terça-feira, 6 de novembro de 2007

"Notívaga"

Sempre fui insone. Enquanto o mundo dormia, eu escrevia poemas. Minha irmã reclamava da luz acesa. Eu apagava a luz e rabiscava meus garranchos na penumbra do quarto. No outro dia as palavras estavam todas atropeladas umas nas outras, e eu ia passar a limpo. Como escrevi nessa época, meu Deus! Tanto papel hoje perdido, outros recuperados, muitos engolidos pelo rio (mãe jogou muita coisa fora nas enchentes que vieram depois que saí de lá de casa).
Lembro quando descobri a palavra "notívago": pronto, achei o que eu era - "notívaga". Nunca tive sono de verdade. Perambulava por outro mundo enquanto todos da casa e da cidade dormiam. Gostava de escrever e de ler à noite. Era o que dava sentido à minha tão insignificante vida. Sempre senti isso: a inutilidade, o ser inútil. Só as palavras coloriam a existência - essa foi a descoberta que fiz, inconscientemente,aos seis anos, quando aprendi a ler. Depois fui tomando consciência de que só ler era preciso. E escrever, para não morrer.
Será que é esse o meu contato com Deus? Deus é a literatura? Pois só nela vejo uma possível salvação. Só através dela saio da inutilidade, e consigo ir além de mim, além de toda a mediocridade, além de toda essa vida sem graça.
Ah, livro que me assombrava: "Alice no País das Maravilhas". Sofri tanto com esse livro, com aquele coelho de relógio sumindo e a menina indo atrás... Ah, sofri muito. Aquelas coisas todas absurdas acontecendo com Alice era carga demais para uma menina de sete anos ler. Eu tinha pesadelos. Lembro que a edição que pai comprou (o exemplar era de minha irmã) trazia uma capa rosa, e de tanto o livro passar de lá para cá, de cá para lá, a capa vivia amassada. Isso mais transfigurava a história terrível que existia ali dentro.
Será que foi tudo isso que fez com que eu perdesse o sono? E visse que a vida era mesmo a história de Alice? E que as maravilhas eram sempre coisas absurdas acontecendo, a todo instante? Mas que havia uma solução boa, triste, engraçada, reconfortante, salvadora: a de poder ler tais histórias, mesmo tendo pesadelos depois...?

3 comentários:

Vivz disse...

"Sempre senti isso: a inutilidade, o ser inútil".

Também. E, por isso, fico esperando que alguma coisa bombástica aconteça, como acontece em tantas outras vidas, e mude todo o meu percurso.

Anônimo disse...

Ainda sonho q a literatura mude esse mundo!

Senhorita B. disse...

E eu que não durmo noites e noites?
Esperando sempre o extraordinário acontecer?
Beijos,
Renata