terça-feira, 3 de maio de 2011

Celeste


Os mortos envelhecem?
A morta mais antiga de que tenho conhecimento é Celeste.
Esse nome soa na minha memória com a mesma dor em que o ouvi pela primeira vez.
Tinha eu nove ou dez anos, e soube a história dessa infeliz criatura. Celeste tinha minha idade de então, e um dia começou a sentir dores nas pernas. O pai, enfermeiro, nem imaginou que o destino da menina já começava ali a botar em prática seu fel, próprio de todos os destinos humanos. A menina ia para a aula de educação física e lá não conseguia movimentar-se. A professora, como sempre irascível, gritava e lhe prometia uma caderneta cheinha de faltas caso não fizesse o exercício direito. E Celeste, que sempre foi branca como as nuvens do céu, deu-se a ficar pálida, de uma palidez que só os moribundos sabem com profundidade.
Não a conheci, é fato, apenas ouvi essa história contada por sua irmã mais nova, Aninha. Aninha, de nossa idade, nos contava a história sempre, e nós a ouvíamos com a mesma dor e revolta, essa que nunca conseguirá mudar os ditames do mundo.
Celeste foi piorando, piorando, e o pai levou-a para São Paulo. De lá, a menina voltou corada e gorda. A cidade começou a dormir mais aliviada, afinal a cidade sofria com tudo aquilo. A menina era nova demais, não merecia, os jovens merecem pele corada, saúde, vida. E era isso que Celeste exibia agora.
Oh vã, traiçoeira, sarcástica, astuta vida.
A menina, de corada e gorda, de repente ganhou de novo a palidez. E foi definhando, coitada, num ritmo acelerado. E pior: sabia que iria morrer, e gritava ao pai, seu grande amor, que não a deixasse ir, que ela era jovem, que ela tinha medo de morrer. E gritava isso na janela, e as pessoas que passavam ouviam, e todo mundo parava para assistir àquele drama, aquele drama sem remissão. E o pai e a mãe na janela chorando com ela, abraçando-se a ela, sem deter a morte que a espreitava, zombeteira, do outro lado da rua, já tão perto de casa.
E logo Celeste morreu. De leucemia, doença que ficou gravada na minha memória como o maior mal da humanidade.
Eu era criança, Celeste já havia morrido, eu não a conheci.
Mas essa noite sonhei que ela estava completamente envelhecida.
Disse para mim que assim estava porque morreu há muitos anos, muitos anos...
Ao falar, sua voz quase não saía de tão longe, exibindo-se pra mim em fotografia amarelecida, rosto a se desfigurar e a se perder, para sempre, no vácuo.

5 comentários:

Bípede Falante disse...

Os meus não envelhecem. Este ano fará 14 que a minha mãe morreu, e eu sigo sonhando com ela exatamente como ela era. Meu pai, levando em consideração a diferença de idades dos dois, viveu 20 anos a mais que ela. Outro dia, sonhei com os dois e havia um descompasso enorme porque ela estava jovem e ele envelhecido. Foi tão estranho. Mas sonho que não for estranho, nem é sonho, né? :) beijos

Janaina Amado disse...

Muita saudade da sua escrita encantada. Que pergunta incrível, a sua: Os mortos envelhecem? Inspirou um monte de respostas e de outras perguntas aqui. Escrita boa é assim. Abração.

Jessica disse...

História muito boa,pena que não pode ser contada pessoalmente pela escritora, pois assim, toda história tem mais magia.
Beijos!!!!

ideia não tem a(ss)ento disse...

Li este texto mais cedo, pela manhã. Passei a tarde pensando em Celeste.
Isso é literatura!

aeronauta disse...

Bípede: pois é, os sonhos com sua estranheza nos permitem pensar com maior densidade a vida.
Janaína: que felicidade tê-la aqui, que saudade!
Jéssica: um dia, quem sabe, contarei essa história pessoalmente?
Ideia não tem a(ssento): que bom que Celeste conseguiu ficar no seu pensamento...
Abraços a todos.