segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Eu não queria sentir dor

Minha mãe é um riso com os olhos apertados. As unhas cheirando a alho e a cebola. O cabelo anelado, cortado curtinho, sempre pintado de preto. Cheinha de manias: brinco é uma delas. Tem uma coleção, de todas as cores, mas todos em formato pequeno.
Minha mãe sempre foi criança. Até quando batia em mim para que eu comesse. Dizia assim: "Ô sujeitinha, você não quer comer não?", e me dava um beliscão no braço. Hoje acho graça disso, mas na hora do beliscão eu a odiava. Porém, logo depois me esquecia e estava rindo para ela. Minha irmã me chamava de besta por causa disso, pois eu apanhava e na mesma hora me esquecia...
Ah, minha infância é sempre o mesmo retrato: eu e minha mãe. Onde estava ela, lá estava eu. Na adolescência o retrato mudou: ela era minha perseguição. Agora, na idade adulta, ela é a minha memória: gosto de perguntar coisas a ela de "quando eu era pequena". Ela diz que tem saudades desse tempo, e os olhos se enchem de água. Nessas águas consigo voltar, lembro de nossos banhos em família no Córrego do Padre, ela banhando-se de vestido, pai com uma sunga azul, eu com um biquíni verde, minha irmã com um biquíni vermelho. Ainda nessas águas que saem dos olhos dela vejo eu correndo pela larga praça de minha cidade, fugindo de uma maldita injeção que me esperava na farmácia. E ela gritando para todos os moradores ouvirem: "pega, pega essa menina aí, pelo amor de Deus!" E de todos os cantos da praça aparecendo pessoas para pegarem essa menina que era eu, na maldita armadilha de uma injeção que eu não queria, que eu não queria. É isso: minha mãe também representava o que eu não queria... Ora, para que tomar injeção e sentir dor? Não, eu não queria sentir dor...

2 comentários:

Luiza disse...

realmente nao existe memoria fiel. por isso estou tentando reler aquele livro..
que bonito retrato da tua infancia!
Beijos

Anônimo disse...

De doer. Não a injeção, o texto. Estou certo disso: o livro que vc engendra será belíssimo. Abr. Carlos Barbosa