
Tinha sete anos
e minha mãe me dizia
que eu não era mais criança
Enquanto construía em meu cabelo
degraus de uma enorme e infinita trança.
Aos seis anos
Acordei numa manhã de chuva, sozinha.
Mãe tinha ido ao rio buscar água.
Saí, enlouquecida, pelas ruas molhadas
chamando por mãe, e caí numa poça d'água.
Ali ela me encontrou, encharcada de lágrimas.
Pai comprou para mim uma sacola
cheia de lápis de cor e um caderno.
Era o meu primeiro dia na escola.
Não sei quem foi que me levou
e lá me deixou, fora do mundo.
Sei que chorei, chorei muito
e chamava por mãe, em desespero,
molhando, inteiro, o caderno de desenho.
Ainda tinha seis anos -
como duraram meus seis anos! -
quando mudamos de rua.
A rua da ilha nos esperava
com um rio de cada lado.
Nos desamparos de dezembro
só nossa casa se salvava
das chuvas nefastas.
Só nossa casa se salvava
Enquanto o mundo e as outras casas
caíam. Foi assim muitos anos.
Mãe tirando as goteiras
Pai tomando remédios
Nós observando a chuva.
Foi assim muitos anos.
Mas tantas foram as dúvidas
E tantos foram os sonhos
que todos, um dia, fugimos.
O que restou nessa casa
são só fantasmas antigos.
Ah, mas nos meus quatro anos
nos mudamos para Andaraí.
Eu e minha irmã vestíamos,
como se fôssemos iguais,
o mesmo macaquinho preto
com várias bolinhas brancas.
Fomos de caminhão, no fundo,
Juntas com toda a mudança.
Nós duas nos misturávamos
Aos parcos móveis, na carroceria.
E fazia sol, é bom lembrar
quando chegamos à cidade.
Descemos na casa de seo Augusto
E tudo era tão grande, e tão curto
Que apenas lembro o vulto
de um menino na cozinha
Brincando, sozinho, em meio
Àquela casa vazia.
É só essa a imagem que ficou
como lembrança daquele dia,
primeiro dia em Andaraí:
Um menino na cozinha.
Onde estará esse menino?
Existirá ainda essa cozinha?
Eu chorava o dia inteiro -
Disso eu bem me lembro.
Só não sei por que chorava.
Derretia-me em lágrimas.
E todos os dias, de suas casas,
os vizinhos esperavam
o meu choro pontual.
Chorei a minha infância inteira.
E tinha medo do escuro,
De ir para a escola,
De mãe me deixar,
De pai não voltar,
De minha irmã me bater,
De não conseguir entender
Tanta coisa!
Como, por exemplo,
um homem apanhando.
Vi isso aos nove anos
Da janela lá de casa.
A rua toda olhava
com enormes olhos parados.
Ah, e eu tinha um ano
E vi pai saindo por uma estrada
Que dava para São Paulo.
Enquanto mãe lavava roupa, nessa tarde,
Minha irmã se descabelava,
aos dois anos, de saudade.
E o horror era tamanho
que eu roubei essa sua lembrança
como se rouba um triste sonho.
(Salvador, 17.05.05)
Imagem: "Regreso a mi infancia", por Alitas.
(www.flickr.com)