segunda-feira, 4 de março de 2013

de todas as sensações



Lembro que meu corpo congelava, congelava, e eu tremia, tremia muito. Eu sentia dentro de mim a certeza da morte. E o maior medo do mundo, eu me pelava de medo. Sentia que era chegada a minha vez, era a hora de "descobrir", como disse um personagem de Mastroianni num filme de Zurlini. Partilhar a experiência da morte? Como? Com que linguagem? Impossível. Isso especulava Borges, enquanto que na minha infância mãe respondia me contando aquela história das duas comadres que combinaram contar como é lá quando uma delas morrer. Uma morre primeiro e vem contar como é lá; mas apenas diz: "Lá é lá, cá é cá". Portanto, mãe antecedeu Borges nas minhas leituras, ao me relatar esse causo: não há como partilhar essa experiência, pois ainda não morremos; e mesmo morrendo, acredito, também não contaremos, faremos como a comadre da história. Não há como partilhar o incognoscível. Eu sabia disso na cama daquele hospital, tremendo igual a uma vara verde, e congelando, congelando por dentro. Mãe perto de mim, forte, séria, pegando em minha mão, perguntava ao médico por que eu tremia, por que meu corpo estava todo frio. Mas o médico era longínquo e não respondeu nada. "Mas o que é que eu tenho?" Eu perguntava, nervosa e chorando... "Eu estou congelando por dentro, eu vou morrer". Enquanto isso, o médico escrevia numa receita azul, friamente, como geladeira ligada no máximo. Eu disse, chorando, de novo que estava morrendo, fiz um testamento oral para mãe, e o médico mandou me botarem no balão de oxigênio. Pensei "é o fim mesmo", pois toda vez que alguém em Andaraí vai para o balão de oxigênio é difícil voltar. Esperei a Passagem, mas pedi ajuda a muitos espíritos, pedi para adiarem o dia, a data, o momento. Passei três horas nesse transe de ir ou não ir, viver ou morrer. Mãe firme, segurando minha mão, rezando para seus santos que nunca lhe faltaram: São Cosme e São Damião.
Não sei porque estou relatando, em detalhes, isso aqui. Talvez por conta de uma sensação imensa de solidão; essa solidão de saber-se vivo, sempre temporariamente, sempre temporariamente.

4 comentários:

M. disse...

Nossa! Congelei lendo. Lindo e terrível. Bjs

maray disse...

a vida é isso mesmo: o temporário que a gente pensa querer eterno. Mas que lá no fundo, sabe que não quer. Ninguém aguenta o eterno.

Sandra Pereira disse...

Bom perceber Ângela, que nesse momento de angústia, de achar que o fim está próximo, ali, batendo a nossa porta...um imenso desejo de viver te tomou, intensa e fervorosamente. Isso é amor à vida. Abraço, querida!

aeronauta disse...

Abraços, queridas M., Maray e Sandra, pela força amiga.