quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

memórias de uma escrevente de cartório


Com a máquina de escrever não havia possibilidade de errar. A lei era do retrocesso jamais. Ah se naquela época existisse o famoso delete. Assim não seria preciso eu ir em busca do socorro último, aquele da invencionice. O juiz geralmente ditava a audiência rápido, eu tinha que acompanhar sua velocidade. O meu braço doía de tanto puxar aquele carro (uma espécie de alça) da máquina, para lá e para cá. Então, quando não conseguia acompanhar todo o discurso dele, eu inventava. Nada, acredito, que pudesse comprometer a lisura da audiência. Pois que nenhum juiz com quem trabalhei jamais percebeu tais invencionices; lá estava minha voz misturada com a dele. Era o jeito que eu encontrava. Cheguei a pensar que isso era arte exclusiva minha, mas tive a oportunidade de conversar com outras escreventes e elas me disseram que também utilizavam o mesmíssimo recurso.
Já disse que nessas ocasiões retrocesso nunca. Mas havia um outro mecanismo de socorro: o famoso "digo". Então, em meio a um equívoco datilográfico, o jeito era usar a tal muleta. Exemplo: "A comarca do muncpio, digo, município..." E assim, em tardes de muita atribulação de minha alma, era possível encontrar nas audiências batidas por mim uns duzentos "digo".
Nessa época eu era bastante infeliz, para quem só tinha vinte e três anos. A fim de compensar uma vida repleta de advogados, escrivães, oficiais de justiça e, pior, juízes, eu comia muito. Já que não tinha mais tempo de ler (a não ser clandestinamente, em meio ao trabalho sempre vigiado), eu comia. Descobri que uma vizinha vendia merendas no expediente. Fiz logo uma conta. Comia e pagava por mês. Sem contar que ao chegar em casa limpava a despensa. Engordei dez quilos. Aí foi que minha infelicidade aumentou a olhos vistos.
Não guardo sequer uma boa lembrança dessa época. A maior tristeza minha estava ilustrada na calça que não fechava, com o zíper a perambular no meio do caminho; jogava uma blusa por cima e disfarçava a gafe. E lá ia eu trotando a infelicidade pelas ruas.
Disse que não tenho sequer uma boa lembrança dessa época, mas estou querendo encontrar uma que seja. Onde, onde? Eu tinha que acordar cedo, a pior coisa do mundo. Trabalhava até meio dia e de meio dia para a tarde também. Onde, onde está essa boa lembrança que não acho? Talvez na minha idade, cheia de sonhos de um dia sair dali. Projetava minha vida adiante, como todo jovem sabe muito bem fazer. Eu fazia isso com mestria, no meio do expediente, totalmente aérea, como uma funcionária nada exemplar. Só que apenas transgredia liricamente, e nos raros minutos em que o escrivão e o juiz me deixavam em paz. Mas esses raros minutos agora dançam no teclado do computador como festa, e me agigantam como se eu tivesse sido, naqueles instantes tão pequenos, nada menos que Bartleby.

5 comentários:

Naiana P. de Freitas disse...

Adorei as "invencionice[s]"!risos..Quando eu tinha uns 12 anos,ganhei uma máquina de escrever antiga, bem-bem-bem antiga, sei como é esse negócio do braço doer...o bom é que eu só estava brincando de escrever e não trabalhando..olha ri bastante com o texto,muita leveza e um profundo questionamento!
abraço!

O Neto do Herculano disse...

Hoje, sendo servidor do Judiciário, espero não guardar muitas lembranças ruins futuramente, mesmo odiando participar de audiências.

Bípede Falante disse...

Não consigo esquecer o som das máquinas de escrever. É como o cheiro de café na cozinha :)
Adorei as memórias!
beijoss

Anônimo disse...

Delicioso texto. Sem sua permissão formal, mas contando com seu coração de ouro, vou levá-lo para o meu blog.
Bj

Lidi disse...

Queria ter a coragem de ser Bartleby. Bjs