sexta-feira, 2 de abril de 2010
guardar o dia
Telefonei pra mãe e ela me diz que está "guardando o dia"; ou seja, hoje ela não costura, não borda, não limpa, não ouve música. O que estava fazendo naquele momento? Folheando um livro velho de receitas. Comprou sim um peixe, mas se arrependeu, deveria ter comprado um frango. Carne de frango pode, é até melhor que peixe, diz ela. Oh mãe, onde ficaram os bolinhos de bacalhau? Não perguntei isso, nem sei se ela se lembra ainda deles. Em nossas solidões sempre conversamos coisas alegres. Ela ri, como sempre riu. Me pergunta o que irei comer. Minto, de maneira descarada. Sempre gostei de mentir pra ela. Mentir pra mãe é algo sagrado. E não digo que não guardarei o dia; até tento, mas não consigo mais me conectar com os santos. Meu espírito virou uma bola de pano, dura e sem graça. Mas garanto a mesma inocência da primeira eucaristia: simples curiosidade com o gosto da hóstia. Juro que eu gostaria de guardar o dia: conhecer a felicidade nos pântanos. Não é assim que diz a igreja? A felicidade no sofrimento? A ressurreição vinda de pregos no corpo? Porém, a verdade é que sempre preferi o Jesus que estava na festa com Maria e transformou água em vinho. Veja, mãe, o quanto isso é lírico.
Imagem: "bodas de caná", galeria de manuelito cadenas.
(www.flickr.com)
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11 comentários:
Ah, aero, tudo que vc conta me emociona. Há sempre uma peculiaridade - guardar o dia, q coisa esplendorosa - nos textos.
Quando vc irá se convencer que tem O Mundo dentro de vc e que ele precisa virar livro?
Admiro tanto sua escrita que não consigo mais comentar suas postagens sem cair no óbvio.
Espero que volte a se conectar com os "santos". Eles precisam de você.
Tin tin.
Aero, escolhi este blog para o Prémio Dardos. Veja no meu o que fazer :)
Beijo.
"Guardar o dia" é lindo. Assim como o seu texto. Beijo.
A vida d'Ele
teve lindos episódios.
O fato de você haver
escolhido um deles
e comentado aqui
deixou-me a sensação
de que, sim, guardou o dia.
Ainda que à sua maneira. : )
Uma feliz Páscoa,
doce de lira
Oi, Aero.
Semana Santa é marcante na minha vida. Morria de medo do Senhor Morto e do Senhor dos Passos (se não me falha a memória são esses). Lembro-me de um homem chamado senhor Dudu, que batia a matraca e da moça que entoava o cântico de Verônica, em latim, lá no meu interior. Esse mistério está no meu imaginário, como algo bom e rico. É minha mitologia.
Beijo.
Estou com blogue agora. Visite-o www.flamarionsilva.blogspot.com Contos do Mar
não consigo mais guardar qualquer coisa que se relacione à semana santa. minhas lembranças não são boas, de castigos infernais até se tomasse banho de rio. só me lembro dos dias tristes, roxos, artificialmente silenciosos. e nunca descobri porque...
Seu texto me lembrou minha mãe: nesse dia não podia haver alegria. Não havia brincadeiras, nem algazarra, nem nada. O almôço era um silencio só. Mas na comida sempre houve exagero de muita moqueca, vatapá, caruru, peixe, maturi, etc. Talvez porque a familia era muito grande e se reunia nessa data. Hoje, não há reunião, nem alegria, e apenas uma salada de bacalhau.
Vou resumir assim: você humilha!
Escrita apuradíssima, Aero. Sempre leio, nunca comento, mas agora não deu para resistir.
eu acho que guardei o dia. Dancei durante quatro horas no ensaio. Dançar não é uma forma de oração?
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