terça-feira, 10 de maio de 2011

apontamentos


Já vesti sabugo de milho. Foi quando eu era criança e vivia na roça. A vizinha que morava em frente fazia as roupas dos bonecos em sua máquina de mão. Lembro-me de mim brincando sozinha no milharal. E de um boneco com cara de gente, com sentimentos de gente. Nem imaginava ainda a existência de Visconde de Sabugosa, mas este já vivia ali nas minhas mãos de Deus. A maternidade como signo eterno também ali se cristalizava, nas mãos que entendiam aqueles bonecos tão feios. Lembro-me também de um sentimento absurdo de solidão, que àquela época não tinha ainda a fisionomia que hoje tem, mas que já se transmitia em mim em forma de medo. Meus seis anos alimentavam um medo enorme de homem fardado. Macabéa já em mim se instalava com uma força trágica. Tantos personagens me habitavam. Isso talvez explique meu medo do fole que mãe usava para passar ferro. Um dia meti meu pé no fole e um prego entrou bem no meio do meu pé. Estranho é sentir felicidade com a dor; pois foi essa a minha estréia no universo do amor, dos sentimentos ambíguos; pra mim esse acontecimento tem a equivalência de, pela primeira vez, abrir um livro. Um prego no pé desencadeando, portanto, sangue, choro e alegria. A dor traz a promessa do carinho, eu já sabia de muitas coisas, como todas as crianças pressentem. A magnitude terrível do amor é uma delas.
Depois, aos dez anos, pai ditava sua biografia para mim que a escrevia num caderno velho, pautado, fino. Não tive o menor cuidado com o caderno, que se perdeu para sempre, mas lembro-me com nitidez a sofreguidão e a felicidade com que pai a ditava, o sentimento de heroísmo que vinha em suas palavras, aquela certeza indubitável que todos têm de que suas vidas dão um livro. Pai sempre foi para mim a imagem do literário: lia todas as noites e a sua boca se mexia, produzindo murmúrios. Ele não lia com os olhos, lia com sons saindo dos lábios. Eu ouvia do quarto os murmúrios, que me acalentavam perante o medo do escuro e dos defuntos, medo de não conseguir dormir, de enfrentar as noites em claro. O livro que ele lia, pois, era já para mim uma ponte para outro mundo.
Mas nem sempre foi assim: um dia enfrentei o vazio, a perda, o oco, o que chamam de nada.

8 comentários:

Nilson disse...

Belas imagens, a menina, o sabugo, a biografia do pai, o pai a murmurar um livro. Esse jeito Aeronauta de falar de solidão com um lirismo absurdo. E que bom ver novos textos por aqui. Tô tentando o mesmo lá no Blag.

aeronauta disse...

Oi,Nílson, bom te ver também por aqui. Obrigada pelas leituras, sempre tão sensíveis. Grande abraço.

Anikulapo disse...

tanta simplicidade e candura nos seus textos moça. quanta dor solidão e lembranças belas. Brilhantes os seus textos, nos levam a cenários de eterna paixão.

Moniz Fiappo disse...

Parece filme. Triste, é certo. Porém de uma beleza infinda.

Flamarion Silva disse...

Tão angustiante o final. É isso o que é essa persona de agora? Desde o início do seu texto percorri o lastro caudaloso de uma vida, de outras vidas, que poderia parecer triste e solitária, sem graça, mas julguei-a rica em essência. Queria saber como é esse fole de passar. Mãe passava nossas roupas com um ferro de ferro, onde se lhe metia brasa, metia-se a boca perto do buraco e assoprava, e passava a roupa. Mas passou...
Seu texto é muito forte; raízes de uma árvore ainda bem plantada...
Beijo, Aero.

aeronauta disse...

Anikulapo: meus textos trazem, de fato, sempre dor e solidão, e paixão. Não sei se são "brilhantes". Obrigada pelas palavras.
Flamarion: não lembro direito a missão do fole, se era para guardar brasa, não me lembro; vou perguntar isso a mãe e depois respondo isso pra você.

Anônimo disse...

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