quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

elegia intensa


Tenho nas entranhas terra de cemitério. Aos seis anos ouvi essa história verdadeira; todas as histórias são verdadeiras, e mãe contou-a e eu a escutei, nem sei se foi atrás da porta. Ela se arrependeu, talvez por isso o remorso também está nas minhas entranhas. Depois ela negou com veemência, não comeu nenhuma terra de cemitério, ela jamais faria tal coisa, foi uma festa aquela gravidez inesperada. Talvez também por isso trago dentro de mim a ilusão, a peste da ilusão, do engano feliz. Mas sinto demais essa terra revolver-se dentro de mim, cinza, desesperada, cheia de ossos alheios, cabelos que cresceram na umidade da solidão. Essa terra me compõe, e em certos dias ela grita como a morta que não quer ir, que quer sair daquele caixão abominável e cruel, quer seu noivo, tão belo à sua espera. Terra que se recolhe na minha barriga, molha minha cabeça, fazendo-me estremecer, em certos dias, feito jasmim que se recusa a morrer, cheirando cada vez mais forte, entorpecendo pessoas que chegam perto... Sinto agora essa terra, mortífera terra de cemitério, circulando nas veias de minha mão direita, oxigenando, como uma elegia intensa, a vida que um dia não conseguira expulsar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Embasbacado pelo tenebroso conto autobiográfico que, na verdade, encerra um lirismo dos mais belos. Eu talvez jamais conseguirei vê-la como se descreve. Em suas entranhas não há terra de cemitério. Há o sal da terra.

Bj Aero.

Bípede Falante disse...

Impressionante!
Entendi ou senti, o que dá quase que na mesma, essa terra que você guarda, porque no meu corpo, o chão também é um solo fértil para os que estão mortos.
beijos.

Gerana disse...

Excelente! ora, como sempre, vc é 10!
aero: meu tel não funciona bem desde o incêndio da Oi; dia funciona, dia não e geralmente não consigo ligar. Ligando, a conversa fica pelo meio. Ainda ontem, falei 3 vezes seguidas com o professor Waldir e a conversa não ficou completa, a ligação insistia em cortar as falas.
Meu irmão me deu um cel da Claro, vou ligar para vc por ele. Até logo mais!

Anônimo disse...

quando a luz some a noite e nos sentimos sós com vozes que nos atordam, dizeres e fazeres contra a sua existencia contra a sua experiencia surreal psicodelica viajem sobre os infinitos sonhos azuis que vejo brotar das tuas raizes, das tuas entranhas negra de luz divina de anjos enrrolados em suas penas de fenix renascida de doce criança ferida e cabelos compridos do tamanho da solidão.ass(aquele que foi e voltou).

Muadiê Maria disse...

maravilhoso, Ângela, você usa corajosamente as palavras.

Anônimo disse...

Martha matou a charada. Você usa corajosamente as palavras.