quarta-feira, 15 de setembro de 2010
o desaparecimento das coisas
Sinto-me bastante comovida com o desaparecimento de alguns objetos. Remando contra, minha casa os acolhe. Acolhe meus bolachões, agora meus cds, que já estão virando algo do outro mundo. O que considero mesmo do outro mundo é o desparecimento das coisas. Para que eu vou ficar com um fone no ouvido se eu posso ligar o meu som e ouvir, deitada no sofá, a minha musiquinha? Para falar a verdade nem o controle remoto do som eu uso. Preciso, isso sim, é usar meus sentidos, tocar nas coisas: comprar o cd, abri-lo e colocá-lo pra funcionar, com minhas mãos, minhas mãos, e meu corpo em pé, em movimento. Nesse ínterim nostálgico, que falta me faz escutar os bolachões na minha radiola quebrada, sem agulha. O chiado é componente indispensável de um momento da vida que se inscrevia na voz de Legião Urbana, Lulu Santos, Caetano e Roberto. Mas guardo meus vinis, guardo-os; acharei um dia uma agulha nesse palheiro infernal que virou o nosso mundo tecnológico frio e desumano.
Não tenho nada contra o data-show, mas por favor, nas minhas aulas deixem-me usar meu lindo e mágico retroprojetor. Enquanto lemos poemas sentam-se nele, na transparência vista através de sua luz difusa, algumas mariposas, besouros, seres completamente embriagados. Sem contar que a sala ganha um escurinho de cinema e todos nós adentramos numa intimidade de alma, feérica, mística. Percebi que meus alunos já não gostam da claridade, assim como quem já se permite conhecer os mistérios do mundo. Então a luz do retroprojetor alia-se à penumbra intimista dos poemas, e todos acabamos nos encontrando naquele lugar onde há acolhimento, descanso e algo muito próximo à felicidade.
Até agora resisti a esse negócio de telefone colado ao corpo. Como disse lindamente Kátia Borges num poema, "eu venho de um tempo imóvel"; por isso não consigo entender como as pessoas são felizes com um celular pendurado no ouvido, falando em todos os lugares: na fila de supermercado, nos escritórios, no elevador. O celular é uma das piores pestes da humanidade: algo pequeno, indiscreto, inoportuno, e que faz a gente estar disponível em todos os momentos para o mundo. Como fugir, depois do celular? Muitos dizem: é só deixar desligado. Ora, desligado por desligado é melhor não tê-lo. Mas o mundo, como um grande algoz, está aí lhe cobrando um celular: você precisa ser encontrado, pois você precisa preencher formulários, ir a uma reunião extraordinária, enfim, você precisa estar a postos, semper parata como falam as bandeirantes.
Outro dia estava assistindo a um documentário sobre La dolce vita, de Fellini, e foi dito o quanto Marcello Mastroianni gostava de um telefone. Por isso em todos os cenários do referido filme tem um telefone à espreita. E o personagem Marcello Rubini fala mesmo, toda hora ele vai em busca do aparelho - que está sempre pendurado numa parede, imóvel, preto. Mastroianni alcançou o celular, já que morreu em 1996. Mas será que a fixação dele por telefone continuou ou continuaria com o celular? Tenho certeza que não. Primeiro porque aquele telefone antigo de colocar moedas tem um aparato estético, e que nos atinge inconscientemente. Não era, portanto, só o gesto de estar conectado ao mundo enquanto gravava; tenho certeza que Mastroianni era maior que isso em sua relação àquele aparelho que necessitava de um certo esforço de quem o usava, ao "puxar" os números; sem esquecer o sonzinho arrastado dos números circulando: tudo isso é algo maior, mais belo. Não tem comparação, pois, com os sons que trazem os celulares: gato miando, cachorro latindo, fiu-fiu e toda espécie de dejeto musical.
Ah, o quanto tenho sofrido ultimamente com o desaparecimento dos orelhões. Já repararam que eles não existem mais? E quando existem estão mortos, quebrados, detonados? Ora, o mundo pergunta, para que orelhão se todos têm celular? Eu não tenho, respondo com força. Até quando?, o mundo grita, num eco medonho e autoritário. Respondo apegando-me a Deus e pedindo-Lhe, numa oração infantil, que me livre dos celulares; primeiro consertando todos os orelhões; depois desmanchando essa pressa cruel que o mundo tem de nos usar como máquinas e de nos perturbar. Além do mais, meu Deus (e agora isso aqui já é uma oração adulta), ajude o homem a desistir de, além de desaparecer, diminuir os objetos: daqui a pouco em que tocaremos? O nada terá a textura do ar?
Imagem: "cena antiga". (www.google.com.br)
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9 comentários:
Lindo, lindo, lindo. Bjs.
Lindo, muito lindo. Bjs
Há certas coisas que se pode dizer: "Fizemos bem em resistir".
Era uma vez eu menino com um disco de goma-laca de pai, aquele de 78 RPM, que foi substituído pelo LP, e este pelos CDS etc,no meio da rua atirando-os no ar, onde ficou perdida aquela minha canção, e meu pai, e parte de mim.
Linda composição.
Abraço.
Retroprojetor? E você reclama do datashow? Meus filhos têm aula em lousa digital! Não tem mais como puxar o saco da professora e apagar o quadro-negro!
Quanto ao celular, eu odeio telefone, quanto mais celular. Mas uso por dever de ofício. E ultimamente arranjei uma utilidade para ele. Leio os blogues amigos de noite, deitado na cama. Só não consigo comentar em alguns, mas tenho me divertido bastante.
O seu desaparecimento das coisas me fez lembrar da invisibilidade das pessoas nos contos do Mayrant.
Muito bom!
beijo.
De uma consciência avassaladora das coisas. Muito bonito. Até de perdoei por não te achar fora do recôndito de sua casinha-memorial.
Um beijo!
A nossa Casa Lilás, mesmo com a cor da espiritualidade, como costumas dizer, não resiste ao vazio das coisas e, em meio a ele, agradece a presença do intruso famigerado. Mesmo preocupada com a devastadora solidão da casa - e aqui o termo "devastadora" aplicado em sua plena acepção -, sinto-me levemente culpada, ao ler teu texto, pelo incentivo à aquisição do aparelho.
Um cheiro!
Bela reflexão sobre esses nossos tempos. Orelhão é realmente muito mais poético que celular!
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