
É sempre histórico escrever algo abaixo da data acima. Mesmo que o dia não seja extraordinário. Aliás, não há dia extraordinário. Aliás, não há nada, só expectativas bobas diante do grande mistério. Expectativas que nunca se cumprirão. Fernando Pessoa tem uma 'sentença' que bem ilustra isso que digo agora:
"Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho."
O que quero dizer é que sempre existirá a porta da esquerda. E que a dificuldade é aceitá-la como parte integrante de um outro tipo de sonho: esse que se impõe, e que batizamos com o nome infeliz de "realidade". Ora, se pudéssemos enxergar a realidade de maneira não pragmática, mas surreal, talvez atuássemos com maior nobreza nesse espetáculo desgraçadamente piegas que é a vida. Encaramos a realidade de maneira pragmática, querendo que ela seja a concretização de um sonho. Ora, sonho não se realiza, se vive da maneira que se nos apresenta. Sonho aleijado, eu diria, mas vivo, podendo ser tocado. E sonho aleijado é sonho surreal, felliniano.
Talvez eu tenha finalmente aprendido a sonhar aleijado. Em todo último dia do ano eu fazia uma lista do que queria para o ano vindouro. Bestagem. Hoje não perco tempo com isso, portanto, não desejo mais nada. Quero que as coisas me encontrem sem que as chame. Quero o inevitável, e, dentro disso tudo, talvez venha um riso completo. Se não, deitarei na cama e suspenderei o tempo, chorando. Vestir calcinha rosa na passagem do ano? Besteira. Pisar sete ondas? Para que esse trabalho todo? Prefiro assistir a um filme e ler aquele último livro de Baudelaire que comprei.
Chega um tempo em que descobrimos que tudo é inútil, menos a arte. E com ela podemos sonhar aleijado de uma maneira sossegada. Com ela aprendemos a ficar sozinhos, sem gritaria e apelo público. Entramos no mais fundo de nós e lá nos encolhemos, aguardando, quem sabe, se for possível, um vizinho.