sexta-feira, 28 de setembro de 2012

a mulher que escreve


Tenho pensado muito sobre isso nos últimos dias: a mulher que escreve. Sou uma mulher, e escrevo. Desde os 12 anos, quando inventei de rabiscar palavras rimadas em sala de aula, a pedido de uma professora. Recebi elogios gordos, por isso continuei. Comprei um caderno grosso, pretensioso, e passava minhas noites de insônia sentada no sofá da sala, escrevendo. Tinha uma caderneta na qual colecionava rimas. Pedia ajuda à minha irmã e a pai, e ia juntando um monte de rimas para jogá-las no caderno maior, lá onde colei na capa a foto de uma baiana e escrevi na primeira página, em letras bordadas: "Minhas primeiras poesias". Onde está esse caderno a uma hora dessas, só Deus e o meu Destino secreto sabem. Numa das enchentes de Andaraí, mãe deve tê-lo jogado fora juntamente com minhas inúmeras revistas em quadrinhos, que um dia sumiram também misteriosamente.
Pai era meu maior fã, e adorava ler meus poemas para seus amigos na sala lá de casa, sempre cheia de gente. Lia e lembrava que esse fenômeno era coisa hereditária, afinal ele veio de uma família de repentistas, passando de pai para filho; e que, infelizmente, ele não escrevia, mas sua filha ali sim, escrevia, era uma poetisa. Depois desse discurso, ele lia um poema que eu lhe dava num papel à parte. Não lhe mostrava meu caderno, ali havia poemas de amor. Ele pedia, pedia, pedia para ler o caderno todo, e eu negava. Só que num domingo de um certo mês não teve jeito, não tive mais como negar, e ele ficou na sala de janta passando as folhas de meu caderno, lendo todos os meus poemas; do quarto eu ouvia o barulho das folhas passando, meu coração angustiado. Esta foi a maior noite de minha vida. Quando amanheceu ele não me disse nada, nada, nada.
Mas lancei um livro, e pai se reconciliou com minha poesia, totalmente.
Eu era uma jovem escritora. Não bonita nos padrões estabelecidos, mas era jovem. E tinha o mundo aos meus pés.
Um homem sempre fica vulnerável diante de uma mulher que escreve. Principalmente se ela for jovem, e bela.
Fico pensando em Clarice, Cecília, Hilda Hilst e suas auras brilhando no universo masculino.
Os homens adoram as mulheres que escrevem: talvez seja um fetiche, um assombro; talvez percebam uma certa masculinidade na mulher que escreve; ou uma feminilidade exacerbada. "Ah, você escreve?", já ouvi isso de muitos homens, e o tom foi sempre de doçura, principalmente de curiosidade; mais ainda quando eu era jovem e saí de minha província direto para a universidade em Feira de Santana. Se os chegantes na província já ficavam embasbacados de lá encontrar, naquele fim de mundo, uma jovem de cabelo comprido que escrevia e publicara um livro, imagine na cidade grande. Os professores me tratavam de maneira diferente. E eu me sentia especial.
Eu era jovem, tinha uma beleza exótica, e escrevia razoavelmente. Era um objeto exótico. Eu chamava a atenção, acredito, mais pelo fato de eu ser uma mulher que escreve, de que pela qualidade daquilo que escrevia. 
Estou escrevendo tudo isso aqui e me lembrando da amizade grandiosa de Mario Quintana e Bruna Lombardi. Mario adorava a poesia de Bruna. Ou a sua beleza? Ou essa coisa estranha e maravilhosa que é uma mulher bela que escreve?

15 comentários:

Carlos Rafael disse...

Belas memórias, Nauta! Realmente o homem fica vulnerável diante de uma mulher que escreve. Diacho, a mulher já tem tantas qualidades e ainda escreve...

Adriano Alves disse...

O Gadamer, na sua obra VERDADE E MÉTODO, afirma que "quando compreendemos um texto nos vemos tão atraídos por sua plenitude de sentido como pelo belo"; por isso, talvez, tuas memórias sejam tão elucidativas para mim. Particularmente, gosto muito dessa tua sutileza em traduzir a memória - sempre uma seleção, uma reconstrução individual - com temáticas que tocam de alguma forma o leitor. Diria até que esta seja uma das tuas singularidades mais marcantes, dentre aquelas que já conhecemos: uma mulher jovem e bonita que escreve.
Ah! Outra coisa. Não sei se por fetiche ou doçura (jamais por assombro, risos...), mas, corroborando com a hipótese aventada em tuas memórias, foi uma jovem e bela moça que escreve que me revelou o amor.

Muito obrigado pelo texto.

abraço.

aeronauta disse...

Obrigada a Carlos Rafael e a Adriano Alves pelas visitas, sempre tão bem-vindas. Abraços.

Unknown disse...

belo, belo: a mulher e a palavra/ a alma que lavra/ o passo, o verso/ a beleza silente no branco da página



bj

aeronauta disse...

Belo poema, Assis Freitas. Abraços.

Eliane F.C.Lima disse...

A menina escritora, que começou por acaso, encontrou seu destino. Então descobrimos que o acaso é um grande aliado. E sábio.
Eliane F.C.Lima (Blogues "Poema Vivo", "Literatura em vida 2" e "Conto-gotas")

Bípede Falante disse...

Aplausos para você, aeroescritora desse céu mágico e profundo de verdades chovidas em palavras.

beijoss

Tamires disse...

Lindo texto! ;)

Sandra disse...

Pensei inicialmente em deixar o direito de comentário aos homens...mas a voracidade com que seu texto me toma não me permitiu isso...rs. Aplausos de pé linda e jovem escritora. Dotada de uma sensibilidade ímpar que vem deixando aos montes súditos por onde passa. Belíssimo texto Ângela! Você consegue, como poucos, entrar na minha mais escondida morada e lá fazer seu acampamento. Grande abraço!

Anônimo disse...

Quanto a mim, Sandra, homem com H, fiquei daqui sem palavras, embasbacado com mais esta maravilha de Ângela. Quis comentar antes, mas confesso que tudo que pensei em dizer tornou-se pequeno diante do formidável texto dessa "mulher que escreve".
Assim, resta-me copiar suas palavras:
..."Aplausos de pé linda e jovem escritora." (...) Ângela "consegue, como poucos, entrar na minha mais escondida morada e lá fazer seu acampamento."

Abraços,
Anônimo I

aeronauta disse...

Obrigada a Tamires, Sandra e Anônimo I: quantas palavras belas vocês têm para mim! Nem sei se as mereço, mas sei que gosto demais de lê-las. Obrigada, e grande beijo!

aeronauta disse...

Obrigada também à visita e palavras de Eliane F.C.Lima! Abraços

aeronauta disse...

Obrigada, Bípede, você que também escreve "verdades chovidas em palavras". Bjos

Sandra disse...

Para Anônimo I:
Quanta horna Anônimo, ser palavra para quem fica sem elas...rs. Sei que você é dotado de grande sensibilidade e sempre caminha aqui com muito carinho e respeito. Obrigada pela referência as minhas palavras. Me orgulho em poder ler essa nossa tão bela escritora. Grata! Abraço!

aeronauta disse...

Sandra e Anônimo I: vocês dois são escritores dotados de grande sensibilidade e poder de escrita. Os comentários de vocês aqui nesse blogue são antológicos: sempre bem escritos, com uma percepção e um carinho aguçados. Por isso a afinidade que existe entre vocês.