sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
só isso
Não se entende o fato de Gregor Samsa acordar inteiramente transformado num inseto monstruoso. E todos nós estamos carecas de saber que isso - a transformação de homem em inseto - não se trata de nenhuma metáfora. Que também não foi sonho do personagem nem nosso. E que não ter o significado pleno disso tudo é que faz de A metamorfose uma obra clássica, imortal, incomodativa. Lembro de mim, na chamada flor da idade, lendo esse livro. Senti-me terrivelmente incomodada, mas acreditava que no final teria um alívio. Não, não tive alívio no final. E constatei, desde cedo, que para ler Kafka eu necessitaria firmar esse pacto: de jamais ter alívio em hora alguma. Com isso a gente aprende o que é a vida. Aprender o que é a vida já é um grande prêmio, para nós que sequer sabemos o óbvio. Nem me pergunte o que é o óbvio, que eu, imbecilmente, também não sei. Marchas de imbecis, andamos para cima e para baixo, vergando nosso corpo que envelhece a olhos vistos e não vistos. É, porque nem todo mundo sabe que está envelhecendo; algumas pessoas têm um espelho tão fiel, mas tão fiel que lhes esconde esse dado quase que definitivo. Um espelho hipócrita, que esconde ruga por ruga, e lhes ajuda a retocar a maquiagem: lápis ao redor dos olhos para que eles vejam, e bem, o envelhecimento alheio. E como essas lindas e jovens criaturas riem das rugas alheias! Ah, dizem muito sobre como fulano envelheceu e como sicrano está com a cara caída.
Não, não me pergunte o óbvio, que eu também não sei; assim como não sei, voltando ao início de nossa conversa, por que horrores Gregor Samsa foi acordar metamorfoseado num inseto. O que apenas sei, de tudo que há na vida, é que fui criança, dado indiscutível. Uma criança com o rosto redondo, nascida em dia de lua cheia. E que usava vestidinhos curtos, e tinha medo dos castigos do Purgatório.
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8 comentários:
Dizem que blogs servem para muita coisa, mas eu gosto do uso que você faz do seu: nada óbvio. Como essa idéia maravilhosa do espelho fiel. Espelho conivente com a suscetibilidade do sujeito. Rs. Por trás do disfarce das rugas deve haver uma rusga angustiante com o tempo. "Deixo-me ir", deveríamos dizer, em vez de ficarmos adiando a inevitável metamorfose como quem rola uma pedra montanha acima.
Abraço.
Está registrado na minha memória que um dia li A Metamorfose. Está registrado que nasci, mas não me lembro, essa memória é forjada. Está registrado que fui criança e que estou aqui agora escrevendo. Está registrado, mas não tenho certeza de nada. O rio tá correndo... e deve passar por mim...
Bem, quero registrar que gostei muito do seu texto, e do final, aparentemente simples. Excelente!
Beijo, Aero.
Algumas pessoas envelhecem, outras amadurecem e outras se tornam uns porres, na verdade, as que sempre foram uns porres não tem outra coisa a fazer a não ser ficar contando as rugas alheias, os cabelos brancos alheios, a vida alheia.
Beijos :)
Também me espanta, desde sempre, aquele besouro de Kafka. Engraçado, fiz um poema hoje, antes de ler o seu post,que diz assim: não haverá tempo de amadurecer. Um certo diálogo com o que você diz, embora inadvertido. Postei lá no Blag.
sei bem o que é acordar metamofoseado em um grande, nasci pouco lembro desse fato;o fato de ser obvio é claro, mas não pecebem o mau tempo que chega pra eles, são pequenos e estupidos: "grande criatura humana";a tristesa vem por saber que somos, mas não levamos de modo contrario. acabo falando, entretanto continuo calado como Gregor, imagine o zzzzzzz da minha fala. na verdade não entendem o que voçê fala, muita lamuria meu"deus", que todos morram, não sou tão piedoso que nem Samsa. sou alheio a mim mesmo; com os outros, na presença dos outros, procuro maten-los felizes nessa dura "condição de homens, puramente homens"( charles divino rum)
Não li Kafka. Não tenho cabeça para isso agora, mas vou botar na minha listinha de clássicos a ler. Só não abro mão de ler aeronauta.
Ninguém abre mão de ler aeronauta. Nem quem tá doida por conta de uma tese feito eu. Bjs
Obrigada a todos vocês, queridos leitores. Abraços.
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