Não sei quando se deu o primeiro momento, o primeiro toque, o alumbramento inicial. Não sei precisar a idade. Talvez aos seis anos mesmo. Talvez aos sete. Lembro da biblioteca. Pequena. Do Grupo Escolar. Da hora do recreio. Graças a Deus nunca tive aptidão para jogar baleado. E nunca tive aptidão para fazer amigos. Aliás, nunca tive aptidão para o mundo, graças a Deus. E ali, naquele espaço pequeno, tinha lugar para mim. Um lugar que ganhava dimensões, ficava enorme, à medida que eu abria os livros de Câmara Cascudo. Tinha uma tal história da Moura Torta...
Essas são as cenas do início. Minha irmã estudava num outro Grupo Escolar e assim podíamos trocar os livros que trazíamos emprestado da escola. Minha irmã gostava de ler, mas também gostava de jogar baleado, e de fazer amigos. Enfim, gostava do mundo. Por isso nossa troca não ia além de comentar as histórias lidas, e não compartilhávamos, sei, a medida do mesmo alumbramento.
Essa medida se inscrevia no amor ao livro enquanto objeto, não apenas enquanto história. Quando pai percebeu que gostávamos de ler e começou a comprar para nós os primeiros livros, minha irmã não cuidava deles, profanava-os. Eu comecei a não querer que ela lesse os meus, escondia-os. Ela acordava bem cedo, e ia ler, de pirraça, os meus livros, escondido. Quando eu acordava via os dedos gordurosos dela na página... O mundo desabava.
Eu ainda era uma criança, mas cuidava de meus livros como se cuidasse de uma pessoa. Forrava com um plástico, e lia com cuidado, com o zelo de um amor que até hoje não conheci em suas outras formas. Escrevia o meu nome na folha de rosto, e a data. Até hoje tenho esse hábito, adquirido na infância. Ato de proprietária, mãe, dona. Dona de um mundo - mais esquisito do que este, confesso, e onde a felicidade é possível da maneira mais negativa.
Por gostar tanto do objeto-livro, não consegui esquecer uma cena que vi, faz pouco tempo, numa novela de televisão. A cena é composta na biblioteca desorganizada de uma escola pública do Rio de Janeiro. A nova diretora entrou com sonhos de organizar toda aquela bagunça - não só a biblioteca, mas a própria escola. Só que um professor dá um beijo nela, e aí começa a trama de amor dos dois. Ela, uma diretora, tão politicamente correta, decide ir conversar com o professor; e escolhe a biblioteca como cenário para a conversa. Chegando lá, começam a discutir feio, e não é que a dita cuja tem o desplante de jogar os livros na cara do professor? Ele sai correndo e ela vai jogando nele todos os livros que vê pela frente. Que coisa horrorosa, que desrespeito! Aquela cena me deixou péssima, e me fez lembrar de minha irmã - que na infância lia os livros comendo carne frita. Delito pequeno, hoje vejo, diante desse.
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4 comentários:
aeronauta, sua história é como os romances, envolvente, simples e amorosa.... Tem sabor de uma infancia perdida, e que encontramos nos livros. É uma pena que este seja um mundo sem leitores... Acho que depois deste texto vou limpar os meus livros da poeira do tempo...
anonimo
Seqüência típica do mau gosto da Globo e de seus roteiristas. Mas, sem dúvida, reflete o nível educacional e cultural do nosso povo, que acha que livro é só a Bíblia, e que o Dicionário é o pai dos burros...
Eu tenho preguiça de posts grandes. De escrever e de ler também. Mas me envolvi tanto, que nem senti.
Adorei a tua história de amor. Também tenho um enorme cuidado com meus livros. Se tiver uma manchinha, eu fico deprimida. (rs) Beijo.
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