terça-feira, 5 de janeiro de 2010

"rito de passagem"


Ontem alguém me perguntou "onde passei a ilusão". Tranquilamente respondi "passei em casa". Não quis alongar-me na conversa (ultimamente ando com muita preguiça), mas passagem de ano é tudo, menos ilusão. O imaginário coletivo já cunhou há muito tempo no mundo esse símbolo: não há como retirá-lo de nossa psique. Portanto, é um recomeço, não tem jeito. A ilusão, acredito, está na repetição dos festejos - que, como todo lugar comum, perde a força. Hoje tenho o maior constrangimento em desejar feliz 2010 a alguém: não acredito na frase, apesar de desejá-la verdadeira; a frase nega a veracidade de minha alma. A frase banalizou-se, virou comércio. O que fazer, meu Deus, com meus sentimentos? Quais palavras dirão ao menos um pouco deles? Nenhuma palavra conseguirá. Por isso fiquei muda nesses dias. Fiquei muda, sem uma palavra que significasse o símbolo - o símbolo, pois não há como retirá-lo de mim. Claro, é recomeço; e não é só o calendário proclamando isso, é minha alma muda.
Porém, como todo recomeço, é recheado de repetição. Afinal tudo se repete... Ser condenado a se repetir, a tomar banho todos os dias, a comer todos os dias, a dormir todos os dias... essa coisa cíclica é um filme de terror. Conheço todos os caminhos da segunda, da terça, da quarta, de janeiro, fevereiro, março... Mas minha alma insiste no símbolo. O símbolo da transfiguração, da mudança, do divino. Nunca nem vi alma do outro mundo, mas intuo. Intuo constelações de felicidades amenas em outras almas que vejo, por aqui mesmo. Acredito, ah, acredito na felicidade. Há coisa mais piegas?, Acreditar na felicidade? Há coisa mais grave? É tudo mentira, eu sei. O que ainda não aprendi é rastrear com acuidade e inteligência essa mentira.


Não se iluda, a vida dos seres humanos, tanto na dimensão coletiva quanto na individual, é sempre montada sobre um mito, sobre uma lenda, sobre uma mentira, enfim. (Juan José Millás, in "Laura e Julio")



Imagem: "Fada da ilusão"-MysticalBlessing-2000, por tatinha2007.
(www.flickr.com)

10 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Nem sei mais o que dizer:baita texto!!!

Janaina Amado disse...

Oi, tenho sentido sua falta lá no meu espaço! :-)
Fingere, do latim, significa fingir E inventar. Eu acho que você não só sabe inventar, como expressa lindamente o que inventa.

Anônimo disse...

"Acredito, ah, acredito na felicidade". Ponto.
beijos de Maria

Anônimo disse...

apareceram umas mensagens doidas que não sei se meu comentário foi ou não. Repito:
"Acredito, ah, acredito na felicidade." Ponto.

Andréia M. G. disse...

Sim, mais um recomeço. Eu acredito na felicidade e não acho piegas. Pode ser até uma mentira, mas eu me sinto feliz. Talvez eu viva iludida, quem sabe... O nome para a coisa é que menos importa, o melhor é o sentimento. Me sinto feliz, seja lá o que isso possa ser. Gosto muito de vir aqui ler seus textos, sejam expressão do que vc realmente sente ou alguma verdade inventada ou uma mentira feliz, quem sabe... rs :-)

Anônimo disse...

Sabe aero, no dia em que nos encontrarmos talvez fiquemos calados por um bom tempo. Eu, você e o silêncio. E estaremos nos entendendo perfeitamente.

Sergio Storino disse...

Gostei do texto, mas mesmo assim não vou deixar de desejar um 2010 cheio de boas surpresas para você. Se você puder dar um pulinho lá no blog, leia o miniconto que postei :) Um grande abraço.

Vivz disse...

Eu ando com preguiça até de acreditar, rs. Lindo seu texto, pra variar!

Perdoe-me pela ausência, amiga. SAUDADE IMENSA daqui e das suas visitas!

Abraço super apertado.

Bernardo Guimarães disse...

era isso que eu queria escrever e não soube. agora sei.

Nilson disse...

'Constelações de felicidades amenas': genial!