segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
Amor
Mãe amaciava bem o fundo do copo de alumínio na cabeça - cabelo oleoso, diga-se - e passava sobre o imenso pano branco sobre a mesa. De lá iam surgindo flores, crianças, paisagens. Depois colocava tudo isso dentro de um bastidor. Sentava-se numa cadeira, aprumava a agulha e as inúmeras linhas coloridas e ia bordando aquele mundo de imagens, com extrema delicadeza. Bordava todos os nossos vestidos. Os lençóis, as fronhas. As toalhas de mesa, os panos de prato. E ia pondo iniciais em todos os cantos, inclusive nos bolsos das camisas de pai. Não se via breguice nisso, mas amor. Um amor que nascia inicialmente do óleo do seu cabelo - que o copo de alumínio revelava no pano branco. É escusado dizer que sob o pano estavam as imagens escolhidas por ela. Nunca me esqueço do homem carregando uma carrocinha de flores, bordado na frente de nossos vestidos. Essa imagem me acompanha como um destino: sem revelações claras, mas com estranhas promessas. Eu vestia com felicidade aquele curto vestido e abaixava as vistas para pode olhar as flores, a carroça, o homem: nessa difícil perspectiva de olhar ia compondo histórias, em fragmentos. Ah, como o adorava... Tinha uma barra delicada, de renda, colada sobre o pano verde, cheio de listrinhas tênues. Hoje penso que minha infância foi esse vestido, sempre tão novo, lavado com muito cuidado, passado a ferro e guardado no armário, para ser usado somente aos domingos, ou em batizados e festas de largo.
Imagem: "Bordado da tia Iracy", por Sônia Bianco Artes.
(www.flickr.com)
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7 comentários:
Aeronauta, quanta ternura...
deslumbrante, não conhecia esta forma de "debuxo". Tudo lindo.
Quando eu digo q vc tem tudo aí para escrever o seu O Mundo. Delícia de texto, aero.
Gostei muito muito muito deste texto, ele me deixou comovida e leve. Que capricho, de bordado e texto, de bordar o texto.
como o vestido infinito, como sempre, como amizade que é forma de amor dos melhores... fui levada pra tua terra, pras nossas prosas, pra tua mãe e lembrei, voltando no fechar do círculo, do teu vestido infinito... beijos, querida.
minha mãe também é bordadeira, lembro de colchas de cama e de vestidos lindos bordados....
beijo
Viajei nessa infância bordada no vestido. Quanta delicadeza!
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