sábado, 5 de dezembro de 2009
sem trégua
Voltei ao antigo lugar onde trabalhei há vinte anos atrás. Estava tudo quieto. Na sala onde ficava a secretaria, ao invés dos móveis de aço havia uma cama de madeira, velha e puída. Nela uma senhora deitada com um vestido florido, pálida, tentava dormir. De sua presença exalava o odor das doenças impossíveis, sem trégua, sem compadecimento, sob um chão sujo, amarelo, e paredes úmidas. Saí imediatamente e fui andando pelo corredor, em busca de algum outro cômodo aberto. Tinha: o lugar onde as crianças faziam as refeições. Antigamente era uma sala larga, repleta de pratos e copos azuis, aberta para a cozinha. Agora apenas mais um quarto. Nele outra doente, com uma roupa branca, deitada numa cama de hospital. Tudo naquele lugar emanava sujeira e abandono. Quis fugir dali o mais rápido que os meus pés pudessem. O ar pesado, porém, me fazia arrastar pelo cimento. Andei mil anos até chegar ao portão. Antes de abrir o cadeado, ouvi uma voz conhecida vinda do primeiro quarto. Resolvi voltar e constatei mãe, bastante compenetrada, limpando o chão imundo com minhas melhores roupas.
Imagem: "Sueños", por Yolanda Carbajales.
(www.flickr.com)
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14 comentários:
Aeronauta, você mantém a classe até nos sonhos imperfeitos. "O odor das doenças impossíveis" me impregnou e senti a mesma necessidade de fugir do texto. Fiquei firme até o final. Fui pego de jeito no final.
P.S. - Eu li praticamente todos os seus posts. Não tem um que não me pegue de jeito.
Beijos
É incrível, cada texto melhor que o outro. Este foi de arrepiar, impactante.
É um sonho perfeito ou um pesadelo incômodo?
Aero, você se supera!
Grande, grandíssimo continho.
Que realidade, quase sentí o cheiro desse conto/sonho sensacional.
Nossa! Fiquei um tempo afastada dos blogs e ao votar, já me deparo com um texto desse. Vir aqui é sempre muito bom mesmo. Como alguem já comentou, realmente impactante. :-)
Brilhante!
fiquei mudo. fiquei cego. fiquei louco.
Muito bom mesmo esse texto. Tb fui pego de surpresa no final. Onírico, profundo. Concordo: mais um grande momento da Aeronauta, seu.
Querida Aeronauta,
Vira e mexe, venho por aqui. Mas sou uma tímida irremediável e nem sempre comento. Porém consumo tudo avidamente, feito café no ponto exato.
Adoro sonhos anti-freudianos. Sonhos de gente de verdade, sonhos de nossas doenças grandes e pequenas e sem explicações fáceis, sem comprimidos fáceis, sem interpretações. O sonho, por si, como delírio em sua potência de mundo!
Ângela, nem sempre eu comento, sempre eu leio, sempre me pega de jeito.
que texto!
Gostei muito do conto. Uma história que em poucas linhas já cativa e prende o leitor. Começo, meio e fim, tão curto e intenso o texto, acabam por se confundir, não em disposição, mas em grau de valor textual na estrutura de um conto. Três situações, no entanto, me incomodaram. Logo no início, por que não evitar o pleonasmo de "há vinte anos atrás"? escrevendo apenas "Há vinte anos"? A outra situação é o uso do adjetivo "puída", para o substantivo cama. Não sei como uma cama pode estar puída, uma vez que puído é aquilo que está gasto pela fricção... É necessário que seja algo de pano, de tecido, enfim... Se vc dissesse que o cobertor da cama estava puído... E por fim, a terceira situação diz respeito à frase "De sua presença exalava o odor das doenças impossíveis, sem trégua, sem compadecimento, SOB um chão sujo (...)". Bem, queria entender o que está sob o chão... Não seria "sobre o chão"? Abç. Henrique Wagner
Angela, não tenho seu endereço virtual, portanto, segue por aqui mesmo uma "notícia": comprei para vc o livro a biografia do Herberto Salles escrita pela Ívia Alves. Fui lá no bar do Santos, onde o livro estava a venda, apenas para confirmar a sua passagem por lá. Mas ao ver que o livro ainda estava na vitrine, resolvi comprar logo. Moro no 2 de Julho, portanto, bem perto de vc. Isso significa que quando vc quiser o livro é só me avisar, me mandando um mail... Meu endereço é henriquepwagner@hotmail.com Abraço. H.
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