A imagem de meu pai é a imagem do lirismo. Sorriso terno, bigodinho a la anos sessenta, calçados vulcabrás e calça estilo social. Usava óculos e me chamava de "papai". A minha irmã ele chamava de "pai". Via, nessa diferença de apelidos mimosos, mais carinho por mim: óbvio, "papai" é mais carinhoso que "pai". Depois cresci e comecei a desconfiar: achava que "pai" demonstrava algo mais sólido, mais seguro, mais firme. E "papai", não-confiança. Coisas de semântica amorosa, ciúmes e intrigas de amor. Triângulo que cedo se formou entre mim, ele e minha irmã. Minha irmã sempre ganhou na esperteza: fazia cálculos, estratégias, e conseguia dele tudo o que queria. Eu não, nunca soube nada de técnica, medidas, era impulsiva, levava o coração na frente sem pensar antes, e só resultava em burradas.... Resultado: em todas as fotos antigas minha irmã está ao seu lado. Em todas as minhas lembranças minha irmã está ao seu lado, sempre sorridente, a chata, grudando nos dois braços dele. O que me restava mesmo eram o carinho e os beliscões de mãe. Mas cadê o lirismo?
Ah, o lirismo... Meu pai gostava de ler. Gostava de poesia. E no meu primeiro dia de aula comprou para mim um caderno de desenho e uma caixa de lápis de cor. Quando comecei a escrever poesia, ele mostrava para todo mundo. Porém, nessa mesma época, minha irmã quis aprender a dirigir. Que orgulho também para esse pai! Ter uma filha que dirigia carros, que sabia resolver coisas em bancos, que lhe ajudava no sindicato, que sabia falar para pessoas estranhas. Claro, essa filha não era eu. Eu era a filha que sabia escrever poesia, e que aos vinte e dois anos publicou seu primeiro livro. Ah, que orgulho também! Mas nesse tempo já era, talvez, tarde. Ela me roubou ele na infância, em algum momento completamente esquecido por mim. As fotos nada dizem, só mostram: eu com mãe, ela com pai. Sempre. Nas festas, nos batizados, nas fotografias oficiais que ficavam penduradas na parede da sala... Uma das minhas últimas lembranças de infância de nós dois juntos foi ele me trazendo no colo, aos seis anos, depois de eu ter dançado a noite inteira numa festa. Vinha suada, no seu ombro, pelas ruas, quase dormindo... Um colo tão bom, tão terno, que nesta parte da lembrança minha irmã não aparece. Sei que ela também vinha da festa, mas não me lembro como, a interesseira. Ah, era um colo tão bom, tão límpido, tão amoroso, tão reconfortante, tão lírico...
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8 comentários:
Nauta primeiro obrigado, pretendo dormir bastantes aos domingos ainda, fica tranqs...E agora pegou num ponto fraco meu, meu pai, partiu cedo, e em dias como os de ontem sinto mta falta do seu abraço...q saudade!
Ah... Você sempre me fazendo chorar com esses textos tocantes.
Seu texto me despertou o interesse pela versão de sua irmã. Permita-me a ousadia:
“Claro, esta filha não era eu. Ela me roubou ele na infância. Como compensação, como que para criar uma falsa prova no futuro, na hora das fotos eu sempre dava um jeito de ficar mais perto, forçava a barra, me aconchegava de tal forma que não havia alternativa para ela a não ser buscar o colo da mãe. Mas pra que me serviria a foto no futuro se o colo presente era sempre dela? Ela, a preferida de sempre. Lembro especialmente de uma noite, quando havíamos dançado a noite inteira numa festa. Ah,como devia ser bom aquele colo, tão límpido, tão amoroso, tão reconfortante, tão lírico... E eu andando, tropeçando nos paralelepípedos e engolindo o choro... E eles nem me notavam.
Meu pai me chamava de baixinha, ou pequenininha, mesmo depois de adulta. Saudades.
Nauta (posso te chamar assim?),
não dá para ler o seu texto sem se emocionar. Sem lembrar que em cada dia que passei com meu pai, tive tanto medo de lhe demonstrar afeto...
Hj estamos mais próximos, mas ainda temos uma grande distância a percorrer. E essa distância não existe no seu texto, na lembrança que guarda do seu pai...
Parabéns.
G.
Como vc consegue? Vc nasceu escrevendo assim ou aprendeu com alguém?
Sinto lhe decepcionar Dmitri, mas ela não roubou nadica de nada.O colo era mesmo meu. Eu sabia como conquistar cada pedacinho de abraço e de atenção dele. E no dia que ela veio no "meu colo", foi porque eu infelizmente já estava bastante crescida para ser carregada.Foi o único momento na minha vida que não achei bom crescer.Precisava daquele colo para respirar e para viver. Em compensação, ela tinha o da minha mãe vinte e quatro horas.
Ah, Aeronauta vc nem imagina como ainda continuo precisando daquele colo depois de todos esses anos.Queria mais tempo para poder ter aproveitado mais aqueles momentos. Mas, por ironia do destino, é para vc que corro nos momentos difíceis e assim vamos trocando de colo e com certeza nosso pai fica muito feliz com isso.
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