segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

tributo


Quando a avó morre uma parcela de memória se perde para sempre. Sou uma neta ingrata. Sou um desmantelo de gente. Tinha uma avó lúcida, guardiã de minha história, a mais recôndita, e fiquei sete anos sem vê-la. Não tenho um pingo de apego a nada, e herdei isso dela. Tenho uma preguiça de abraço, de beijo; tenho uma preguiça escandalosa de amar, e sei que herdei isso dela, de uma família distante e estranha e fria e sem tento. Que ela sabia de tudo eu tinha certeza: de mãe, quando nasceu; de pai, quando noivou; dos onze filhos, que mãe lhe ajudou a criar; do marido, "véi" ousado que ela velou há quinze anos atrás em noite de festa; dos anos que a vida lhe dava, à revelia; daquela casa miúda em que foi obrigada a morar; da água fria do pote de sua cozinha que ela fazia questão de encher, todas as manhãs. Sabia de tudo a véia Calu. Forte que nem um muro de pedra feito pelos escravos no início do século. A cabeça tinia de fotografia antiga, de história, de escárnio, de graça. E eu, como talvez ela o faria, não fui vê-la em todo esse tempo. Estava com preguiça.
No último domingo fui obrigada a deixar a preguiça de lado e ir vê-la no meio da sala, dentro de um caixão. Ali deitada, serena, tranquila, vestida com sua mortalha azul (feita e guardada há mais de onze anos), ela demonstrava firmeza. Eu do seu lado a olhava, e, ao fazer isso, olhava fundo dentro de mim e nada via, nada, só a bestagem que sou, a bestagem.

11 comentários:

Anônimo disse...

Prestou-lhe tributo, isso não é bestagem.

Marcus disse...

Somos todos uma grande bestagem. Você um pouco menos, porque tem consciência disso. Viva dona Calu.

M. disse...

Um texto que só você escreveria ela ganhou. O mais valioso tributo. Bjs, que bom que você voltou.

Edu O. disse...

Tive um avô que foi o meu amor maior e éramos cúmplices até o final.

Bípede Falante disse...

Será mesmo preguiça o nome dessa distância?
Beijo.

Carlos Barbosa disse...

As perdas que sofremos, as perdas que promovemos. Entre uma e outra, nos perdemos no mais das vezes. E nos reencontramos na memória que cultivamos de quem perdemos. Não tive avós próximos, perdi-os cedos, mas sei que são bibliotecas vivas da família e, sim, dói muito perder uma biblioteca falante. D. Calu se imortalizará por meio de sua literatura, sei disso. Abraços, (carlos barbosa)

Marcantonio disse...

Bestagem? Não pode ser. De onde vem, então, essa elegia, esse réquiem?

Anônimo disse...

Querida, é o corre-corre da vida que nos distancia dos nossos amados.Você não é ingrata, deixa de bestagem! Gostei do termo bem nosso:"BESTAGEM". Um beijo no seu coração!

Muadiê Maria disse...

lindo, texto lindo.

Unknown disse...

Deixa a bestagem de lado, você é pura poesia, simplicidade, amor...
Beijos no seu coração!

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

Muito forte seu texto. As relações com as avós nem sempre são como deveriam ser!