Aos quinze, dezesseis anos adorava ler e reler as cartas trocadas por Manuel Bandeira e Mário de Andrade. O livro era uma ediçãozinha de bolso da ediouro ("Mário de Andrade: Cartas a Manuel Bandeira"), com uma letra minúscula, coisa para a gente ler de lupa. Mas naquele tempo nem usava óculos ainda, por isso poderia ler e reler quando quisesse. Na leitura dessas cartas fiquei sabendo que Mário batizou sua máquina de escrever de "Manuela" - claro, em homenagem ao seu querido amigo Manuel Bandeira. Puxa, adorei aquela idéia. E só pensava no dia em que poderia fazer o mesmo: comprar uma máquina e batizá-la com um nome assim, bastante singular, no qual eu homenagearia um escritor querido.
Apenas aos dezoito anos tive dinheiro suficiente para comprar minha primeira máquina. Uma máquina verde, portátil. Eu já havia feito curso de datilografia, datilografava com todos os dedos, rapidamente. Fiquei imitando Clarice Lispector, que dizia escrever com a máquina no colo enquanto olhava os filhos. Eu não tinha filhos, mas escrevia em qualquer lugar, usando o mesmo artifício clariceano - na sala, no quarto, na cozinha, no quintal, etc. Naquela época andava apaixonada demais por Carlos Drummond de Andrade e não pensei duas vezes: escrevi na própria máquina o nome "Drummondina" e colei na parte da frente da fulana. Pronto, minha máquina agora tinha um nome singular.
Com essa máquina escrevi muita besteira - achando que estava fazendo coisa grande, começando minha vida de escritora. Eu me sentia o máximo, datilografando literatice, tentando preencher minha vida vazia de péssima literatura feita por mim. Com bons sentimentos, o que é o pior. Ah, aqueles sentimentos eram bons demais para se fazer boa literatura. Para onde foram esses textos só o grande rio de minha terra poderá dizer, e pelas mãos de mãe, que fez essa caridade. Eu andava na época tentando imitar Cecília Meireles, era um horror, saía cada coisa de doer.
Mais tarde dei de cara com um livro magistral, emprestado por um amigo: "Cartas a um jovem poeta", de Rilke. Após ler e perceber que não poderia ficar com ele (nunca fui de roubar livros), pensei numa tarefa extraordinária: datilografar o livro todo. Eu precisava ter aquele livro para ler em todas as ocasiões de minha vida. E a tarefa foi maravilhosa: bati rápido, terminei logo. Depois fiz uma capa e com minha própria letra desenhei com um hidrocor verde: "Cartas a um jovem poeta - Rainer Maria Rilke". Lembro que quando me apaixonei de verdade, pela primeira vez, emprestei esse livro datilografado àquele que acreditava ser o homem de meu destino. Nem sei se ele leu. Me entregou depois de muito tempo, após eu ter insistido bastante pela devolução, sem me dizer uma palavra. Foi o primeiro doloroso silêncio de amor da minha vida.
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8 comentários:
Que um livro tenha sido veículo de seu primeiro vazio amoroso, é de doer. Mas o fato de o livro ter sido "escrito" por você torna aquele sujeito O vazio a ser cortinado, e gongado, e vaiado, sem lápide, sem tambor ou fumaça, e finito. Abr. Carlos
Oi, aeronauta. agradeço seu comentário lá no simulador, o que me deixou verdadeiramente encabulado. sempre venho aqui e gosto do modo assumidamente pessoal com que você trata livros e leituras, misturando-os à vida, sem deixar de ser analítica.
Aeronauta, suas histórias fazem o leitor remexer no baú de memórias. Sou péssima nisso. Dói. Belo texto.
Eu na verdd gostava mais d escrever do q ler, qdo tinha 9 anos ganhei um maquina de escrever de verdd, minhas historias eram totalmente americanizadas com personagens chamados de Michael, Jane, ainda bem que cresci e aprendi a gostar de ler e vi que aquilo melhorou muito minhas histórias...eu acho! hehehe bjus
Essa sua crônica (posso tratá-la assim (interrogação), possibilita várias vertentes: máquinas, poetas, livros e amores! Acho que existe algo em comum neles. Fazer poesia, amar, ler, escrever - tudo pode ser feito com uma precisão mecânica, automática; mas, também com liberdade e improvisação, artesanal, manufatureira.
Em tempo: se um dia reaver minha Lettera 37, que o meu pai me deu de presente, e eu, num sacrilégio imperdoável, a vendi, - vou batizá-la de "antonina". Já o meu PC, que desconfigurado não mais sinaliza a interrogação,- poderei chamá-lo de "aeronauto", em sua homenagem...
A gente tende a acreditar que o outro é nosso espelho. E que vai se empolgar com aquilo que nos empolga da mesma maneira. E vai achar genial aquilo que a gente passou horas lendo e relendo, sem acreditar. Dói mesmo esse silêncio. Bjs.
Negócio
pagas o meu esperar-te
com um silêncio agudo e absoluto
temos que estabelecer outra moeda de troca
equilibrar as transacções
ou abrir falência
deste amor
Inominável - http://pontodesaturacao.blogspot.com/
gosto tanto dos teus escritos que dá vontade de fazer como meu sogro faz, responder cada parágrafo com um comentário, deixo passar e passa a minha poesia junto com tuas lembranças que parece mesmo ser as minhas .
A cologuinha do primeiro anuinho
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