: dá gastura. Bjos.

Anônimo disse...

Aero,

Você não se lembra daquela música que dizia assim: "Mente pra mim, me ajude a viver"...? Forte isso, não?
Parece-me que a mentira é uma necessidade humana, tal qual água, oxigênio e comida.
Poucos suportam a verdade.
A tal música diz ainda mais: ..."mas diz a verdade com jeito pra não machucar"...
E assim, "de quimeras mil" (como em Luzes da Ribalta), vão-se erguendo castelos mundo afora.
Quer saber? Eu adoro a tal música citada acima, que apela pela mentira da mulher amada. Afinal, "...sonhar é melhor que sofrer".(Rs)

Abraços,
Anônimo I

Anônimo disse...

SOCORRO, AERO!

Não é Luzes da Ribalta. A dita frase, "de quimeras mil", é da música Fascinação.
Se possível, conserte pra mim, por favor.

Grato,
Anônimo I

aeronauta disse...

Está consertado, Anônimo I, por você mesmo.(Me desculpe, mas adorei o pedido de socorro; por isso publiquei-o.)
Essas músicas todas são bastante interessantes, fortes, como você diz. Tem uma de Cazuza: "Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão". Maravilha. E depois a gente ainda quer bater num mentiroso (rs). Tem mentiras que salvam toda uma vida (clichê essa frase, mas verdadeira). Abraços.

Sandra disse...

"Mas só digo a verdade dentro de mim: ela vem enorme, principalmente antes de dormir. A verdade inteira, sem palavras, sem imagens, sem signos: nem literatura nem cinema;"
Corajosa você Ângela(como já mensionei aqui uma outra vez), eu mesma, nem antes de dormir a digo. Às vezes ela me enfrenta nos mais inusitados momentos, certamente porque percebe que fujo dela quase sempre...lindo escrito!