quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Diário Arcaico


Como despedir-me de mim,
Antiga, vestida com um capote
Bordado por minha mãe?
Eu, no seu colo, tinha os olhos
Espantados para o mundo.
Ali eu me esquecia de quase tudo
Até das bonecas, que só mais tarde
Esqueceria de verdade.

Conseguirei despedir-me pra sempre
Daquela gente que rodeava a praça
Para um retrato histórico?
Era um mero batizado
O sol turvava meu rosto
E eu tentava aprender, a custo,
Como desviar-me dele.
O vestido que eu usava era branco,
Curto, com uns bordados invisíveis
Pelos cantos, em círculos.
Eram bastante nítidos
Meus três anos de idade.

Conseguirei, um dia, desviar-me
Daquela menina esquisita
Que eu, na vida, me transformara?
Irrequieta, quieta, morta e viva,
Alegre e triste, etérea e pálida?
E que andava sozinha pelo mundo
Embriagada pelas vontades mudas?
Conseguirei, de verdade, ignorá-la?
Ela que sempre me acompanha
Insólita, pelas tardes, sem nenhuma fala?...

Conseguirei, às noites, ver-me de novo
Deitada no berço, em meio à coberta
Que era do meu tamanho?
Era sempre uma noite longa
Era sempre uma noite alta
E o sono me entorpecia
Trazendo-me de volta
Transparente, esquecida
Para o dia que longo vinha.

Amanhecia, e eu adorava
Ou nem sabia que adorava.
Conseguirei despedir-me desses dias?
Conseguirei avistar-me, sozinha?
O que fazer, se isso acontecer?
Correr, ou abraçar-me,
Ou finalmente morrer?
Poderei reaver meus vestidos
Para descobrir alguns segredos?
E se não houver segredos?
Como, enfim, tarde ou cedo,
Deixar-me, ou levar-me, com a face
Desaparecida nos espelhos?


(Salvador, 28.08.05)

Imagem: "Traços sobre vermelho", por Maria Fernanda P. Barreira.
(www.flickr.com)

13 comentários:

Anônimo disse...

Essamenina... escreves de me deixar entalada, comovida com as preciosidades da escrita.

Gerana Damulakis disse...

Nossa, aero, um poema contendo a questão essencial sobre a vida:O que fazer? Parabéns!

Futeboleiros disse...

Grandeza, profundidade, pureza, verdade. Ângela Vilma, imensa, imensa, imensa. De joelhos, (carlos barbosa)

Janaina Amado disse...

Eu li assombrada este poema lindo, que me toca direto o coração. E quando fico assombrada assim não sei dizer nada. Só agradecer. Obrigada!

M. disse...

Como a Janaina, eu preciso agradecer por você me proporcionar a leitura de um poema tão intenso, tão lindo. Beijos

Anônimo disse...

Belíssimo e inquietante poema.

Lidi disse...

Aero é Aero! Admirável...
Um beijo e até mais.

Anônimo disse...

O poema é lindo, muito bem escrito, com versos de uma eufonia maravilhosa. E o momento em que o poeta se intimida diante da possibilidade de não existir segredo algum senão na imaginação dele é um grande momento, o da virada para o clímax, dentro daquele pensamento renascentinsta do silogismo no final de um poema... O que me incomodou no poema foi o verso final, que não é muito original. Cecília tem pelo menos dois poemas com esse verso, ou parecido com ele... Henrique Wagner

Bípede Falante disse...

Que inspirado e inspirador...

Marcus Gusmão disse...

Bela infância, Aero!

em.dor.fina disse...

"Embriagada pelas vontades mudas"
Muito bom!

Unknown disse...

Desculpem-me, se neste momento não posso ser original.Mas não encontrei palavras para descrever minha reação ao ler este poema.
Só sei que "chorei, chorei até ficar com dó de mim."
Aeronauta, você é mesmo uma garimpeira. E garimpou esta preciosidade, Mônica Menezes; e nos presenteou com esta jóia, "Diário Arcaico".

Abraços

Nilson disse...

Grande poema de imagens tão belas e cadência e sonoridade tão envolventes! Só agora leio, daqui de Brumado, de volta aos blogues. Concordo: um assombro!!!